Por várias razões já não corremos
atrás dos foguetes. Custa-nos enumerá-Ias, até porque não é da falta
de perna para correr o principal motivo da nossa decidida abstenção:
o espírito ainda nos pede folia, o sangue ainda ferve e, o que chega
às faces, também chega ao rubro, mas há que fazer o triunfo da
vontade, dizer-se que não a muita coisa, para que não sejamos dos
apontados por excessos e insensatez e para que não fiquemos fora de
tempo, como os que dizem que a juventude é desvairada, nada faz de
jeito, nada vale e em nada contribuirá para a sua valorização e para
o engrandecimento das gerações futuras.
Todos os povos, cá e lá fora, se
orgulham do seu passado e toda a gente aproveita com sofreguidão,
com desvelo e comovida paixão, os mimos de beleza que as gerações
passadas lhes legaram ou abandonaram à voragem do tempo, sorvedoiro
sem remissão, que tudo traga!
Não são os doentes da beleza, são
todos os que têm amor às coisas, todos os que se devotam à
civilização, em qualquer dos seus aspectos positivos, e vêem na arte
a única flor da vida.
Aos nossos escritores Teófilo Braga,
Ramalho Ortigão, Almeida Garrett, Jaime de Magalhães Lima, Corrêa de
Oliveira, Afonso Duarte, João de Deus, Trindade Coelho, Alexandre
Herculano, que em prosa e verso tiraram inspiração do nosso povo,
das suas romanzas e ditos e dos resumos dos seus feitos, para a
criação de novos mitos, em que o Senhor é servido no meio da
exaltação das virtudes nacionais, dois dos seus principais
objectivos do seu precioso labor, a esses, como a todos os mais
escritores nacionalistas, ninguém regateia louvores; e o seu
merecimento os impõe como indiscutíveis mestres da nossa riquíssima
literatura.
Mestres, astros, que ficam
iluminando séculos fora, o seu labor não podem as gerações
esquecer-lho e tem de ter-se como padrão, luzeiro, exemplo de nós
todos, igualmente patriotas e à sua imagem e semelhança crentes
devotadamente, posto que sem aversão às coisas novas, perscrutamos
as antigas, para que se não obliterem, esfumem, acabem.
Ninguém dirá, com razão, que na sua
terra não há folclore, não existe qualquer manifestação artística,
em coisas ou em tradições, que valha a pena por ela se ocupar alguém
ou uma agremiação. Somos dos que veneram os escritores acima citados
e outros mais, que amaram e serviram, legando-nos em museu ou
literatura, a sua notícia de amor às belas letras ou às belas artes,
e mais que notícia, a obra feita ou reproduzida.
Foram aqueles criadores de novos
mitos, que nos ensinaram essas outras formas de rezar, e é como quem
reza que venho confessar que já não corremos a foguetes!... Mas que
pena, que pena nos faz saber que as festas já são outras, ainda
quando, como há milénios e sempre, estralejavam foguetes na nossa
terra em clamor de festa!
Vem isto a propósito de, ainda pelo
S. João e S. Pedro deste ano, eu estar no meu escritório, na Vila de
Estarreja, e chegar-me à janela, em busca de ar mais puro, o ar de
Junho, aqui um pouco húmido, mas suave, perfumado, que os nossos
sentidos aceitam e tanto nos tranquiliza, ar que é mesmo repousante.
Dizia Junqueiro, quem se não
lembra?!... «vinham-me da montanha as canções das ceifeiras»; e a
montanha estava-me à esquerda, aos contrafortes, até Cambra, até ao
Caramulo, enquanto para o mar, coaxavam rãs,
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e toda a terra, até por entre as casas, nos jardins e nos campos e
nos interstícios das calçadas, na sua verdura, nas plantas, nas
flores, evolava para o espaço a fragrância inebriante, que ao meu
coração, então puro, pagava, em repouso, o amor com que estava
vivendo pelas coisas simples e belas.
Algures estralejavam foguetes, havia
música, alguém festejava a quadra dos Santos populares, mas já não
ouvi cantos, que seriam os nossos cantos tradicionais, outro tempo
vulgares nestes dias, de boca em boca, a solto ou em conjunto
apregoados, para animação de toda a gente e animação desta paisagem
rica de cambiantes e ornamentos naturais e elanguescente de perfumes
silvestres.
Ai há quantos anos, ainda como dizia
o poeta, andava eu pelas nossas ruas, de rua em rua, com o rapazio
da minha laia, Manel Nordeste, João França, Miguel Ascêncio, Zé
Manquinho, João Ferraz, o Artur Tavares, os Ferreiros e muita mais
malta, descalço, calção e alça, como o menino herói de Edmundo de
Amicis e o não menos tocante de Victor Hugo, andávamos a saltar
fogueiras, às fogueiras todas, ainda que enxotados, praguejados e
ameaçados, senão zupados pelos maiores, e então não sentia o ar
desta boa terra, não o vivia pelo coração e pelo espírito, que o
calor era outro, como outra era a música e a vida!
As canções das raparigas e dos
rapazes atroavam os ares, chamavam à vida, quem já tanto vivia,
davam mais vida à vida, e davam o riso das gentes, que é a mais sã e
uma fecunda expressão de paz; as danças entre eles, em que nos
metíamos fugidiamente, e o gargalhar de todos e o lume crepitante
das fogueiras imprimiam imorredoiramente em nossa alma a lição mansa
das coisas e do desvelo que se lhes deve como matrizes do nosso
carácter e civilização.
A esse tempo, os inúmeros esteiros
da nossa região eram intensamente frequentados; neles circulavam
imensos barcos e de Mira, Águeda, Aveiro, Ovar, as muitas coisas que
iam ou vinham, todo o tráfego comercial de produtos da Ria, das
lavouras e indústrias das redondezas, seguiam a via fluvial, a esse
tempo, ainda havia barqueiros:
O meu amor é barqueiro,
Leva a vida a fazer frete!
Quando parte para a viagem
Diz-me Adeus com o barrete
Assim, e a roda, cantavam as belas
moças, e com estas os rapazes, e todos em refrão:
Bate lavadeira, lavadeira bate,
Que as nossas cantigas não têm
remate!
Não têm remate, remate não têm
Bate lavadeira, lavadeira bate bem!
E no Rio Antuã, que me está capaz de
aparar comovidas lágrimas, de já lá não ir nadar, eu que nele
aprendi a nadar nuzinho, só com os da minha idade, aos seis anitos,
a esse tempo, esse belo rio tinha os seus pitorescos areais, que
eram das mulheres corarem e secarem a roupa que lavavam e eram os
nossos campos de bola e de jogo da pela, nossos estádios de
atletismo, do vasto exercício pré e post natação, então para nós,
que nadávamos quatro, cinco e mais vezes ao dia!... Meninos da
beira-rio!
As lavadeiras do Rio,
Todas tiram o avental
Para fazer travesseiros
No meio do areal
E o refrão, cantado por todos:
Bate lavadeira, lavadeira bate!...
Os travesseiros eram para os filhos
de colo, para os nossos irmãos, como para nós, um lustrusito
antes!...
Mas o Antuã vai agora com muita
água, que o verão antecipou o Inverno, esquecendo que o Outono havia
de vir! E é certo que também o Outono e o Inverno têm aqui os seus
encantos, mesmo no que toca a folclore, e eu lho haverei de trazer
aqui, um dia, não longe, para que algumas riquezas de Estarreja não
hajam de perder-se.
Iria ainda nas recordações da minha
infância e das mil variadas canções que o povo cantava e já não
canta, nem mesmo sufragando os Santos populares, mas comove-me tudo
isto; as saudades nos cansam e, entretanto, pode ser que alguém nos
ajude, um filho meu, ou vós, meus amigos, que adorais as boas e
belas coisas e tendes o culto da Terra e haveis visto que Estarreja,
por ora ignorada ou esquecida, é uma Terra grande, rica de seus
valores naturais e rica de coisas humanas e até culturais.
É ver, andem comigo! |