I – SUGESTÕES GODAS E ÁRABES
Documentos medievais
Em qualquer trabalho de investigação
que se tente sobre as origens de Estarreja, de que o histórico rio
Antuã é atributo e o povoado do seu nome foi núcleo, como
circunscrição, o estudioso há-de ter de lidar com os documentos
medievais que, entre os incluídos na conhecida Colecção
Portugalie Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, se
acham já publicados, ou integralmente ou apenas nos trechos
referentes a terras desta região, ou mencionados por autores de
obras menos particularizadas, designada mente por Alexandre
Herculano, na sua fundamental «História de Portugal», como
veremo150s.
O investigador regional Lopes
Pereira, para o seu trabalho «Couto e Julgado de Antuã» (iniciado no
vol. XI, 241, do «Arquivo do Distrito de Aveiro», e que ficou
incompleto) colheu e aí deixou reproduzidos, nas partes que
interessavam, entre outros, quatro desses documentos, cujo relevo
avultará da sua leitura e do desenvolvimento que o seu estudo possa
sugerir:
Ano de 1050. Doc. 378 – In rriba
de antuana ereditate que fuit de ioazino. in villa abdelazizi sua
rratione ab integro tam de paremtela quam eptiam et de conparadela
de matan et de suos filios. item in abdelazizi suas rrationes
integras.
Ano de 1077. Doc. 549 – ln riba
de antuana tres quintas de ablacizi de ganantia. et quarta de
canellas et riu sicu quos fuit de mandan. Istas hereditates de
auolenga et de ganantia uendidi illas domno gundisaluo de ille comes
menendo luci qui illa terra inperaba sub gratia de ille rex domno
adefonso quia ille dux tenuit regalengo et condadu et mandamento.
Estarreja – Capela de Santo António da
Praça – 1735 – Da Municipalidade desde 1881.
Ano de 1078. Doc. 557 – ... ... ...
facio kartula uendictionis de ereditate mea propria que abeo in
uilla que dicent riu siccu et ab iacentia ipsa uilla inter uilla que
dicent fermellana et uilla que uocitant kanellas et subtus kastro
rekaredi discurrente ribulo antuana prope litore maris ... ...
... et cum suas marinas.
Ano de 1088. Doc 708 – Sicut et
uendimus ereidate nostra probia que habemus ... rentes nostros et
mater nostra nunillo et de abiorum nostrorum et abe iacentia ipsa
ereidate ter... portugalensis subtus castro abranka discurrentem
rribulo antuana in uilla que uocitant antuana uendimus ad uos de
illo kasale de rodoriut floilaz de .........
Recaredo
Ao localizar a herdade vendida, o
documento n.º 557 situa-a debaixo de (à vista de, no sopé de) um
castro cuja localização foi objecto de dúvidas entre alguns
investigadores que tiveram oportunidade de lidar com documentos em
que surge a designação (Dr. Aguiar Cardoso, «Terras de Santa Maria»,
53-55; Dr. Arlindo de Sousa, «Arquivo do Distrito de Aveiro», VIII,
216).
Porém, em recentes e autorizados
estudos historiográficos da região, nota-se concordância quanto à
identificação do Castro Recaredi (Kastro Rekaredi) ou
monte Castro Recarei: será o Castro de S. Martinho da Gandra, no
vizinho concelho de Oliveira de Azeméis.
Obliterado de há muito o topónimo,
ainda aparece mencionado, em muitos desses instrumentos medievais de
séculos posteriores, tanto dos Diplomata et Chartae,
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como fora da Colecção, para marcar a situação de propriedades e
povoações, embora não contíguas ou próximas, mas afastadas umas das
outras e do próprio Castro, dispersas por diversas circunscrições:
naquele documento, Fermelã, Rochico e Canelas; e em outros títulos,
Loureiro, Avanca, Válega, S. Vicente de Pereira, Cabanões, Muradões
e S. Donato (Ovar), Cucujães (na carta de couto do Mosteiro), Souto,
Agoncida, Mosteirô, etc.
Tirando o nome do rei visigótico
Recaredo, que em 589 se convertera ao Cristianismo, o Castro
conservá-lo-ia durante séculos, dominante das planícies circundantes
até ao Oceano, e eminente, nos dois sentidos do vocábulo, entre as
demais povoações fortificadas das redondezas, na zona da Via Militar
romana Emínio – Cale (o castro da Branca, o castro de UI, o castro
de Ossela, os mais próximos de nós, como exemplos).
Daí, presumivelmente, a preferência
referenciadora.
De notar que, no documento n.º 708
da referida Colecção, de 1088, o castro indicador da posição
territorial não é o de Recarei, mas sim, precisamente, o da Branca,
aliás, talvez, o mais próximo da villa antuana, entre os da
aludida zona.
Em outros documentos conhecidos e
publicados, além do rio discorrente, que era outro elemento
auxiliar quase sempre utilizado pelos tabeliães ou escrivães,
aparecem os montes (não os castros) mais cercanos a desempenhar a
função, e em outros ainda a «estrada»: a referida antiga Via Militar
romana, aí, por vezes, chamada indevidamente, segundo os mais
autorizados pareceres, «estrada mourisca».
A identificação do Castro Recarei
com o Castro de S. Martinho da Gandra deu-a como assente o falecido
investigador regional Abade João Domingues Arede, natural de
Macieira de Alcoba – Águeda, que deixou, além de vários trabalhos,
uma vasta e erudita colaboração no «Arquivo do Distrito de Aveiro»,
e foi pároco de Couto de Cucujães, ali fundando um Museu
Arqueológico e Etnográfico, inaugurado em 4 de Agosto de 1935
(«Arquivo», I, 313-314; X, 290-294), vindo a sua abalizada opinião a
ser adoptada posteriormente («Arquivo», IX, 54 – P.e
Miguel de Oliveira, após a hesitação entre UI e S. Martinho da
Gandra, I, 243; XXIV, 164-169 – P.e José
Resende da Silva Leite).
Abdelaziz
Prestígio idêntico explicará a
persistência, no séc. XI, dos designativos, autênticamente árabes,
de Abdelaziz e Ablaciz (variante, ou o mesmo, por
certo, com errada grafia) dados à vila sita nas ribas do Antuã, em
dois dos documentos citados, respectivamente o de 1050 e o de 1077?
O segundo é datado já de 13 (ou 19)
anos após Fernando Magno ter levado na ponta da espada até Coimbra
os sarracenos, que a haviam conquistado e destruído, pela terceira
vez, em 987. A cidade «caíu em poder dos cristãos para nunca mais
sair dele» – como diz Alexandre Herculano – ao cabo de uma campanha
que durou alguns anos, a partir de 1055, quando o rei – o segundo
Fernando I de Leão e então do novo reino de Castela atravessou o
Douro e investiu contra os territórios da Beira actual, ocupados
pelos infiéis praticamente desde que os cristãos tinham sido
empurrados, pela segunda vez, na história, até às Astúrias, então
por Almançor.
Este, ao avançar até ao Porto em
997, não o teria feito «sem deixar ocupada a nossa beira-mar» (P.e
Miguel de Oliveira, «Arquivo», I, 248).
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Apenas com a reconquista de Coimbra
– na data de 1064, controvertida para 1058 – se veio a obter a
libertação definitiva da dominação árabe nesta região entre o Douro
e o Mondego.
E três séculos e meio haviam
decorrido após a ocupação inicial, em que desempenhou um papel
decisivo precisamente o chefe árabe Abdelaziz.
Seu pai, Muça, amir de África,
aproveitando-se das dissenções surgidas na sucessão do rei
visigótico Vitiza e da traição de um dos partidos em conflito, manda
à conquista da Península o seu lugar-tenente Tárique e este derrota
o exército godo de Rodrigo na fatal batalha de Guadabeca (711). O
próprio amir segue-se-Ihe a tomar parte na invasão, e seu filho e
sucessor, que ele designa para exercer o amirado da Espanha
conquistada, com Sevilha por capital, continua a campanha, por
713-716, sendo, pouco depois, assassinado.
Diz Alexandre Herculano («História
de Portugal», I, 106): «O novo amir acabou de avassalar o resto da
Península e regulou os tributos que os vencidos deviam pagar».
Chama-lhe Abdu-I-aziz, que o Prof. Dr. David Lopes (Apêndice
da 8.ª ed. daquela «História», vol. VIII, 305) corrige para Abde
Alaziz, aliás posteriormente aglutinando, como aparece nos
documentos que estamos focando e na «Monarquia Lusitana» do célebre
Fr. Bernardo de Brito, os dois termos em Abdelaziz, com que
designa «o primeiro governador das conquistas árabes na Península» (cap.
«O Domínio Árabe», no vol. I da «História de Portugal» de Damião
Peres ou de Barcelos, e Índice).
As contínuas incursões e correrias
em que, reciprocamente, cristãos e muçulmanos se empenharam, nos
territórios compreendidos entre Douro e Mondego, até àquela
libertação, não teriam conseguido perturbar as incidências da
ocupação dos sarracenos nos ribas do Antuã. E daí a possível
explicação da permanência do nome atribuído à vila desses
documentos, do chefe árabe que, émulo de Tárique na clemência e
generosidade com que tratava os vencidos, poderia ter deixado
justificatida fama também pela «brandura que mostrava para com os
cristãos», salientada por Herculano e de que é espelho o tratado que
celebrou com o chefe godo Teodomiro, a quem desbaratara na batalha
de Lorca, e o casamento com Egilona, a viúva de Rodrigo, que, para
alguns, estaria na origem e seria a explicação dessa tolerância.
Poderia entrar-se em mais ou menos
plausíveis conjecturas sobre as razões dessa permanência, na
sucessão de dois ou três séculos e na alternância das «invasões e
repulsões que caracterizam a época, até à fixação do Mondego como
fronteira da monarquia leonesa.
Alexandre Herculano, na Nota I do
Livro VII, que integra o Tomo VI da 8.ª edição da «História», aponta
os dois citados documentos como conspirando, com outros, «em nos
revelar a existência da população rural nos territórios entre Douro
e Mondego, imóvel no solo, digamos assim, não obstante a mobilidade
ou antes incerteza das fronteiras entre leoneses e sarracenos».
Assim se explicará também a imobilidade da atribuição do nome, ainda
na segunda metade do séc. XI, à vila, termo que, então, no dizer do
nosso grande Historiador (vol. cit., 183) era «denominação genérica
tanto de qualquer granja, de qualquer aldeia ou aldeola, como das
mais importantes municipalidades, e que corresponde na sua
significação vaga ao moderno vocábulo povoação».
Se a designação de «vila de
Abdelaziz» – fosse qual fosse a sua categoria – não servia para
consagrar, de qualquer modo, até como fundador, o nome do chefe
árabe, a alternativa será a de se tratar de um proprietário
muçulmano convertido ou de um moçárabe, e a respectiva denominação
assim se teria mantido, no decurso daquele período, pelo menos até
às datas dos dois documentos em apreço.
Dá abertura às hipóteses a longa
exposição que ainda nos faculta o grande Escritor nacional, no
citado Tomo, ao dar-nos um magistral quadro das circunstâncias do
domínio sarraceno na maior parte dos territórios entre os dois rios
durante a primeira metade do século e a proliferação de nomes árabes
entre as populações.
Lopes Pereira, no seu referido
estudo (nota de págs. 243), já pôs a alternativa.
Não resistimos a transcrever o que,
naquela mesma Nota I, em desenvolvimento de passagem atrás
transcrita, o Mestre escreve a respeito do conteúdo dos dois
importantes documentos, esmaltados de nomes e patronímicos árabes, e
relativos a propriedades sitas nas mais diversas terras do actual
distrito de Aveiro, que são os títulos de inventário dos bens de
ricos homens da época, no primeiro, D. Gonçalo Viegas (Ibn Egas,
marcando a linhagem moçárabe), filho de Egas Erotis (Erotez), e
mulher D. Flâmula, no segundo, ainda D. Pelágio (ou Paio) Gonçalves,
seu filho:
«Consta deles que um certo Egas
Erotez, pessoa principal no distrito portugalense entre Douro e
Vouga, se retirara para o norte quando Almançor restabeleceu na
Beira o domínio de Córdova. Reconquistada por Afonso V uma porção de
território ao sul do Douro, Egas Erotez voltou ali e recobrou o
senhorio dos vilares e aldeias que lhe pertenciam, vindo a falecer
no reinado de Bermudo III. Seu filho Gonçalo Ibn Egas, casado com D.
Flâmula, e que já possuia por si e por sua mulher vários bens
naqueles sítios, reuniu a eles os de seu pai. Eram uns e outros
avultados, e de todos se ordenaram sucessivamente dois inventários
em 1050 e 1077, onde se individuaram quais os herdados e quais os
adquiridos. Estes extensos documentos aludem a um tal número de
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aldeias e povoações, que parece referirem-se a épocas muito próximas
de nós. Às vezes tece-se aí a história de algumas aldeias e casais,
dizendo-se que foram compradas por D. Gonçalo a N. que as houvera de
herança, o que evidentemente mostra como os muçulmanos tinham
respeitado a propriedade dos que se haviam submetido à sua
autoridade e como, no meio da luta entre sarracenos e leoneses, a
transmissão dos bens se fazia regularmente, quanto o consentia a
imperfeição do direito ou a quebra acidental deste mesmo direito num
outro caso.
«Há no inventário de 1077 (...) uma
circunstância que indica bem claramente a existência da população
rural fixa nesses numerosos vilares e casais cujo domínio directo
mudava pelos meios ordinários de transmissão. No ano da conquista de
Coimbra era morto D. Gonçalo, e seus filhos foram inquietados na
posse de algumas aldeias e herdamentos. Apresentaram eles um
inventário (talvez o de 1050) em que se continham os bens que seu
pai possuíra, tanto por herança como por compra. Ordenou-se
então um inquérito, e achou-se que o inventário estava exacto. Este
inquérito seria possível, sobretudo acerca dos bens de herança, se
nesses lugares onde se procedia a ele, não houvesse testemunhas
antigas que aí residissem e que soubessem a história de cada
propriedade durante a vida de três gerações, ao menos?»
O referido D. Pelágio Gonçalves
discrimina no segundo dos documentos as propriedades paternas in
riba uauga e diz ter reivindicado as suas herdades no tempo de
D. Sisnando, que era seu inimigo e dono da Terra de Santa Maria e de
Coimbra.
D. Sisnando era o célebre conde ou
cônsul, também de origem moçárabe, a quem Fernando Magno, como
prémio da sua valiosa ajuda na conquista, havia dado o governo, que
ele manteve até à morte, de vastos territórios, de Lamego até ao mar
e do rio Douro até aos últimos confins das terras dos cristãos, como
o mesmo diz em documento de 1088. Foi o «reconstituidor e povoador
de Coimbra», após a já falada reconquista da cidade, e o seu túmulo
encontra-se na Sé Velha.
Muito embora a nossa região não haja
merecido a atenção particularizada que a outras dispensou A.
Herculano, ao sabor da necessidade de invocação documental para as
suas Notas à «História de Portugal», o Mestre deixou-nos,
precisamente quanto aos dois aludidos documentos de 1050 e 1077 e às
personalidades neles em evidência, as preciosas referências que
ficam reproduzidas, além de outras, designadamente as que
identificam o conde Mendo Lucidez, do mais recente.
Esses mesmos documentos foram
incluídos, em reprodução integral, na «Colectânea de Documentos
Históricos» – vol. I – organizada pelo erudito investigador Dr. A.
G. da Rocha Madahil e que a Câmara Municipal de Aveiro
meritoriamente publicou em comemoração do Milenário – 1959.
Deles e de outros que referimos, a
alguns foram dadas também reproduções parciais e informações sobre
as suas personagens pelo Dr. Aguiar Cardoso, no seu citado
livro.
A carência de alusões a terras desta
região, em Herculano e nos autores mais antigos, incluindo «os dois
falsários», Brito e Lousada, como ele os trata, é apenas quebrada
por passageiras e meramente ocasionais referências do eminente
Historiador e de António Caetano do Amaral, como exemplos, a
documentos referentes a Aveiro e às doações régias das igrejas de
Avanca e Beduído ao bispo do Porto D. Pedro. O lugar de Pardelhas
duma alusão, no Tomo VIII da «História», às inquirições gerais de
1258, será do termo de Celorico de Basto, já pela sua colocação, já
também que naquele inquérito «pertence apenas diminuta parte aos
territórios do sul do Douro», como diz o mesmo Herculano.
Voltando ao nome de Abdelaziz e
admitido que seja qualquer dos termos da alternativa proposta para
explicar o seu aparecimento em terras de Antuã, a sugerir também a
ocupação dos Mouros, a persistência do topónimo, aliás a pequena
distância no tempo, após a expulsão dos invasores para lá do Mondego
(quanto a um dos documentos), não deverá constituir motivo de
estranheza, dado que outros nomes árabes surgem, ainda
posteriormente, a designar proprietários de vilas e herdades (e até
um castelo), para não falar dos nomes e étimos que ficaram,
designativos de terras e pessoas.
Exemplos flagrantes e expressivos se
colhem de António Caetano do Amaral («Memória V. Para a História da
Legislação e Costumes de Portugal», ed. da Livraria Civilização,
notas (a) de págs. 13-14): as doações de D. Sancho II, em 1191, do
Castelo de Abenemeci ao Mosteiro de Alcobaça e da herdade de
Fazalamir ao Mosteiro de S. Jorge.
Em circunstâncias idênticas ao caso
do nosso Abdelaziz, aparece-nos Almançor, o nome do que foi «o mais
terrível açoute do cristianismo espanhol depois dos primeiros
invasores árabes» – como o designa o grande historiador nacional –,
embora se lhe tenha de creditar, como àquele, a moderação e justiça
que usava para com os povos cristãos dominados: ainda no tempo de D.
Afonso IV, há uma quinta de Almançor, do seu porteiro-mor
Estêvão Esteves, a quem o rei concedeu que nela «possa pôr e fazer
aí umas casas fortes, em que se recolha, ele e a sua gente» (Amaral,
«Memória» cit., págs. 131, nota (b)).
A título de curiosidade, podemos
informar que o nome de Abdelaziz deve ser ainda corrente em
Marrocos: tinha precisamente esse nome, com igual grafia, um
marinheiro de barco marroquino ancorado no Teio,
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que deu que fazer à polícia de Lisboa com as suas turbulências, como
relataram os jornais da capital de 10 (ou 13) de Janeiro de 1969.
Onde se situaria a «vila de
Abdelaziz», a qual não volta, segundo cremos, a aparecer em qualquer
documento posterior?
Aceitando a plena identificação de
Ablaciz, do segundo documento, com Abdelaziz, do
primeiro, e apesar de por eles se presumir localizada em antigas
terras do actual concelho, então sobranceiras ao mar (ou já à Ria?),
apenas nos podemos certificar de que se situava nas ribas do
Antuã. Nada mais do que esta indicação expressa e a da
proximidade de Canelas e Rochico, enquanto não surgir (e até hoje,
apesar de os arquivos tanto haverem sido vasculhados, nada veio a
lume) algum documento definitivamente esclarecedor.
A designação constituirá uma
reminescência certificadora da passagem e permanência dos árabes
nestas paragens, da mesma maneira que ainda aparece nas Inquirições
de D. Afonso lI um Pedro Mouro como declarante, em Antuã,
sobre o padroado da Igreja e os regalengos, e no tempo de D. Pedro I
(ou já anteriormente) um Domingos Mouro como dono de uma
marinha de sal em Ovar – bem significativos da ascendência muçulmana
desses habitantes desta zona da beira marinha.
Como vestígios do «dilúvio arábico»
nesta região, será ainda interessante consignar os costumes do povo
que aponta o Sr. Dr. M. Rodrigues Simões Júnior («Couto de Arouca –
Moldes (...)», no «Arq. do Distrito de Aveiro», vol. XV, págs.
84-85), citando em abonação o «ilustre Amaral» – como lhe chama
Herculano – e a sua «Memória IV»: acrescentar, ao nomear uma pessoa
falecida, as expressões «que Deus levou» ou «que Deus tem em sua
companhia», a forma como as mulheres se sentam no chão, e o beijar o
pão, quando cai ao chão.
II – O COUTO DE ANTUÃ E AVANCA E A FORMAÇÃO DA RIA
DE AVEIRO
O Coutamento
Conhecidas são da história geral as
prolongadas lutas que, contra as tentativas espoliadoras do irmão, o
rei D. Afonso lI, escudado em antigos preceitos da lei visigótica,
houveram de sustentar as infantas D. Mafalda, D. Teresa e D. Sancha,
para manter os direitos senhoriais que lhes havia concedido em
testamento seu pai, D. Sancho I, dos mosteiros de Arouca e de Bouças,
a primeira, das vilas de Montemor e Esgueira, a segunda, e da vila
de Alenquer, a última.
Estarreja – S. Tiago de Beduído – O
«Senhor coberto» – Cruzeiro do séc. XVII
O casamento, em 1215, de D. Mafalda
com o malogrado «rei-menino» de Castela, Henrique I – não consumado
e pouco depois anulado pelo papa Inocêncio III, com fundamento no
parentesco dos cônjuges, e recolhendo-se a infanta ao seu convento
de Arouca – teria determinado D. Afonso lI a ceder nas suas
pretensões reivindicadoras e a tomar até sob a sua protecção os bens
da irmã, em cuja posse reintegra, conformando-se com as disposições
de última vontade do pai.
Já no reinado de seu sobrinho D.
Sancho I, a Rainha Santa Mafalda doou ao convento de Arouca, de que
era padroeira, o de Bouças, e, tendo falecido em 1 de Maio de 1256,
no seu testamento, em que fala das éguas que tinha in Antoana,
havia confirmado a doação.
D. Afonso III, não obstante as
questões que chegou a ter com sua tia, acabou também por lhe
respeitar a disposição e a memória e, por carta passada em Coimbra,
no 1.º de Setembro de 1257, que começa por dirigir aos juízes de
Bouças, Cabanões e Antuã, dá ao mosteiro de Arouca as dívidas velhas
de que ela era credora.
O documento, que nos interessa ainda
por indiciar a independência das terras de Antuã, antes de coutadas,
em relação ao julgado de Figueiredo, no qual já as vimos considerar
integradas, revela a excelente disposição do Rei para com o convento
de Arouca e sua
/ 12 / abadessa, por certo no
desenvolvimento das negociações que culminaram com a carta de couto
do mês imediato.
Na verdade, por carta datada de
Coimbra do oitavo das calendas de Novembro da era de César de 1295
(25 de Outubro de 1257 da era de Cristo), o Bolonhês doou a Dona
Maior (ou Mor) Martins, abadessa do convento do mosteiro de Arouca
da Ordem de Cister, esse Couto das Vilas de Antuã e Avanca, «com
todos os seus regalengos, e com todas as terras cultas e incultas e
com todos os seus termos novos e antigos e com todas as suas
entradas e saídas e com todos os montes, fontes, pastos e águas e
pescarias e com todas as suas pertenças e com todos os seus direitos
reais».
A carta de doação e couto (da qual
há duas versões publicadas no «Arquivo») escrita pelo notário da
Corte Domingos Peres (ou Pires), vem referendada, segundo o costume,
pelas principais entidades senhoriais, eclesiásticas e civis do
reino, que a confirmam e testemunham. Intervieram como confirmantes:
o alferes-mor da Corte, D. Gonçalo Garcia; o mordomo-mor da Corte,
D. Egídio Martins; o «tenente» da Terra de Santa Maria, D. Martim
Afonso; o de Sousa, D. Afonso Lopes; o de Lamego, D. Diogo Lopes de
Baião; o de Riba-Minho (ou Ribeira de Minho), D. André Fernandes; o
de Bragança, D. Gonçalo Ramires; o de Panóias, Gonçalo Mendes; o de
Transserra, Martinho Egídio; o arcebispo de Braga (D. Martinho
Geraldes) e os bispos de Lisboa (D. Aires Vasques), de Coimbra (D.
Egas Fafes), do Porto (D. Julião Fernandes), da Guarda (D. Rodrigo
Fernandes), de Lamego (D. Egas Pais), de Viseu (D. Mateus) e de
Évora (D. Martinho I). Figuram como testemunhas: D. João Peres de
Aboim, D. Mem Soares de Merlô, D. Egas Lourenço da Cunha, João
Soares Coelho, Lopo Rodrigues, vice-mordomo, Mendo Miguel,
vice-sobrejuíz, João Fernandes, vice-chanceler, e D. Estêvão Anes,
chanceler da Corte.
Trata-se da gente mais grada da
época, que fazia parte do conselho do rei e anda referida nas obras
históricas mais desenvolvidas, entre ela se contando os partidários
do Conde de Bolonha nas lutas que levaram à deposição do irmão, D.
Sancho II. Alguns dos prelados confirmantes pertencem ao grupo de 7
que, passados anos, vai a Roma, onde três deles morrem, apresentar
queixas ao Papa (Gregório X), contra o rei, o que o determinou a
convocar cortes (Santarém, 1273).
Por carta de 9 do mesmo mês e ano,
já o rei havia mandado ao abade do mosteiro de Pedroso e aos juízes
da Feira, de Cabanõés e de Figueiredo, a Tomé Fernandes, «seu
homem», a D. Estêvão de Erada e ao tabelião de Figueiredo, coutar
aquelas vilas e alçar aí os padrões nos lugares que D. Egídio
Martins, seu mordomo, e D. João Peres de Aboim, haviam marcado. E a
linha de demarcação, traçada no título de doação, não coincidindo,
de uma parte, com o rio, mas passando-lhe a sul, é hoje, à distância
de 7 séculos, difícil de reconstituir com precisão, sobretudo pelo
intercorrente desaparecimento de muitos dos antigos topónimos.
O que se pode assentar, em precária
versão do latim bárbaro usado no documento e característico dos
escrivães medievais, enquanto D. Dinis não tornou obrigatório o uso
da língua vulgar portuguesa nos processos e actos judiciais – «latim
barbaríssimo» lhe chamou Herculano – é que, formada por 14 padrões
(uma das formas de coutar), começava entre S. Martinho e
Junqueira de Antuã, «onde entra a água de Junqueira no Antuã»
(aí, um padrão), ia ao cimo (cimorro) de S. Martinho (outro
padrão, no próprio lugar), a Vales (aí um marco), a Marmoirais
(um padrão), a Laceiras (outro), à lomba das Laceiras (actual
Laceiras de Cima?), à mamoa Coutadeira (outro padrão), à
mamoa de Fontão de Lobos (actual Fontão?), à pedra da Foz
de Crastelo (outro), seguia pela veia do rio Antuã, saía do rio
«onde entra água de Centeais», ia à encruzilhada de
Mosteiró (Mosteiróó, Mosteiroo) (outro padrão, às mâmoas
entre Antuã, Centeais e Beduído (outro), ao Outeiro de
Fravega (outro), ao marco de Silveira (outro padrão), ao
cimo do Vale do Cão (outro) seguindo à estrada entre Avanca e
Dagarei (Válega) (outro), pelo Vale do Cão ao porto
de Mosteiró, passava o rio e ia ao Outeiro de Fontela
(outro) e ao Porto de Fontela e seguia pela veia até entrar
na «veia que se chama de Ovar».
Esses os limites da primitiva
circunscrição estarrejense.
A configuração do território do
Couto seria a de um polígono irregular, com uma abertura para o mar
(ou a Ria?), entre o Antuã e a veia (canal) de Ovar, isto é,
abrangendo, mais ou menos, as terras da actual comarca de Estarreja,
com a exclusão de alguns lugares do norte da freguesia de Avanca,
que eram do termo da Feira, e de Centeais, parte de Salreu e as
freguesias inteiras de Canelas e Fermelã, que pertenciam ao julgado
de Figueiredo (Bemposta), ao qual vem também a aparecer subordinado
o «julgado de Pardelhas», dado, com aqueles e o de Cabanões, como
seu confinante, nas Inquirições de D. Afonso IV.
Logo o início da linha divisória é
impossível de localizar actualmente, ao menos disfrutando da
relativa e precária margem de certeza com que ainda se conseguirá
segui-Ia até ao «canal de Ovar», apesar da ausência da maior parte
dos topónimos decorrentes.
Tornar-se-ia necessária a
determinação do local onde se achava o primeiro padrão (inter
Sanctum martinum et anthoanam juncaria quomodo intrat aqua de
juntaria in anthoanam – como se diz no título constitutivo).
Surge, porém, a incerteza quanto ao sítio e à água de
Junqueira, a qual se amplia quanto ao curso final do Antuã, à
sua própria foz e às ignoradas circunstâncias em que, naquele tempo,
se apresentariam e seriam marginados.
/ 13 /
O problema da formação da Ria
Por essa época, na presunção de
alguns abalizados autores (Dr. A. G. da Rocha Madahil, in «Arquivo
do Distrito de Aveiro», IV, 71, a propósito de «A Carta de Doação de
Alquerubim em 1090», que contém a mesma expressão (prope litore
maris), referida ao rio Vouga, que aparece no documento de 1078,
servindo para localizar as vilas do Rochico, de Canelas e de
Fermelã, e referindo o rio Antuã; e Comandante Rocha e Cunha,
conferência de 1923, «O Porto de Aveiro», em separata da «Revista de
Obras Públicas e Minas», 2.º ed., 1959, e outra – «Relance da
História Económica de Aveiro – Soluções para o seu problema
marítimo, a partir do século XVIII», publicada em «O Povo de
Aveiro», de 27 de Julho de 1930, e mais tarde em separata) – «a Ria
não existia ainda então e um braço de mar penetrava numa vasta
reintrância da costa», o cordão litoral ainda não se havia levantado
da Torreira para o Sul no séc. XII e «As forças naturais exteriores
– ventos dominantes, correntes marítimas e marés – no seu trabalho
incessante, começaram a fazer sentir a sua preponderânica sobre as
forças interiores – correntes fluviais – talvez a partir do século
16.º».
Onde estaria a foz do Antuã – hoje a
cerca de 6 km de Estarreja e então provavelmente mais recuada – e
seus juncais, desaguando o rio naquele braço de mar ou golfo?
As bulas com que os papas Pascoal II
(1115) e Calisto II (1120) vieram dar satisfação às reivindicações
territoriais que o célebre Bispo D. Hugo, do Porto, instantemente
formulara contra os Bispos de Braga e de Coimbra, adoptam o Antuã,
aproveitando-lhe todo o curso, como linha divisória, na maior
extensão, entre as duas dioceses continantes do sul, e põem-no a
descer «ao Mar Oceano», o que levou o erudito investigador Abade
Arede («Arquivo do Distrito de Aveiro», X, 275, nota) a «supor a não
existência, nesse tempo, da Ria de Aveiro, ou a possível confusão, à
falta de informações precisas, da Ria com o Mar Oceano».
O pormenor não convenceria,
isoladamente considerado, sabendo-se que, no inquérito paroquial de
1758 – à distância de mais de 6 séculos – muitos dos párocos da
região, apesar da formação e existência definida da ria de Aveiro,
onde efectivamente desagua o rio Antuã, ainda o dão a «meter-se» ou
a «morrer» no mar.
Porém, há mais quem entenda não
existir ainda, naquele tempo, a Ria, como laguna fechada. As
informações fornecidas e as opiniões sustentadas por aqueles
autores, corroboradas foram pelo ilustre polígrafo Dr. Jaime
Cortesão que, em estudo incluído no volume «Os Factores Democráticos
na formação de Portugal», das suas Obras Completas – Portugália –
1964, págs. 65, assim se pronuncia:
«Nos séculos XI e XII o Vouga era de
barra aberta, e diz Edrisi que muitos navios lhe subiam o curso; só
no segundo destes séculos começaram a tomar vulto os cordões
litorais que haviam de formar a laguna de Aveiro. A localização da
cidade, como centro de actividade marítima, não é anterior ao século
XIII e só no XIV começa a ganhar a importância, que vai culminar na
centúria seguinte, durante a qual se eleva à altura dum dos portos
mais prósperos e activos do País. Nos começos do século XII a linha
da costa devia passar muito perto de Ovar, Estarreja, Vagos e Mira;
e com efeito ainda neste século esta última vila era porto de
comércio, onde se cobravam direitos de tráfico externo, como adiante
veremos».
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Estarreja –
Capela de Stº António – Brasão dos Morgados da Casa da Praça,
padroeiros do altar-mor de S. Mateus e Santa Brígida, erecto a
quando da sua mudança em 1735. |
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Não conhecendo directamente fontes
documentais, apenas citamos opiniões daqueles que tiveram ensejo de
se debruçar sobre o problema, ainda sem solução definitiva.
A questão continua a ser,
actualmente, de pôr:
O cordão litoral haver-se-ia
levantado, ou continuado, desde a Torreira, a partir do séc. XII, ou
a Ria, carecendo de não menos de 25 séculos para se formar, segundo
as deduções de ordem geológica e hidrográfica que o distinto
engenheiro que foi o Conselheiro A. F. de Araújo e Silva (1843 –
1908) teve ocasião de expender em um artigo publicado no jornal «A
Locomotiva», de 11 de Setembro de 1883, transcrito por Marques
Gomes, no volume «Os Meus Mortos – Recordações e Memórias», que é o
Tomo III da «Biblioteca Histórico-Política», publicada, sob a sua
direcção, pela empresa do «Campeão das Províncias» em 1894 –, já
existiria ao tempo dos mencionados documentos e, portanto, formado o
mesmo cordão litoral?
O Comandante Rocha e Cunha, na sua
citada conferência de 1923, considerava «suficientemente demonstrado
que a existência da duna exterior é posterior a 1200». E, em planta
que diz ter organizado e com que ilustra, entre outras, o seu
trabalho (n.º VIII), mostra as várias posições que a barra teria
assumido no seu avanço para sul, a partir da localização, naquela
data, já na referida praia, a sul de S. Paio (e não a norte), até às
outras que dá como historicamente averiguadas: em 1500, a sul de S.
Jacinto e norte da actual; em 1584, a sul desta; em 1643 (quando foi
construído o «Forte velho»), 1757 (regueirão – com a data errada),
1762 e 1838 (barreta), a sul, na Vagueirai em 1685 e 1778, duas
próximas, entre a Vagueira e a «barra velha» de Mira, a qual indica
também, em 1756; em 1802, entre essas duas e a «barra velha»; e,
finalmente, a actual (1808).
Inclui ainda pequenas plantas
complementares mostrando a ausência da ria (canal) de Mira (e,
portanto, do cordão de areias respectivo) em 1500, quando havia
/ 14 /
uma «barra ampla, profunda, limitada ao norte pela duna onde os
mareantes edificaram a Capela da Senhora das Areias, e ao sul pela
duna da Gafanha». Em uma dessas plantas, extraída dum mapa da
província da Beira, de 1762, presumível cópia de outro muito mais
antigo, nota-se uma abertura franca, mas entre dois cordões, que se
figuram acentuadamente oblíquos em relação à linha de costa, e esta
muito irregular, partindo de Vagos, o do sul. Em outra, de um atlas
francês de 1695, os cordões são menos oblíquos, e em mais duas
dessas plantas, há apenas um cordão, o do Norte, evidenciando-se um
golfo interior semeado de pequenas ilhas.
Na conferência de 1930, o Comandante
Rocha e Cunha mantém o seu ponto de vista, amplia as suas conclusões
e, na separata publicada no mesmo ano – Imprensa Universal, Aveiro
–, fez incluir reproduções de vários mapas mostrando a evolução da
Ria e da Barra a partir da data de 1200, entre os quais as pequenas
plantas que inseriu na separata da conferência anterior, além de
outras, de que damos a lista, reproduzindo as legendas do autor:
Págs. 4 – Costa de Portugal segundo
o Portulano de Petrus Visconte, 1318 – «Cremos que o portulano,
datado de 1318, nos representa uma costa muito posterior ao domínio
romano, mas bastante anterior à sua data, possivelmente no séc. IX»
– diz o autor a págs. 7.
Págs. 6 – O antigo litoral entre
Espinho e o Cabo Mondego, segundo a carta geológica de Delgado e
Choffat – Posição da barra desde 1200 até 1756.
Págs. 11 – A laguna segundo o mapa
de Alvares Secco, 1560. Não existia o braço de Mira.
Págs. 14 – A laguna, segundo o mapa
de Carpinetti, 1762, reprodução de outro mais antigo de época em que
não existia o braço de Mira (séc. XV e XVI).
Págs. 18 – A laguna segundo o mapa
de S. Sanson, 1695. Reproduz com pequenas diferenças o mapa de Secco,
de 1560.
Págs. 21 – A laguna segundo o mapa
de Alvaro Secco, de 1600. Indica o canal de acesso à laguna já
orientado para SO., depois da crise de 1575.
Págs. 24 – A laguna segundo a obra
do P. Placide Augustin Desclosé, quando o cordão litoral atingiu a
altura do Forte Velho, cerca de 1643.
Págs. 25 – A laguna segundo o
cosmógrafo-mor João Teixeira, 1648. O cordão litoral tinha atingido
a altura do Forte Velho.
Págs. 29 – Planta indicando o local
ao sul do Forte Novo, escolhido por Mardel em 1756 para o corte do
cordão litoral, as obras projectadas para fixar a barra aberta em
1757, em frente ao Forte Velho, por Sousa Ribeiro, e o corte,
proposto por Polchet, em S. Jacinto, em 1759.
São ainda do mesmo trabalho do
distinto marinheiro e publicista as seguintes informações:
«No séc. XII já temos notícia da
barra da Torreira, um novo cabedelo avançara do Carregal para o sul
até àquele local».
«No séc. XV tinha atingido [o cordão
litoral no avanço para sul] o local onde hoje está a S.ª das Areias
e existiam todas as ilhas do delta, mas separadas por canais
profundos onde podiam navegar navios de alto bordo».
Difícil continua a se formar opinião
definitiva sobre a idade da ria de Aveiro como laguna fechada (ou do
cordão de medos que a fecha), tão embaraçosa se apresenta a opção,
que até agora nos é facultada, entre 4 ou 5 e 25 séculos ou um
número indeterminado de milhares de anos...
Que a barra, como comunicação entre
a Ria e o mar, tem mudado no decurso daqueles 6 séculos, várias
vezes, de posição, e as dunas litorais de orientação, é de
averiguação certa quanto àquela e deduz-se das mencionadas plantas
quanto a estas.
A localização da barra nas
proximidades (ou ao norte) da Torreira em 1200, ou aí (ou no sítio a
que viesse a ser dado o nome) «no princípio da monarquia», conforme
a opinião do Comandante Rocha e Cunha, que diz baseada em antigos
documentos e radicada pela «direcção do curso primitivo do baixo
Vouga, inflectindo para NW», com evidência nesse sentido, pode
afigurar-se contraditória, sob dois aspectos, com a apregoada e
coeva inexistência da duna exterior para sul, que o antigo e
prestigioso capitão do porto de Aveiro e publicista ilustre também
sustentou.
Na verdade, se barra existia,
tinha de abrir-se entre dois trechos de dunas, sendo um deles o que
se admite como já formado do Carregal à Torreira. Outro teria de
existir, a sul (ainda que não tão extenso que merecesse menção),
como indispensável para completar a boca da barra.
Sob segundo aspecto, todavia, sendo
de pequena extensão – embora, na hipótese, suficiente para formar a
barra – não se tornaria necessária, já que aos muitos navios que
subiam o curso do Vouga, no dizer do geógrafo árabe Edrisi, conforme
a mencionada citação de Jaime Cortesão, estaria livre o acesso
directo ao mar, inclusivamente costeando e flanqueando pelo sul o
promontório que aquele cordão de areias constituía, salvo se (e
quando) obstáculos houvesse impeditivos (baixios, o cordão litoral
em vias de formação?) que forçassem a demanda da conjecturada barra.
O Sr. Dr. F. Ferreira Neves publicou
no «Arquivo do Distrito de Aveiro» (vol. XIII, págs. 20 e segs.) o
seu esclarecedor «Resumo Histórico da Barra de Aveiro», que fez
acompanhar de vários documentos e da «Memória Descritiva» de Luís
Gomes de Carvalho. Aí não se
/ 15 /
debate o problema da formação da Ria, apenas se tratando da Barra.
Mas já no vol. I, 219, nos havia dado a sua «Breve História da Barra
de Aveiro» e aí afirma que «o cordão litoral deve ter sido formado
anteriormente ao séc. X»; e, em nota de págs. 21 do estudo
anteriormente citado, observa que na hipótese de aquele cordão ainda
não existir da Torreira para o sul no séc. XII, «não podemos dizer
que neste século e ainda em alguns seguintes houvesse uma barra
propriamente dita de Ovar e Aveiro».
E o P.e Miguel de Oliveira opina (no
mesmo «Arquivo», vol. II, a págs. 114-115), a propósito da pesca,
que «os velhos documentos não têm designação própria para este
acidente do nosso litoral» – referindo-se à Ria, que diz os antigos
considerarem ainda mar. Mas, não só os antigos, pois, como já
tivemos ocasião de apontar, grande número dos párocos que
responderam ao inquérito de 1758, entre os quais muitos há que lhe
chamam já ria e outros rio (de Ovar ou de Aveiro) e ainda alguns nem
se lhe referindo ou mencionando em seu lugar os canais principais, a
que chamam rios – dão o Vouga e o Antuã a desaguar no mar.
O mesmo investigador, embora sem
tomar abertamente partido, admitindo, contudo, a existência da Ria
(«diferente da actual, com largas entradas marítimas»), trouxe
(artigo citado), além das mencionadas bulas do séc. XII, outros
documentos que poderão servir para o estudo do problema, embora sem
constituirem elemento decisivo para triunfo de qualquer das teses em
presença.
Um deles, de 1103, situa Esgueira à
beira da foz do Vouga, perto do mar; em outro, de 1182, uns casais
da vila do Rochico (Fermelã) são situados in liture maris oceani,
Vauga flumine discorrente ipsaque villa introitum ejus in more ab
Orientali parte non multum eminius intuente.
Esta referência indiciará a Ria ou o
golfo atlântico, a «barra aberta» de Jaime Cortesão?
Um terceiro documento, que damos
como simples elemento de informação, é uma carta, de 15 de Abril de
1510, em que o rei D. Manuel faz mercê a D. Manuel Pereira (depois
conde da Feira) dos direitos relativos «a toda a pescaria que se
fizer na costa do mar da foz de Espinho até à foz do Vouga».
Pelo mesmo título (presumivelmente)
de 1182, atrás referido (P.e Miguel de Oliveira, rev., vol. e art.
citados, págs. 27), são doadas ao mosteiro de Grijó propriedades
situadas entre Canelas e Fermelã «subtus monte mansione frigida
nuncupato in liture maris oceani Vauga flumine discorrente».
Ainda, seguidamente, acrescenta o
aludido investigador o extracto de mais um documento, do ano
seguinte, de outra doação de bens no mesmo lugar – «subtus monte
qui propter heremi magnitudinem vocatur mansio frigida, secus litus
maris oceani et ostium, que Vauga flumen intrat in mare» –
dando-nos, além do mais, a ideia do ermo, da selva, que era a zona.
O nome daquele monte – Mansão Fria
(ou Mesão Frio) – que aparece em antigos documentos, servia de
expressão referenciadora da localização de propriedades e terras
desta região da beira-mar, como usados eram para tal efeito,
acompanhando o do rio discorrente, os castros mais próximos (da
Branca, de UI, de Ossela, de Recarei) e a estrada (a antiga Via
Militar romana Emínio – Cale) erroneamente designada por mourisca.
As mansiones (albergarias)
figuravam, com as mutationes (mudas) e as stationes
(estações), além dos apeadeiros e dos marcos miliários, entre os
cómodos com que os romanos dotavam as suas magníticas estradas.
Tudo indica que o monte dos dois
citados documentos, sobranceiro a Canelas e Fermelã, se situasse na
região de Albergaria-a-Velha. A albergaria instituída na Carta de
Couto e Foral de S. Pedro de Osseloa, em Novembro de 1117, pela «lnfanta
D. Teresa, Rainha de Portugal», é aí chamada de Mejamfrio
(António
/ 16 / Caetano do Amaral, «Memória V.
Para a História da legislação e Costumes de Portugal», ed. da
livraria Civilização, págs. 9, nota), e o P.e Miguel de Oliveira
informa (artigo citado, págs. 26) que Albergaria-o-Velha era chamada
em antigos documentos Albergarie veteris de Meigonfrio.
Aparecem, assim, documentos
medievais a situar terras de Fermelã e Canelas, ou entre ambos as
vilas, no litoral, e a pôr o Vouga a desaguar no mar, parecendo
servir para abonar a tese da mais recente formação do cordão de
areias exterior que veio a fechar a Ria.
Para se aceitar, porém, o pleno
triunfo desta tese, faltará coordenar razões científicas que
porventura expliquem como os apontados agentes naturais, no decurso
de milhares de anos, reservaram as forças da sua influência
acumuladora para as virem a exercer mais aceleradamente, apenas em 5
(com o máximo sugerido de 6) séculos, ao menos desde a Torreira a
Mira. A própria formação dos medos, que se haveria, plausivelmente,
processado com maior lentidão, de Ovar (ou Espinho) até à Torreira,
teria facilitado e propiciado, por sua vez, o levantamento mais
rápido, a partir daí, do segundo (ou do restante) cordão, para sul?
Em conclusão:
Quanto às alterações do litoral e à
formação da Ria, no que se podem considerar de acordo, declarada ou
implicitamente, todos os observadores é em a linha da costa
oceânica, remotamente, passar pelas apontadas terras hoje na margem
oriental da Ria, considerada em toda a sua extensão. Os sinais de
incidência marítima, que têm sido trazidos a lume, são evidentes,
como se mostra das mencionadas obras e outros trabalhos de
investigação.
Faltam os elementos de informação
decisivos para se determinar até quando o mar banhou directamente as
terras da primitiva linha litoral e desde quando passaram elas a ser
interiores da laguna fechada. Os documentos e elementos escritos que
os antigos nos tivessem deixado, são de escasso ou nulo
esclarecimento.
Na posição actual do problema e dada
a contrariedade das duas versões em conflito, apenas podemos
considerar-nos habilitados com duas certezas, mas quanto à barra:
primeira, a barra achava-se em 1643 na Vagueira, e já na segunda
dinastia, e em 1756 um pouco ao norte de Mira e, portanto, até aqui
formado, a essa data, e anteriormente, o cordão de dunas a encerrar
completamente a Ria; segunda, a barra, aberta entre areias
movediças, beneficiando de esporádicas e escassas obras, andou
erradia ao longo de 6 séculos (1200-1808) e desse cordão, entre a
Torreira e Mira, fechando-se ou tornando-se pouco praticável por
acção dos mesmos agentes naturais que formaram, através dos séculos,
a duna litoral (com as desastrosas consequêncios conhecidas, nos
séculos XVII e XVIII, para a navegação e o comércio, a produção de
sal, a agricultura e até a salubridade pública da região, com o
paludismo a dizimar as populações ribeirinhas), e abrindo-se onde a
incidência do mar e a pressão das massas de água acumuladas pelas
maiores enchentes do Vouga e dos outros rios ia encontrando um ponto
mais propício de ruptura.
E assim se manteve esta situação
instável, até que foi fixada em 1808 e nela se empenharam as obras
de engenharia que continuaram até aos nossos dias.
Temos, até aqui, lidado com os
elementos de investigação recolhidos no «Arquivo do Distrito de
Aveiro»e extraídos das conferências do Comandante Rocha e Cunha e da
obra de Jaime Cortesão.
Só depois de elaboradas as notas que
atrás deixamos, resolvemos ampliá-Ias, no contacto com as obras de
maior desenvolvimento que até hoje foram publicados sobre a Ria, o
Vouga e os outros cursos de água que nela afluem, e as terras da
Região, e podem fornecer aos estudiosos elementos de relevante
interesse. limitamo-nos, compreensivelmente, a dar transcrições, que
servirão a quem, privado das referidas obras, ofereça curiosidade o
conhecimento do assunto nelas versado.
Os autores modernos que produziram
os mais notáveis trabalhos sobre a Ria, o Dr. A. Amorim Girão, que
foi distinto Professor da Faculdade de letras de Coimbra, e o
ilustre Aveirense, Dr. Alberto Souto, opinam pela sua mais antiga
formação.
O primeiro, em «A Bacia do Vouga»
(1922), falando da antiga linha da costa (anterior à Ria), diz-nos
que ela «em parte coincidindo com a via férrea, tirada de Esmoriz
por Ovar, Estarreja, Salreu, Fermelã, Angeja, Esgueira e Aveiro até
Vagos, atravessando o Vouga muito no interior, separará duas zonas
completamente diversas, tanto pela sua idade, como pelo seu modo de
formação. A Oriente, ficam os terrenos antigos, triássicos,
cretácicos ou ainda pliocénicos, e a Ocidente, sobrepondo-se a estes
com mais ou menos evidência, formações recentes, quaternárias, de
sedimentação marinha e em parte fluvial.» Acha um pouco exagerado o
cálculo do Eng.º Araújo e Silva (que já referimos) e opina que «a
formação definitiva da ria deve ser coeva da construção dessa
estrada [a estrada romana entre Águeda e Porto, embora
cognominada de mourisca]», que «Em qualquer das hipóteses,
porém, este singular acidente litoral não deve ir além da era
cristã, não sendo unicamente os geólogos, como diz o Sr. Marques
Gomes, mas sim os geólogos e arqueólogos que têm de passar a
certidão da sua idade», e que «por grandes
/ 17 /
vicissitudes passou a zona lagunar, diversas devendo ter sido as
soluções de continuidade no cordão litoral, através das quais a ria
comunicava com o mar, e diversos também os pontos onde nela
desembocava o Vouga.»
E na «Geografia de Portugal» – 3.ª
ed., 1960, págs. 102 – deixa afirmado: «Nos recuados tempos a que
podem levar-nos os mais antigos testemunhos históricos a ria de
Aveiro não existia ainda; nem é natural que, se já existisse na
época romana, tivessem os escritores coevos deixado em silêncio o
singular acidente, onde a Natureza prodigaliza ao homem tão variados
recursos.»
Nesta última obra, a págs. 106,
insere uma «Reconstituição hipotética do litoral junto da foz do
Vouga na época proto-histórica», já reproduzida na «Bacia do Vouga»,
e o «Desenho da ria de Aveiro em mapas antigos», que nos dão uma
ideia genérica da evolução histórica do nosso litoral.
O Dr. Alberto Souto, nas suas
«Origens da Ria de Aveiro» (1923) – obra esgotada e que só tarde
tivemos ocasião de compulsar – oferece-nos um amplo estudo da laguna
e da sua história e da formação das terras e da vida dos rios da
nossa região, incluindo também um mapa da «reconstituição da costa
entre o cabo Mondego e Espinho, depois do estabelecimento da rede
hidrográfica e antes da formação do delta do Vouga e do sistema
lagunar da Ria de Aveiro, segundo os dados fornecidos pela carta
geológica».
Aí se mostram Ovar, Estarreja,
Aveiro e Mira na linha costeira, o rio Antuã a desaguar directamente
no mar, e o Vouga, o Cértima e o Aguedão em pronunciada reintrância
marítima, «esteiro», «espécie de mar interior», como lhe chama o Dr.
Amorim Girão e cuja existência considera evidenciar-se «na zona
alagada e pantanosa onde assentam as pateiras de Fermentelos,
Frossos e Taboeira». O Dr. Alberto Souto, depois de reproduzir estas
considerações, com as quais concorda, diz: «...simplesmente julgo
poder acrescentar que a esse esteiro se seguiu o delta [do Vouga] e
a este o distendimento do cordão litoral».
Esta a opinião do ilustre aveirense,
que atrás havia afirmado, após extensa justificação geológica e
geográfica:
«Antes, pois, de se formar o último
cabedelo, ou seja o cordão de areias onde hoje assentam as praias do
Furadouro, Torreira, S. Jacinto, Barra, Costa Nova do Prado, Mira e
Tocha, cuja construção deve ter sofrido grandes intermitências,
experimentado grandes vicissitudes, demorado longos séculos para
chegar à continuidade e alinhamento presentes e determinado
desastrosas perturbações na vida económica ribeirinha, é bem
provável que o Vouga tivesse desaguado por um delta, embora
imperfeito.
«E neste ponto divirjo eu dos
autores que consideram a Ria um mar interior primeiramente fechado
pelo distendimento do cordão litoral e depois preenchido pelas
aluviões dos rios que aí trazem as suas águas.»
Continua mais adiante rebatendo as
opiniões dos que sustentam ser a Ria de Aveiro moderna e posterior
aos Romanos, afirmando que o cálculo do Eng.º Araújo e Silva «não
anda longe da verdade e que a separação da laguna ou encerramento da
reintrância costeira onde se estabelecera o delta do Vouga pelo
cordão litoral, isto é, a formação da Ria na sua fase presente, deve
ser obra anterior à dominação romana» e que «temos ainda muita
liberdade para atribuirmos três dezenas de séculos à Ria de Aveiro.»
Passa, no final do seu valiosíssimo
trabalho, a analisar a questão sob o ponto de vista arqueológico,
histórico e documental. Cita as referências do Dr. Amorim Girão aos
«monumentos pre-históricos que circundam o estuário e que marcam a
linha do primitivo litoral, onde teriam vivido as populações
neolíticas e proto-históricas, segundo as modernas ideias
autóctones, em grande parte eivadas da mestiçagem dos imigrantes e
dos invasores» – monumentos que descobriu «...e em que até à data
ninguém reparara (...) a Pedra Moira, a S. E. de Aveiro, a
Mamoa de Requeixo e a Mamoa de Estarreja, além de outros
congéneres, restos de longínquas civilizações.»
Prossegue, com a análise e
comentário do «...mais antigo e valioso escrito que a este respeito
possuímos (...) a Ora Maritima, de Festus Avienus, poema
nebuloso que Martins Sarmento comentou na parte respeitante a
Portugal e à Galiza, num volume notavelmente erudito, publicado em
1880.»
Trata-se de uma célebre composição
poética que tem sido objecto de longos e profundos estudos e
comentários também entre vários autores estrangeiros e «parece
reproduzir as informações de um périplo fenício ou cartaginês do
séc. VI a. C.». Interessa a Portugal na parte em que alude a uma
Pelagia insula, sobre cuja duvidosa localização os autores se
têm pronunciado divergentemente.
Martins Sarmento opinou que se devia
situar em Aveiro, mas teria desaparecido, visto não encontrar nada
que se parecesse com a ilha descrita.
O Dr. Amorim Girão adopta também a
opinião de se tratar de uma ilha desaparecida, em frente à foz do
Vouga.
Mas, o Dr. Alberto Souto, extraindo
da descrição da ilha um argumento em favor da sua tese da
antiguidade da Ria, afirma que «sendo aqui o lugar da Pelagia
insula é bem de ver que nesse tempo a Ria tinha já muito da
feição lagunar do presente», pois teria chegado à conclusão de se
tratar de uma dessas «ilhas enormes de bajunças, juncos, canísia e
ervagens ondeando com o vento e com a agitação produzida pela
/ 18 /
passagem dos barcos» que ainda hoje se vêem na laguna: seria «um
desses prados das nossas águas salobras».
E, quanto à localização, interroga:
«...nas proximidadês da foz do Vouga? na actual Murtosa? junto à
planura da Gafanha?» – concluindo por a dar como situada «em
qualquer das emergências do delta do Vouga».
Continuando a sua exposição, e
relacionando-a com a tão discutida Talabriga, inquire onde
seria então a foz do Vouga. Citando a opinião do Dr. A. Girão,
segundo o qual a foz do nosso rio dominante ficaria mais distante da
actual, muito para o interior, de harmonia com a sua tese da
inexistência da Ria no tempo dos Romanos, o distinto investigador
aveirense contrapõe que, em face do referido poema, «...outra
conclusão é forçoso tirar (...) o fenómeno descrito por Avienus nos
versos 164-171 do seu poema só era possível no estuário do Vouga ou
no local ocupado hoje pela Ria de Aveiro, onde o carácter lagunar se
mantém ainda tal qual o descreve o autor do Ora Maritima na
sua Pelagia Insula.»
Numa separata publicado em 1933 – «A
Pelagia Insula de Festus Avienus» – o Dr. Alberto Souto,
mantendo a sua opinião em apoio de Martins Sarmento quanto à
localização aveirense, rebate as conclusões a que, entretanto, havia
chegado o investigador alemão Schulten, de a Pelagia Insula
ser a Berlenga.
O Dr. Luís Filipe de Lencastre
Schwalbach Lucci, que foi assistente da Faculdade de Letras de
Lisboa e professor do Liceu de Pedro Nunes, na sua obra «Estudos
Geográficos – Alterações Litorais – A Ria de Aveiro», 1918, cita já
a opinião do Comandante Rocha e Cuha sobre a barra da Torreira, fala
na corrente norte-sul que roça o litoral de quase todo o País e
teria activado o desenvolvimento do cabedelo norte, «cujas raízes se
prendem para as bandas do Furadouro», trata do alteamento ou exalção
do fundo da Ria proveniente da precipitação de areias dos dois
cabedelos, às toneladas, «juntando-se a esta colmatagem as aluviões
do Vouga e dos outros ribeiros», o que leva a calcular em 3 cm a
elevação sofrida anualmente (cálculo que já se conhecia de Francisco
Regala) – mas não opina nada de concreto sobre a idade da laguna.
Marinhas de sal
Na busca e possível utilização de
elementos determinativos da época da formação da Ria e como
contributo, embora indirecto, para a almejada averiguação, não será
dispiciendo o conhecimento da existência de marinhas de sal nos
domínios do Couto de Antuã e Avanca, mais de um século após a sua
instituição.
Na verdade, tal existência é
assinalada, ainda no séc. XIV, em documentos reproduzidos pelo Dr.
M. Rodrigues Simões Júnior, no seu citado trabalho, a págs. 112-113:
um, da era de 1408 (ano de Cristo de 1370), é o título do contrato
entre a Abadessa do Convento de Arouca D. Maria Lourenço de
Portocarreiro e Domingos Afonso e Martim Domingues, pelo qual estes
se obrigaram a fazer a marinha de sal a que chamavam de Are Alta,
cumprindo anterior carta de emprazamento, com a obrigação de dar
«metade do sal que Deos nela der» e o serviço da barca a cargo dos
caseiros; outro, do mesmo ano, com Gonçalo Domingues, relativo à
Marinha da Gesteira (que estava erma), fazendo-se do sal dois
montes, escolhendo um a Abadessa, que daria «auxílio para fazer a
barca», para o serviço da dita marinha, e 50 libras em dinheiro e um
moio de trigo.
Das condições contratuais,
evidencia-se que já haveria para o Convento senhorio, no
emprazamento ou parceria das marinhas, dificuldades em aliciar
«caseiros», presumivelmente devidas à quebra das condições
favoráveis à feitoria do sal, inclusive quanto à obtenção da
indispensável salinidade, a qual diminuição se deve ter operado
paralelamente à formação do cordão arenoso do litoral (ou ao
encerramento das suas aberturas?). Teriam sido precisamente as
sucessivas deslocações da barra para sul que influiriam no gradual
desaparecimento de tais condições favoráveis à produção e,
consequentemente, levariam à extinção das marinhas.
E daqui poderão os partidários da
mais recente formação da Ria extrair argumento...
A averiguação prende-se também com a
das respectivas marinhas com que foi vendida uma herdade na
«vila do Rochico», entre as vilas de Fermelã e Canelas, na zona do
rio Antuã, «perto do litoral do mar», pelo já citado
documento de 1078.
São estes os únicos documentos que
conhecemos relativos a salinas na área do nosso Couto e julgado.
Na sua busca de documentos
referentes às marinhas de Ovar, que as dão em Dagaredi (Válega),
no lugar do Cabedelo e outros, o P.e Miguel de Oliveira não os
encontrou posteriormente a 1315, presumindo-as extintas à data do
foral respectivo, de 1514, apesar de este aludir ainda a direitos de
sal.
O foral de Antuã, de 15 de Novembro
de 1519 é omisso a tal respeito. E essa omissão, paralela às
referências contidas em forais coevos, de outras terras onde ainda
se continuava a fabricar sal (Aveiro, Vagos, Soza), confirmará a
extinção das marinhas nesta zona.
Entretanto, para esclarecer, em
relação ao já apurado, o estudo das salinas na zona norte da ria de
Aveiro, documentos recentemente publicados («Aveiro e seu Distrito»,
n.º 5, págs. 34-37) pelo Sr. P.e Aires de Amorim, dão notícias da
existência, no concelho de Ovar, de marinhas velhas ainda nos
séculos XV e XVI, e da abertura de novas no início do seguinte, o
que, sobretudo
/ 19 / quanto a estas últimas, poderá
parecer estranho, dada a distância da barra, nessa época. Haverá, no
entanto, que tomar em consideração a circunstância de a freguesia de
Ovar se estender «até à barra», tendo de admitir-se, nesse vasto
alfoz, à margem da «cale que vem de Aveiro» – pois confinante era de
todas as últimas das praias ali referenciadas – a perduração
de condições favoráveis para «fazer marinhas de sal». E era por esse
tempo, segundo informa o Comandante Rocha e Cunha, que o porto de
Aveiro tinha um movimento marítimo de cerca de 60 navios por ano, de
comércio e de pesca, em grande parte estrangeiros e muitos para
embarcar sal, e se mantinha na Ria uma indústria salineira de
considerável importância, mercê das satisfatórias condições da
barra, o que se reflectiria no interior.
As referências dos aludidos
documentos a outras cales, outras marinhas, praias, ilhas e
ilhotes – além de «barcas e navios que aportam a Ovar, para carregar
sal para outras terras», e já assim do Foral – induzem a conclusão
de que, mantendo-se nesses tempos, e ainda, portanto, no princípio
do séc. XVII, uma notável exploração salineira no termo de Ovar, se
achavam já formados, por outro lado, os canais, francamente
navegáveis, e os restantes acidentes que foram compondo a Ria e
existiam já entre o território do Couto de Antuã e Avanca e o cordão
litoral do domínio daquele termo.
As marinhas pertencentes ao Couto –
pois que em ambos os instrumentos referidos se cuida expressamente
do «serviço da barca» – deviam situar-se em ilhas, à margem da
veia ou canal de Ovar. Os topónimos são inseguros: apenas
o de Gesteira aparece hoje a designar vários locais banhados
pela Ria.
Tudo isto vem a propósito da
demarcação do Couto de Antuã e Avanca, onde se criou e desenvolveu o
antigo concelho e a comarca de Estarreja.
Quanto ao seu início, a «água da
Junqueira» que entrava no Antuã era, com evidência, qualquer regato
afluente do Rio. Seria o seu leito uma das depressões hoje secas ou
por onde ainda correm ínfimos cursos de água: a antiga «levada do
Queirós», no lugar de Antuã, em Salreu, que vai dar ao rio no sítio
denominado – pode ser-se levado a dizer expressivamente – «Junças»,
ou outro, mais abaixo, de mais escassa alimentação, que, através do
lugar do Ribeiro da ladeira, ali vai dar na Cova da Raposa ou
lagoeiro, ou ainda outro, entre esses dois ou para juzante,
impossível de determinar exactamente na actualidade?
Porém, o termo da linha de padrões,
exarado na Carta do couto (...et intrat in venam que vocatur de
Ovar) é de molde a dar-nos a ideia segura de como se achava já
então formada a Ria, pelo menos para norte da Torreira: a referência
concreta à veia de Ovar, leva-nos a concluir que o golfo marítimo, o
«braço de mar» que, remotamente, enchia a reentrância onde se veio a
fechar a laguna, se encontrava aí substituído pelos referidos
acidentes.
Será um elemento informativo para o
debate, ainda não encerrado, sobre a formação da Ria e sua história.
Aliás, guiando-nos pelas plantas
publicadas pelo Comandante Rocha e Cunha e pela notícia que este
autor nos dá e aqueles documentos de Ovar confirmam, da franca
navegação praticada na bacia da Ria, e das demais circunstâncias já
apontadas, a «barra ampla, profunda» de 1500, bastante para sul,
pode considerar-se, com mais propriedade, a entrada de um verdadeiro
golfo, que se apresentava semeado de ilhas, algumas das actuais,
porém, ainda submersas, como as de Monte Farinha e outras, isto é,
na zona central, em 1276, conforme se conclui de documento referido
na citada Conferência de 1923.
Esse seria o golfo, o «braço de
mar», ainda provavelmente com mais larga abertura, que existia à
data dos mais antigos documentos conhecidos e da Carta de couto,
admitindo-se que a zona norte tivesse beneficiado da sua pronunciada
interiormente, quanto à mais distante fixação de tais acidentes, em
relação à restante bacia da Ria.
Bem poderia ser a esse golfo,
perfeitamente caracterizado, numa fase intermédia da formação da
Ria, entre a primitiva e recuada linha da costa – passando pela
ampla reintrância marítima que banhava os terrenos antigos – e o
mais recente encerramento da laguna com o cordão litoral (e uma
barra por abertura), que os velhos documentos chamavam mar.
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Estarreja –
Monumento aos Mortos da Grande Guerra (1914-1918), no largo do
mesmo nome, inaugurado em 1921. |
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O fim de uma contenda famosa
Para finalizar este bosquejo
histórico do Couto de Antuã e Avanca (limitado, por agora, aos
primeiros tempos), importa dar, embora resumidamente, alguns traços
das vicissitudes por que ainda passou a instituição no tempo do
próprio rei doador, que a tentou revogar, sustentando contra o
Convento donatário longa demanda, cujo processo, num «rolo de 20
varas e meio palmo», entre muitas centenas de pergaminhos, se
encontra na Torre do Tombo, desde a primeira encorporação do
cartório de Arouca, executada por Augusto Soromenho em 1858, que
viria a resultar da visita de Alexandre Herculano, 4 anos antes, nas
circunstâncias relatadas pelo Dr. A. G. da Rocha Madahil, no
«Arquivo do Distrito de Aveiro», IV, 121.
O coutamento foi condicionado à
permuta com Bouças e Vilar de Sando, que a abadessa D. Mor e o seu
Convento efectivamente vieram a dar ao rei, com a confirmação papal,
por carta de 1 de Novembro do mesmo ano de 1257.
/ 20 /
Mas D. Afonso III, mais tarde, pretextando que a permuta se achava
viciada de «dolo e fraude» por parte das freiras, tentou tirar-lhes
os coutos de Arouca e de Antuã e Avanca, o que levou a Abadessa,
alegando que, sem eles, nao podia sustentar as 110 religiosas que
havia no Mosteiro, a solicitar a superior intervenção do Papa
(Clemente IV), que mandou, por breve datado de Perusi aos 9 de Março
de 1266, ao Abade de Alcobaça, ao prior de Santa Cruz e
mestre-escola de Coimbra, fossem os juízes no pleito que o rei
intentava contra o Convento para reivindicar «os coutos e
herdamentos de Antuã e Avanca e Arouca».
O Rei, vindo a desistir da demanda,
resolveu entregar à Abadessa e ao Convento do Mosteiro de Arouca os
referidos coutos e herdamentos, por carta que bem revela a liberdade
de julgamento de que gozava e com que se dignificava o alto tribunal
da Corte e o acatamento com que o próprio monarca se submetia
exemplarmente às suas decisões, senão o desígnio de se eximir à
incidência da jurisdição papal...
Pelo manifesto interesse que, sob
mais do que um aspecto, do seu conhecimento pode advir,
permitimo-nos reproduzir as duas cartas, uma a 18 e outra de 20 de
Fevereiro de 1274, pelas quais o Rei põe termo à longa e volumosa
contenda, tal como no-Ias facultou, no seu valioso trabalho, que
deixamos referido, o ilustre investigador Sr. Dr. M. Rodrigues
Simões Júnior:
Conuçuda Causa seja a quantos
esta Carta virem, e ouvirem que como eu Dom Affonso pela Graça de
Deos Rey de Portugal e do Algarve, fise demanda à Abbadessa e ao
Convento do Mosteiro de Arouca por Letra e por Juizes do Papa
sobrelos Coutos e herdamentos de Antoáã, e dAvanca e de Arouca
ssagravaron de mij em minha Corte por essa demanda por embargos que
lhes fazia sobre esses Coutos e sobre esses herdamentos que lhes
havia dados e coutados por minhas Cartas que de mim tem. Eu mandei
que a minha Corte catasse a ellas o seu Direito, e outro sim a mim o
meo Direito sobre esta contenda, em a minha Corte sabuda a verdade
deste feito, e vistas as Cartas de huma parte, e da outra veio por
Direito e julgou os davanditos Coutos e herdamentos ao Mosteiro de
Arouca e mandou a mj que eu me partisse e quitasse desta demanda que
lhes fazia Cá non havia hj direito, segundo as Cartas que de mj teem
e que eu deixasse a Abbadessa e ao Convento do Mosteiro d Arouca os
davanditos Coutos e herdamentos de Antoãã e d Avanca e de Arouca com
todos seos termos, e com todos seos Direitos, e com todas ssas
pertenças assj como he contheudo em minhas Cartas que de mj teem
d'esses Coutos e d'esses Logares e que des aqui adiante nunca Ihis
passe contra elles e eu ouvido este Juizo louvjo e outorgo e
confirmo assj como de juso dito he e mando entregar esses Coutos e
esses Logares de Antoáã, e de Avanca, e de Arouca à Abbadessa e ao
Convento do Mosteiro de Arouca com todos seus termios e com todos
seus direitos e com todas ssas pertenças asj como lhos havia dados e
coutados por minhas Cartas que de mj teem, e prometo a boa fé por mj
e por meus successores a gardar essas Cartas, e non veir contra
ellas nem contra este Juizo em nenhuma maneira e recundo aa Carta do
Papa e aos Juizes porque demandava esses logares e a toda acçom e a
todo o preito e a todo o direito que a mj pertence ou poderia
pertencer por qualquer guisa sobrelos ditos logares e sobrelos ditos
Coutos por essa Carta, ou por juizo dos juizes dessa carta que des
aqui a diante a mj non possão prestar nem a ellas enpecer e que esta
non venha en duvida, dou lhes esta minha Carta seelada do meu seelo
eem testimonjo deste feito. Dada foi a Carta em Santarem aos dezoito
dias de fevereiro. EI Rey o mandou por seos ricos homens, e pelos
outros do seo Conselho a quem encomendou o Feito do Corregimento
quando recebeo o mandado do Papa. Jannes Eanes a fez. Era de mil
trezentos e doze.
/
21 /
Alfonsus dei gratia Rex Por et
Algarbij vobis Stephano petri meo Almoxarifo et tabellionj de terra
sanefa marie et Judici de Anthoáá salutem. mando vobis quod visa
ista carta vos cum isto meo portarão Johane de Barca (atore
presentis intreguetis Abbatisse et Conventuj Monasterij de Arouca.
herdamenta et cautos de anthoáá et avanca cum suis terminis et cum
suis pertinencijs sicut continentur in cartis quas de me tenent.
unde aliter non faciatis. Et mando quod abbatissa et Conventus vai
aliquis pro eis teneant istam cartam. Datum Sanctarene quode
vicesimo dia. ffebruarij. Rege mandante par suos Riquos homines et
par alios de suo consilio. quibus comisit factum correctionis super
mandato Dominj papa. Jacobus iohanis notuit. Era millesima
trecentesima duodecima.
(Lugar do selo pendente).
E assim se consolidou no domínio do
Convento de Arouca, que viria a durar 6 séculos, o antigo núcleo do
moderno concelho e da actual comarca de Estarreja, encerrando-se (ou
com a própria carta de couto) o que se pode ter, a partir das
origens (que não será ousio inédito, nem documental mente
desautorizado, fazer remontar à discutida referência Ecclesia
Antunane do célebre Parochiale suévico de 569), como o
primeiro período da sua história. Para esta se podem sistematizar
mais
três: o seguinte até à Restauração,
quando surge a mudança de nome, daí ao liberalismo, pelas
extraordinárias transformações que o movimento operou, e o
posterior.
III-ANTIGAS POSTURAS DA CÂMARA DE ESTARREJA
Tal como nos modernos, nos antigos
concelhos, uma das principais atribuições e preocupações dos que, na
época, se tratavam, genericamente, de «oficiais da justiça»,
confusas as funções judiciais com as administrativas, era a
elaboração de posturas, a que procediam anualmente, em conjunto com
os «homens da governança», que eram os «juizes e homens bons que
costumavam andar no regimento», para tal fim convocados.
Era o escrivão da Câmara quem
redigia esses «acórdãos e posturas», que ficavam sujeitas à
confirmação do provedor da comarca e à fiscalização do corregedor.
Tinham a vantagem de serem renovadas todos os anos, o que permitia a
assídua actualização das normas administrativas em conformidade com
as circunstâncias e a experiência.
Vimos dar hoje notícia de algumas
dessas providências legislativas municipais que, pouco depois da
Restauração, os juizes, vereadores, procurador e os outros «homens
da governança» do antigo concelho de Antuã, então já mudado o nome
para Estarreja, tomaram e acordaram para o seu governo.
Contêm essas sábias determinações,
além de medidas de polícia e de carácter penal, outras, muito
apreciáveis, de fomento, e até nelas se provia quanto ao conveniente
abastecimento dos viajantes que passassem nesta vila pela estrada do
Porto, do conjunto das prescrições se colhendo interessantes
informações a respeito de alguns costumes da época.
Começaremos pelas posturas de 1645:
POSTURAS que os ofesiais da
Camara e homens da governansa fizerão para este anno de 1645
Anno da nasimento de noso sõr
ihs Xpõ de mil e seis sentos e quorenta e sinquo annos aos des dias
da mes de fevereiro do dito anno na villa de estareia e no paso do
conselho della em Camara aonde estavão prezentes os iuizes diogo
tavares e antonio mateus em este conselho e seu termo o prezente
anno por sua magestade com os vereadores afonso pires e fernão pires
com o procurador do conselho martinho ioão do boinheiro logo ahi
elles ditos iuizes vereadores e procuradores do conselho com estando
prezentes muitos homens da governasa ao diante asinados diserão que
querião fazer acordos e pusturas pera bon governo do conselho etara
[sic - estareia] deste prezente anno os quoais fizerão na maneira e
forma seginte de que tudo mandarão fazer este auto E eu diogo da
Cunha escrivão da Camara o escrevi
Acordarão que nenhuma pesoa
que vender vinho acoartilhado mande amostra a Camara por outre senão
a trara pesoalmente pera aver iuramento se a mostra he do mesmo
vinho que hade vender
Acordarão que nenhuma pesoa
venda vinho acoartilhado sem lisensa da Camara que dela levara feita
pelo escrivão della e asinada por dous ofesiais os quoais lha darão
sendo o vinho do douro maduro bom a des rs o coartilho e o da tera e
anadia a oito rs o coartilho sendo bom e não meresendo os ditos
presos os ditos ofesiais lhe porão o preso pera baixo como lhes
pareser que val e a pesoa que o contrario fizer vendendo em outra
forma pagara mil rs pela primeira ves e dous pela segunda
Acordarão que todo o vendeiro
que mesturar vinho que venda com outro ou tiver duas pipas ao torno
page mil rs pela primeira ves e dous pela segunda pagos da cadea
/
22 /
Acordarão que toda a pesoa que vender vinho acoartilhado sera
obrigado a estar senpre em caza enquoanto o vender com pena de
quinhentos rs
Acordarão que nenhum vendeiro
venda vinho sem trazer as medidas aferir em ianeiro e iunho e as
trarão per suas pesoas pera averem iuramento sejam as praprias por
que ãa de vender ou se tem outras com pena de quinhentas rs
Acordarão que nenhum vendeiro
venda vinho na estrada de santiago que he a do porto e na cabesa do
conselho sem se vir obrigar a Camara a ter vinho pão e carne e peixe
e palha e sevada e o que fizer o contrario encora em pena de dous
mil rs
Acordarão que nenhuma pesoa
venda vinho en cargas a vendeiro que vender vinho acoartilhado com
pena de mil rs e o vendeiro que lho conprar pera vender page dous
mil rs porcoanto as cargas que a este Cº ven são de vinho verde e os
vendeiros que lhos conprãa he pera mesturar com os maduros
Acordarão que nenhuma pesoa
venda nem peze com pezos e medidas que não seiam aferidos em ianeiro
e iunho com pena de dozentos rs e o mesmo todas as pesaas que
tiverem medidas de pão e pezos ou outra quoalquer cauza por que aião
de conprar e vender as venhão aferir no dito tenpo com pena de
dozentos rs
Acordarão que todos os
moleiros venhão aferir seus maquieiros em ianeiro e iunho com pena
de dozentos rs
Acordarão que todos os
tesedeiros venhão aferir suas varas e pezos em ianeiro e iunho com
pena de dozentos rs
Acordarão que todos os
padeiros não fasão pão senão de quoatro e oito e dezaseis rs com
pena de dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
falar malensinada a outra ou lhe chamar algum nome roin page
quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
fizer portal em tapagem alhea page dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
fizer caminho por tera que o não deva sendo de pe page dozentos rs e
se for com gado caro au quavalgadura quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
apanhar erva em campo ou entrepão alheo page sem rs e sendo fº
familia seu pai por elle e criado seu amo por elle
Acordarão que [toda a pesoa
que] for apanhar bosta a terra que não for sua page dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
for achada em vinha ou pumar alheio ou orta page dozentos rs e sendo
fº familia seu pai por elle
Acordarão que toda a cabesa de
gado ou cavalgadura que for achada em novidade alhea sendo de dia
page sem rs e de noite dozentos e sera condenado com iuramento do
dono da novidade
Acordarão que toda a ovelha ou
cabra que for achada em novidade alhea page sinquoenta rs cada
cabesa e sera condenado com iuramento do dono da novidade
Acordarão que todo o porco que
for achado em novidade ou canpo alheo page sinquoenta rs
Acordarão que toda a pesoa que
achar patos em novidade os posa matar sem por iso encorer em pena
Acordarão que toda a pesoa que
prometer a outrem dia de serviso e lhe faltar page sem rs e sendo de
bois e caro dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
se achar com portal e não tiver tapado sua obrigasão sendo em teras
galegas page dozentos rs e nas marinhas quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
tomar barco sem lisensa de seu dono page sem rs
Acordarão que toda a pesoa que
der em gado alheo page sem rs
Acordarão que toda a pesoa que
cavalgar em cavalgadura alhea sem lisensa de seu dono page
quinhentos rs
/ 23 /
Acordarão que toda a
pesoa que tomar agoa de regadio a outrem em tempo q não for sua page
quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
trouxer cão solto em tempo de uvas ou de milho zaburo page dozentos
rs
Acordarão que toda a pesoa que
tomar tomadia nos montes maninhos deste C.º ou neles lavrar ou cavar
ou caminhos ou resios sem lisensa da Camara page dous mil rs
Acordarão que toda a pesoa que
não abrir seus agreiros e recolher os enxuros page sem rs
Acordarão que toda a pesoa que
tiver conboro em caminho ou estrada o pique e apare com pena de
dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa da
freigezia de veiros que não for abrir a Ribeira do dito lugar sendo
o pregão lansado page quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
não for aos caminhos publicos sendo pera iso avizados ou lansado
pregão page dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
não fizer orta tendo aonde page dozentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
lavar em fonte ou a ella for buscar agoa pera barar eira page sem rs
Acordarão que toda a pesoa que
for apanhar iunquo a iunqual alheio sem lisensa do seu dono page sem
rs
Acordarão que toda a pesoa q
der em filho alheio page sem rs
Acordarão que nenhuma pesoa
vendime sem lisensa da Camara pera o que se lansara pregão com pena
de quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
for sitada pera vir dar testemunha em ausão q ponha o procurador do
conselho e não vier dar seu testemunho page a pena em que ouver de
ser condenada a pesoa contra quem se pozer a ausão
Acordarão que nenhuma pesoa
mande ovelhas a marinha de ianeiro por diante ate outubro com pena
de quinhentos rs
Acordarão que toda a pesoa que
cavar nos caminhos publicos ou nelles cavar baro page quinhentos rs
E por esta maneira ouverão
elles ofesiais estes acordos e posturas por feitas e as julgarão por
sentensa e se mandarão se cumprisem como nella se continhão e
asinarão E eu diogo da cunha a escrevi
ant.º mateus
fernaõ piz [de
cruz]
Djoguo tavares [de cruz]
martin ioão [de
cruz]
p. dor
Dos de Rezende
Aº
pires [de cruz]
vereador
fr.co
da Sylua
Antº de mtos
frco da silua
dos iorge [de cruz]
Antº alves [de cruz]
Os nomes das assinaturas de cruz
mostram-se feitos pelo punho do escrivão.
Nesse ano, em Setembro, veio a
Estarreja o Dr. Felix Rebelo de Carvalho, «do Desembargo do Paço de
Sua Magestade e seu Corregedor com alçada em a mui nobre e sempre
leal cidade de Coimbra e suas comarcas» – entre as quais a de
Esgueira, em que se integrava esta vila e concelho – e aqui fez
correição.
E, ou fosse pela informação que,
segundo a Ordenação Filipina, lhe competia dar sobre «se havia nas
Câmaras algumas posturas prejudiciais ao povo e ao bem comum», ou do
Provedor, pois não se pode alcançar a origem da determinação, o que
é certo é mostrar-se registada no mesmo livro da Câmara, em
Dezembro, uma ordem quanto à suficiência do corpo de delito
/ 24 /
em que se deveria basear o procedimento contra os donos de
gado que fosse encontrado em propriedade alheia e para o qual, nos
termos de dois dos capítulos das mencionadas posturas, bastava o
«juramento do dono da novidade», sem qualquer testemunha.
Damos a seguir a mencionada ordem,
sem a parte final (roto o papel):
Os Juizes e vereadores não
podem fazer posturas e acordãos contra a Ordenação por qm onde a lej
dispoem não pode dispor o homem E inda sua magde quando quebra a lej
he necessario fazer expressa e particular derrogação della assi qn
os acordãos q o dono e senhor da propriedade q achar em dano o gado
alheo nella os possa por si so acoimar por seu Juramto não he boa
nem se pode guardar por pto a lej e Ord. do livro, 1, ttº dispoem q
o pode e deve fazer com hua testemunha pello q assi se farão as tais
pª se poderem condenar pellas Justicas
E assi mais não podem os
mesmos donos e senhores das propriedades dizer ao procurador do
Cons.º qn vio o gado de foam em seu pam ou vinhas e pumares e então
qn elle procurador os assente e acuze pello q pode aver de odio e
inimizade e por esse cazo dizer qn assente a tal coima... o mesmo
soó poderce fazer na forma da Ord. indo diante ao escrivão os ... O
modo de encoimar na forma de direito e Ord. e provizoins he qn os...
[segue-se a parte
rota do papel]
Nos anos de 1654 a 1656, os
«acórdãos e posturas que os oficiais da Câmara e os homens da
governança fizeram» mantêm quase todas as de 1645, com algumas
variantes e novas transgressões, entre estas: o pôr marcos ou
moirões nos caminhos públicos ou neles fazer covas, o não fazer os
covais nas freguesias ou deles tirar gado sem licença da Justiça, o
cortar pinheiros, castanheiros, carvalhos ou outras árvores, ou as
esfrançar, nas terras que não forem maninhos, o apanhar lenha em
propriedade alheia, com carro ou à cabeça, mais pesada a multa no
primeiro caso.
A venda de vinhos e seu
condicionalismo, em que são de notar as preocupações de ordem
higiénica, eram objecto de especial cuidado por parte da justiça e
administração municipal da época, que, pelos almotacés, se fazia
incidir com maior ou menor rigor sobre os «vendeiros», e punindo
mais duramente a especulação (como agora se diria) nos preços, os
quais, tabelados, somente podiam sofrer as alterações que fossem
determinadas em câmara, por meio de nova postura (em 1654, a 13 rs.
o do Douro, e a 10 o de Anadia; em 1655 e 1656, os preços de 1645).
Estarreja – Painel de azulejo na parede
da escadaria nobre dos Paços do Concelho (1953).
Nas posturas de 1655, foi
estabelecido que ninguém poderia vender vinho aquartilhado (a
retalho) sem se obrigar previamente na Câmara a vendê-lo todo o ano
e pelo preço fixado e nas demais condições, sob «pena de 2000 rs.
pagos na cadeia».
Entre essas condições, novas,
também, em relação às de 1645, já as posturas de 1654 obrigavam os
vendeiros «a ter as medidas lavadas, cobertas com toalha lavada e
carqueja no funil, muito bem limpo» e a «ter o Regimento de acordos
que lhes tocassem pregados na casa onde vendessem vinho, feito e
assinado pelo escrivão da Câmara», em ambos os casos com pena de 500
rs.
Passando a «vendeiros obrigados»,
vêem-se estes a assinar os respectivos termos de «obrigação», com os
juizes, vereadores e procurador do Concelho, que em 1655, eram,
respectivamente: Domingos de Resende e Fernando Antão; João Vaz,
João Alves e Domingos João; e Domingos de Pinho. Assim se obrigaram
os vendeiros de todo o Concelho: Manuel André Cardadeiro e Maria
Francisca, de Pardilhó; Manuel Rodrigues, moleiro, Manuel Gomes,
Maria André, viúva, José João, Manuel Rodrigues, o Barbeiro, e
Domingos Francisco, o Tutoro, de Veiros; Manuel Nunes e Maria Dias,
de Avanca; Leonardo da Costa, de S. Sebastião, e Isabel da Cunha,
dos Carvalhos, ambos ditos de Adou (por Avanca?); Belchior do Couto
e Manuel Domingues, de S. Tiago, para a Vila; Polónia André, dos
Sedouros (Bunheiro); António Rebelo, do Monte (Murtosa); e Domingos
Gonçalves, de Santa Cristina de Salreu, então do concelho de
Bemposta.
Logo, porém, em 1656 se pôs de parte
o sistema dos «vendeiros obrigados». E as razões constam do
seguinte:
Acordo q os officiais da
Camera fizerão sobre os Vend.ros de V.º / / Anno do nasimento de
nosso sõr jezus christo de mil e seis sentos e sincoenta e seis
annos na Villa de Estareja e passo do Concelho della em camera aonde
estavão os juizes marcos da silva Agostinho joão e os Vreadores
Andre joão e affonsso dias e o procurador do Conçelho Antonio pinto
elles ofticiais por queixas que os moradores deste Comcelho lhe
havião feito em rezão de não aver vinho e se não obrjgarem elles
officiais fizerão os acordos com alguns os homens da governança
seguintes
/
25 /
Acordarão que não
ouvesse neste comselho vend.ros obrigados em rezão da falta q avia
de V.º e não aver quem se quizesse obriguar e que toda a pessoa que
quizesse vender V.º o podia fazer mas q seria sempre com ficar
obrigado has pusturas atras feitas porq. ellas ficavão em seu vigor
e somente revogavão ha que tratava q ouvesse vend.ros obrigados / /
E por esta maneira ouverão o dito acordo por feito e asinarão fr.co
Cardozo p.co o escrevj [Francisco Cardoso Pacheco, escrivão da
Câmara].
[Seguem-se as assinaturas; havia
outras, que se não descobrem]
afonso dias
Marcos da silua
Dos de pinho
Ant.º
pinto [de cruz]
procurador
Manoel Rangel
Juam Rodrigez
Agostinho ioam
Mateos aº
Andre io
pº antão [de cruz]
manoel tauares
mel ioão [de cruz]
A acta não menciona o dia e mês, mas
deve ser de Abril.
E, em Junho, os oficiais de justiça
e homens da governança deliberam alterar os preços para 11 rs. o
quartilho, o do Douro, e 9 rs. o de Anadia, «por queixas que havia
que não havia vinhos em rezão da postura estar baixa e os vinhos
caros.»
___________________________
(1) - Notas:
Excertos dum trabalho monográfico
sobre Estarreja, em preparação. Como base documental da parte
referente ao Couto de Antuã e Avanca, servimo-nos da publicada no
«Arquivo do Distrito de Aveiro», especialmente no vol. XX, 90-136 (e
separata), pelo ilustre investigador Sr. Dr. Manuel Rodrigues Simões
Júnior, de Arouca, a quem rendemos a nossa homenagem: «Mosteiro de
Arouca – Couto de Antuã e Avanca – Subsídios para a sua história».
De resto, a falta de existência real
do Arquivo Distrital, aonde possam ir parar todos os espécimes
relativos à região aveirense, retidos e disseminados por vários
arquivos do País, e enquanto se mantiver apenas criado no jornal
oficial, mas sem instalações nem recheio, coloca os investigadores e
curiosos de antigualhas que vivem longe das fontes documentais
directas e impossibilitados de a elas ascenderem, em situação de
lamentável orfandade, a que só a colecção da cotada e benemérita
Revista pode prover e em grande parte já ocorre, graças ao
devotamento dos seus ilustres directores e dos mais dotados
colaboradores, ao longo de 34 anos. |