Acesso à hierarquia superior.

N.º 8

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1969 


Estarreja no Passado

APONTAMENTOS PARA A SUA HISTÓRIA

I – SUGESTÕES GODAS E ÁRABES.

II – O COUTO DE ANTUÃ E AVANCA E A FORMAÇÃO DA RIA DE AVEIRO.

III – ANTIGAS POSTURAS DA CÂMARA DE ESTARREJA  (1)

 

Pelo Dr. Eduardo Alberto da Costa

Advogado e Jornalista

  

I – SUGESTÕES GODAS E ÁRABES

 Documentos medievais

Em qualquer trabalho de investigação que se tente sobre as origens de Estarreja, de que o histórico rio Antuã é atributo e o povoado do seu nome foi núcleo, como circunscrição, o estudioso há-de ter de lidar com os documentos medievais que, entre os incluídos na conhecida Colecção Portugalie Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, se acham já publicados, ou integralmente ou apenas nos trechos referentes a terras desta região, ou mencionados por autores de obras menos particularizadas, designada mente por Alexandre Herculano, na sua fundamental «História de Portugal», como veremo150s.

O investigador regional Lopes Pereira, para o seu trabalho «Couto e Julgado de Antuã» (iniciado no vol. XI, 241, do «Arquivo do Distrito de Aveiro», e que ficou incompleto) colheu e aí deixou reproduzidos, nas partes que interessavam, entre outros, quatro desses documentos, cujo relevo avultará da sua leitura e do desenvolvimento que o seu estudo possa sugerir:

Ano de 1050. Doc. 378 – In rriba de antuana ereditate que fuit de ioazino. in villa abdelazizi sua rratione ab integro tam de paremtela quam eptiam et de conparadela de matan et de suos filios. item in abdelazizi suas rrationes integras.

Ano de 1077. Doc. 549 – ln riba de antuana tres quintas de ablacizi de ganantia. et quarta de canellas et riu sicu quos fuit de mandan. Istas hereditates de auolenga et de ganantia uendidi illas domno gundisaluo de ille comes menendo luci qui illa terra inperaba sub gratia de ille rex domno adefonso quia ille dux tenuit regalengo et condadu et mandamento.


Estarreja – Capela de Santo António da Praça – 1735 – Da Municipalidade desde 1881.
 

Ano de 1078. Doc. 557 – ... ... ... facio kartula uendictionis de ereditate mea propria que abeo in uilla que dicent riu siccu et ab iacentia ipsa uilla inter uilla que dicent fermellana et uilla que uocitant kanellas et subtus kastro rekaredi discurrente ribulo antuana prope litore maris ...   ...   ... et cum suas marinas.

Ano de 1088. Doc 708 – Sicut et uendimus ereidate nostra probia que habemus ... rentes nostros et mater nostra nunillo et de abiorum nostrorum et abe iacentia ipsa ereidate ter... portugalensis subtus castro abranka discurrentem rribulo antuana in uilla que uocitant antuana uendimus ad uos de illo kasale de rodoriut floilaz de .........

 

Recaredo

Ao localizar a herdade vendida, o documento n.º 557 situa-a debaixo de (à vista de, no sopé de) um castro cuja localização foi objecto de dúvidas entre alguns investigadores que tiveram oportunidade de lidar com documentos em que surge a designação (Dr. Aguiar Cardoso, «Terras de Santa Maria», 53-55; Dr. Arlindo de Sousa, «Arquivo do Distrito de Aveiro», VIII, 216).

Porém, em recentes e autorizados estudos historiográficos da região, nota-se concordância quanto à identificação do Castro Recaredi (Kastro Rekaredi) ou monte Castro Recarei: será o Castro de S. Martinho da Gandra, no vizinho concelho de Oliveira de Azeméis.

Obliterado de há muito o topónimo, ainda aparece mencionado, em muitos desses instrumentos medievais de séculos posteriores, tanto dos Diplomata et Chartae, / 8 / como fora da Colecção, para marcar a situação de propriedades e povoações, embora não contíguas ou próximas, mas afastadas umas das outras e do próprio Castro, dispersas por diversas circunscrições: naquele documento, Fermelã, Rochico e Canelas; e em outros títulos, Loureiro, Avanca, Válega, S. Vicente de Pereira, Cabanões, Muradões e S. Donato (Ovar), Cucujães (na carta de couto do Mosteiro), Souto, Agoncida, Mosteirô, etc.

Tirando o nome do rei visigótico Recaredo, que em 589 se convertera ao Cristianismo, o Castro conservá-lo-ia durante séculos, dominante das planícies circundantes até ao Oceano, e eminente, nos dois sentidos do vocábulo, entre as demais povoações fortificadas das redondezas, na zona da Via Militar romana Emínio – Cale (o castro da Branca, o castro de UI, o castro de Ossela, os mais próximos de nós, como exemplos).

Daí, presumivelmente, a preferência referenciadora.

De notar que, no documento n.º 708 da referida Colecção, de 1088, o castro indicador da posição territorial não é o de Recarei, mas sim, precisamente, o da Branca, aliás, talvez, o mais próximo da villa antuana, entre os da aludida zona.

Em outros documentos conhecidos e publicados, além do rio discorrente, que era outro elemento auxiliar quase sempre utilizado pelos tabeliães ou escrivães, aparecem os montes (não os castros) mais cercanos a desempenhar a função, e em outros ainda a «estrada»: a referida antiga Via Militar romana, aí, por vezes, chamada indevidamente, segundo os mais autorizados pareceres, «estrada mourisca».

A identificação do Castro Recarei com o Castro de S. Martinho da Gandra deu-a como assente o falecido investigador regional Abade João Domingues Arede, natural de Macieira de Alcoba – Águeda, que deixou, além de vários trabalhos, uma vasta e erudita colaboração no «Arquivo do Distrito de Aveiro», e foi pároco de Couto de Cucujães, ali fundando um Museu Arqueológico e Etnográfico, inaugurado em 4 de Agosto de 1935 («Arquivo», I, 313-314; X, 290-294), vindo a sua abalizada opinião a ser adoptada posteriormente («Arquivo», IX, 54 – P.e Miguel de Oliveira, após a hesitação entre UI e S. Martinho da Gandra, I, 243; XXIV, 164-169 – P.e José

Resende da Silva Leite).

 

Abdelaziz

Prestígio idêntico explicará a persistência, no séc. XI, dos designativos, autênticamente árabes, de Abdelaziz e Ablaciz (variante, ou o mesmo, por certo, com errada grafia) dados à vila sita nas ribas do Antuã, em dois dos documentos citados, respectivamente o de 1050 e o de 1077?

O segundo é datado já de 13 (ou 19) anos após Fernando Magno ter levado na ponta da espada até Coimbra os sarracenos, que a haviam conquistado e destruído, pela terceira vez, em 987. A cidade «caíu em poder dos cristãos para nunca mais sair dele» – como diz Alexandre Herculano – ao cabo de uma campanha que durou alguns anos, a partir de 1055, quando o rei – o segundo Fernando I de Leão e então do novo reino de Castela atravessou o Douro e investiu contra os territórios da Beira actual, ocupados pelos infiéis praticamente desde que os cristãos tinham sido empurrados, pela segunda vez, na história, até às Astúrias, então por Almançor.

Este, ao avançar até ao Porto em 997, não o teria feito «sem deixar ocupada a nossa beira-mar» (P.e Miguel de Oliveira, «Arquivo», I, 248). / 9 /

Apenas com a reconquista de Coimbra – na data de 1064, controvertida para 1058 – se veio a obter a libertação definitiva da dominação árabe nesta região entre o Douro e o Mondego.

E três séculos e meio haviam decorrido após a ocupação inicial, em que desempenhou um papel decisivo precisamente o chefe árabe Abdelaziz.

Seu pai, Muça, amir de África, aproveitando-se das dissenções surgidas na sucessão do rei visigótico Vitiza e da traição de um dos partidos em conflito, manda à conquista da Península o seu lugar-tenente Tárique e este derrota o exército godo de Rodrigo na fatal batalha de Guadabeca (711). O próprio amir segue-se-Ihe a tomar parte na invasão, e seu filho e sucessor, que ele designa para exercer o amirado da Espanha conquistada, com Sevilha por capital, continua a campanha, por 713-716, sendo, pouco depois, assassinado.

Diz Alexandre Herculano («História de Portugal», I, 106): «O novo amir acabou de avassalar o resto da Península e regulou os tributos que os vencidos deviam pagar». Chama-lhe Abdu-I-aziz, que o Prof. Dr. David Lopes (Apêndice da 8.ª ed. daquela «História», vol. VIII, 305) corrige para Abde Alaziz, aliás posteriormente aglutinando, como aparece nos documentos que estamos focando e na «Monarquia Lusitana» do célebre Fr. Bernardo de Brito, os dois termos em Abdelaziz, com que designa «o primeiro governador das conquistas árabes na Península» (cap. «O Domínio Árabe», no vol. I da «História de Portugal» de Damião Peres ou de Barcelos, e Índice).

As contínuas incursões e correrias em que, reciprocamente, cristãos e muçulmanos se empenharam, nos territórios compreendidos entre Douro e Mondego, até àquela libertação, não teriam conseguido perturbar as incidências da ocupação dos sarracenos nos ribas do Antuã. E daí a possível explicação da permanência do nome atribuído à vila desses documentos, do chefe árabe que, émulo de Tárique na clemência e generosidade com que tratava os vencidos, poderia ter deixado justificatida fama também pela «brandura que mostrava para com os cristãos», salientada por Herculano e de que é espelho o tratado que celebrou com o chefe godo Teodomiro, a quem desbaratara na batalha de Lorca, e o casamento com Egilona, a viúva de Rodrigo, que, para alguns, estaria na origem e seria a explicação dessa tolerância.

Poderia entrar-se em mais ou menos plausíveis conjecturas sobre as razões dessa permanência, na sucessão de dois ou três séculos e na alternância das «invasões e repulsões que caracterizam a época, até à fixação do Mondego como fronteira da monarquia leonesa.

Alexandre Herculano, na Nota I do Livro VII, que integra o Tomo VI da 8.ª edição da «História», aponta os dois citados documentos como conspirando, com outros, «em nos revelar a existência da população rural nos territórios entre Douro e Mondego, imóvel no solo, digamos assim, não obstante a mobilidade ou antes incerteza das fronteiras entre leoneses e sarracenos». Assim se explicará também a imobilidade da atribuição do nome, ainda na segunda metade do séc. XI, à vila, termo que, então, no dizer do nosso grande Historiador (vol. cit., 183) era «denominação genérica tanto de qualquer granja, de qualquer aldeia ou aldeola, como das mais importantes municipalidades, e que corresponde na sua significação vaga ao moderno vocábulo povoação».

Se a designação de «vila de Abdelaziz» – fosse qual fosse a sua categoria – não servia para consagrar, de qualquer modo, até como fundador, o nome do chefe árabe, a alternativa será a de se tratar de um proprietário muçulmano convertido ou de um moçárabe, e a respectiva denominação assim se teria mantido, no decurso daquele período, pelo menos até às datas dos dois documentos em apreço.

Dá abertura às hipóteses a longa exposição que ainda nos faculta o grande Escritor nacional, no citado Tomo, ao dar-nos um magistral quadro das circunstâncias do domínio sarraceno na maior parte dos territórios entre os dois rios durante a primeira metade do século e a proliferação de nomes árabes entre as populações.

Lopes Pereira, no seu referido estudo (nota de págs. 243), já pôs a alternativa.

Não resistimos a transcrever o que, naquela mesma Nota I, em desenvolvimento de passagem atrás transcrita, o Mestre escreve a respeito do conteúdo dos dois importantes documentos, esmaltados de nomes e patronímicos árabes, e relativos a propriedades sitas nas mais diversas terras do actual distrito de Aveiro, que são os títulos de inventário dos bens de ricos homens da época, no primeiro, D. Gonçalo Viegas (Ibn Egas, marcando a linhagem moçárabe), filho de Egas Erotis (Erotez), e mulher D. Flâmula, no segundo, ainda D. Pelágio (ou Paio) Gonçalves, seu filho:

«Consta deles que um certo Egas Erotez, pessoa principal no distrito portugalense entre Douro e Vouga, se retirara para o norte quando Almançor restabeleceu na Beira o domínio de Córdova. Reconquistada por Afonso V uma porção de território ao sul do Douro, Egas Erotez voltou ali e recobrou o senhorio dos vilares e aldeias que lhe pertenciam, vindo a falecer no reinado de Bermudo III. Seu filho Gonçalo Ibn Egas, casado com D. Flâmula, e que já possuia por si e por sua mulher vários bens naqueles sítios, reuniu a eles os de seu pai. Eram uns e outros avultados, e de todos se ordenaram sucessivamente dois inventários em 1050 e 1077, onde se individuaram quais os herdados e quais os adquiridos. Estes extensos documentos aludem a um tal número de / 10 / aldeias e povoações, que parece referirem-se a épocas muito próximas de nós. Às vezes tece-se aí a história de algumas aldeias e casais, dizendo-se que foram compradas por D. Gonçalo a N. que as houvera de herança, o que evidentemente mostra como os muçulmanos tinham respeitado a propriedade dos que se haviam submetido à sua autoridade e como, no meio da luta entre sarracenos e leoneses, a transmissão dos bens se fazia regularmente, quanto o consentia a imperfeição do direito ou a quebra acidental deste mesmo direito num outro caso.

«Há no inventário de 1077 (...) uma circunstância que indica bem claramente a existência da população rural fixa nesses numerosos vilares e casais cujo domínio directo mudava pelos meios ordinários de transmissão. No ano da conquista de Coimbra era morto D. Gonçalo, e seus filhos foram inquietados na posse de algumas aldeias e herdamentos. Apresentaram eles um inventário (talvez o de 1050) em que se continham os bens que seu pai possuíra, tanto por herança como por compra. Ordenou-se então um inquérito, e achou-se que o inventário estava exacto. Este inquérito seria possível, sobretudo acerca dos bens de herança, se nesses lugares onde se procedia a ele, não houvesse testemunhas antigas que aí residissem e que soubessem a história de cada propriedade durante a vida de três gerações, ao menos?»

O referido D. Pelágio Gonçalves discrimina no segundo dos documentos as propriedades paternas in riba uauga e diz ter reivindicado as suas herdades no tempo de D. Sisnando, que era seu inimigo e dono da Terra de Santa Maria e de Coimbra.

D. Sisnando era o célebre conde ou cônsul, também de origem moçárabe, a quem Fernando Magno, como prémio da sua valiosa ajuda na conquista, havia dado o governo, que ele manteve até à morte, de vastos territórios, de Lamego até ao mar e do rio Douro até aos últimos confins das terras dos cristãos, como o mesmo diz em documento de 1088. Foi o «reconstituidor e povoador de Coimbra», após a já falada reconquista da cidade, e o seu túmulo encontra-se na Sé Velha.

Muito embora a nossa região não haja merecido a atenção particularizada que a outras dispensou A. Herculano, ao sabor da necessidade de invocação documental para as suas Notas à «História de Portugal», o Mestre deixou-nos, precisamente quanto aos dois aludidos documentos de 1050 e 1077 e às personalidades neles em evidência, as preciosas referências que ficam reproduzidas, além de outras, designadamente as que identificam o conde Mendo Lucidez, do mais recente.

Esses mesmos documentos foram incluídos, em reprodução integral, na «Colectânea de Documentos Históricos» – vol. I – organizada pelo erudito investigador Dr. A. G. da Rocha Madahil e que a Câmara Municipal de Aveiro meritoriamente publicou em comemoração do Milenário – 1959.

Deles e de outros que referimos, a alguns foram dadas também reproduções parciais e informações sobre as suas personagens pelo Dr. Aguiar Cardoso, no seu citado livro.

A carência de alusões a terras desta região, em Herculano e nos autores mais antigos, incluindo «os dois falsários», Brito e Lousada, como ele os trata, é apenas quebrada por passageiras e meramente ocasionais referências do eminente Historiador e de António Caetano do Amaral, como exemplos, a documentos referentes a Aveiro e às doações régias das igrejas de Avanca e Beduído ao bispo do Porto D. Pedro. O lugar de Pardelhas duma alusão, no Tomo VIII da «História», às inquirições gerais de 1258, será do termo de Celorico de Basto, já pela sua colocação, já também que naquele inquérito «pertence apenas diminuta parte aos territórios do sul do Douro», como diz o mesmo Herculano.

Voltando ao nome de Abdelaziz e admitido que seja qualquer dos termos da alternativa proposta para explicar o seu aparecimento em terras de Antuã, a sugerir também a ocupação dos Mouros, a persistência do topónimo, aliás a pequena distância no tempo, após a expulsão dos invasores para lá do Mondego (quanto a um dos documentos), não deverá constituir motivo de estranheza, dado que outros nomes árabes surgem, ainda posteriormente, a designar proprietários de vilas e herdades (e até um castelo), para não falar dos nomes e étimos que ficaram, designativos de terras e pessoas.

Exemplos flagrantes e expressivos se colhem de António Caetano do Amaral («Memória V. Para a História da Legislação e Costumes de Portugal», ed. da Livraria Civilização, notas (a) de págs. 13-14): as doações de D. Sancho II, em 1191, do Castelo de Abenemeci ao Mosteiro de Alcobaça e da herdade de Fazalamir ao Mosteiro de S. Jorge.

Em circunstâncias idênticas ao caso do nosso Abdelaziz, aparece-nos Almançor, o nome do que foi «o mais terrível açoute do cristianismo espanhol depois dos primeiros invasores árabes» – como o designa o grande historiador nacional –, embora se lhe tenha de creditar, como àquele, a moderação e justiça que usava para com os povos cristãos dominados: ainda no tempo de D. Afonso IV, há uma quinta de Almançor, do seu porteiro-mor Estêvão Esteves, a quem o rei concedeu que nela «possa pôr e fazer aí umas casas fortes, em que se recolha, ele e a sua gente» (Amaral, «Memória» cit., págs. 131, nota (b)).

A título de curiosidade, podemos informar que o nome de Abdelaziz deve ser ainda corrente em Marrocos: tinha precisamente esse nome, com igual grafia, um marinheiro de barco marroquino ancorado no Teio, / 11 / que deu que fazer à polícia de Lisboa com as suas turbulências, como relataram os jornais da capital de 10 (ou 13) de Janeiro de 1969.

Onde se situaria a «vila de Abdelaziz», a qual não volta, segundo cremos, a aparecer em qualquer documento posterior?

Aceitando a plena identificação de Ablaciz, do segundo documento, com Abdelaziz, do primeiro, e apesar de por eles se presumir localizada em antigas terras do actual concelho, então sobranceiras ao mar (ou já à Ria?), apenas nos podemos certificar de que se situava nas ribas do Antuã. Nada mais do que esta indicação expressa e a da proximidade de Canelas e Rochico, enquanto não surgir (e até hoje, apesar de os arquivos tanto haverem sido vasculhados, nada veio a lume) algum documento definitivamente esclarecedor.

A designação constituirá uma reminescência certificadora da passagem e permanência dos árabes nestas paragens, da mesma maneira que ainda aparece nas Inquirições de D. Afonso lI um Pedro Mouro como declarante, em Antuã, sobre o padroado da Igreja e os regalengos, e no tempo de D. Pedro I (ou já anteriormente) um Domingos Mouro como dono de uma marinha de sal em Ovar – bem significativos da ascendência muçulmana desses habitantes desta zona da beira marinha.

Como vestígios do «dilúvio arábico» nesta região, será ainda interessante consignar os costumes do povo que aponta o Sr. Dr. M. Rodrigues Simões Júnior («Couto de Arouca – Moldes (...)», no «Arq. do Distrito de Aveiro», vol. XV, págs. 84-85), citando em abonação o «ilustre Amaral» – como lhe chama Herculano – e a sua «Memória IV»: acrescentar, ao nomear uma pessoa falecida, as expressões «que Deus levou» ou «que Deus tem em sua companhia», a forma como as mulheres se sentam no chão, e o beijar o pão, quando cai ao chão.

 

II – O COUTO DE ANTUÃ E AVANCA E A FORMAÇÃO DA RIA DE AVEIRO

O Coutamento
 

Conhecidas são da história geral as prolongadas lutas que, contra as tentativas espoliadoras do irmão, o rei D. Afonso lI, escudado em antigos preceitos da lei visigótica, houveram de sustentar as infantas D. Mafalda, D. Teresa e D. Sancha, para manter os direitos senhoriais que lhes havia concedido em testamento seu pai, D. Sancho I, dos mosteiros de Arouca e de Bouças, a primeira, das vilas de Montemor e Esgueira, a segunda, e da vila de Alenquer, a última.


Estarreja – S. Tiago de Beduído – O «Senhor coberto» – Cruzeiro do séc. XVII

O casamento, em 1215, de D. Mafalda com o malogrado «rei-menino» de Castela, Henrique I – não consumado e pouco depois anulado pelo papa Inocêncio III, com fundamento no parentesco dos cônjuges, e recolhendo-se a infanta ao seu convento de Arouca – teria determinado D. Afonso lI a ceder nas suas pretensões reivindicadoras e a tomar até sob a sua protecção os bens da irmã, em cuja posse reintegra, conformando-se com as disposições de última vontade do pai.

Já no reinado de seu sobrinho D. Sancho I, a Rainha Santa Mafalda doou ao convento de Arouca, de que era padroeira, o de Bouças, e, tendo falecido em 1 de Maio de 1256, no seu testamento, em que fala das éguas que tinha in Antoana, havia confirmado a doação.

D. Afonso III, não obstante as questões que chegou a ter com sua tia, acabou também por lhe respeitar a disposição e a memória e, por carta passada em Coimbra, no 1.º de Setembro de 1257, que começa por dirigir aos juízes de Bouças, Cabanões e Antuã, dá ao mosteiro de Arouca as dívidas velhas de que ela era credora.

O documento, que nos interessa ainda por indiciar a independência das terras de Antuã, antes de coutadas, em relação ao julgado de Figueiredo, no qual já as vimos considerar integradas, revela a excelente disposição do Rei para com o convento de Arouca e sua / 12 / abadessa, por certo no desenvolvimento das negociações que culminaram com a carta de couto do mês imediato.

Na verdade, por carta datada de Coimbra do oitavo das calendas de Novembro da era de César de 1295 (25 de Outubro de 1257 da era de Cristo), o Bolonhês doou a Dona Maior (ou Mor) Martins, abadessa do convento do mosteiro de Arouca da Ordem de Cister, esse Couto das Vilas de Antuã e Avanca, «com todos os seus regalengos, e com todas as terras cultas e incultas e com todos os seus termos novos e antigos e com todas as suas entradas e saídas e com todos os montes, fontes, pastos e águas e pescarias e com todas as suas pertenças e com todos os seus direitos reais».

A carta de doação e couto (da qual há duas versões publicadas no «Arquivo») escrita pelo notário da Corte Domingos Peres (ou Pires), vem referendada, segundo o costume, pelas principais entidades senhoriais, eclesiásticas e civis do reino, que a confirmam e testemunham. Intervieram como confirmantes: o alferes-mor da Corte, D. Gonçalo Garcia; o mordomo-mor da Corte, D. Egídio Martins; o «tenente» da Terra de Santa Maria, D. Martim Afonso; o de Sousa, D. Afonso Lopes; o de Lamego, D. Diogo Lopes de Baião; o de Riba-Minho (ou Ribeira de Minho), D. André Fernandes; o de Bragança, D. Gonçalo Ramires; o de Panóias, Gonçalo Mendes; o de Transserra, Martinho Egídio; o arcebispo de Braga (D. Martinho Geraldes) e os bispos de Lisboa (D. Aires Vasques), de Coimbra (D. Egas Fafes), do Porto (D. Julião Fernandes), da Guarda (D. Rodrigo Fernandes), de Lamego (D. Egas Pais), de Viseu (D. Mateus) e de Évora (D. Martinho I). Figuram como testemunhas: D. João Peres de Aboim, D. Mem Soares de Merlô, D. Egas Lourenço da Cunha, João Soares Coelho, Lopo Rodrigues, vice-mordomo, Mendo Miguel, vice-sobrejuíz, João Fernandes, vice-chanceler, e D. Estêvão Anes, chanceler da Corte.

Trata-se da gente mais grada da época, que fazia parte do conselho do rei e anda referida nas obras históricas mais desenvolvidas, entre ela se contando os partidários do Conde de Bolonha nas lutas que levaram à deposição do irmão, D. Sancho II. Alguns dos prelados confirmantes pertencem ao grupo de 7 que, passados anos, vai a Roma, onde três deles morrem, apresentar queixas ao Papa (Gregório X), contra o rei, o que o determinou a convocar cortes (Santarém, 1273).

Por carta de 9 do mesmo mês e ano, já o rei havia mandado ao abade do mosteiro de Pedroso e aos juízes da Feira, de Cabanõés e de Figueiredo, a Tomé Fernandes, «seu homem», a D. Estêvão de Erada e ao tabelião de Figueiredo, coutar aquelas vilas e alçar aí os padrões nos lugares que D. Egídio Martins, seu mordomo, e D. João Peres de Aboim, haviam marcado. E a linha de demarcação, traçada no título de doação, não coincidindo, de uma parte, com o rio, mas passando-lhe a sul, é hoje, à distância de 7 séculos, difícil de reconstituir com precisão, sobretudo pelo intercorrente desaparecimento de muitos dos antigos topónimos.

O que se pode assentar, em precária versão do latim bárbaro usado no documento e característico dos escrivães medievais, enquanto D. Dinis não tornou obrigatório o uso da língua vulgar portuguesa nos processos e actos judiciais – «latim barbaríssimo» lhe chamou Herculano – é que, formada por 14 padrões (uma das formas de coutar), começava entre S. Martinho e Junqueira de Antuã, «onde entra a água de Junqueira no Antuã» (aí, um padrão), ia ao cimo (cimorro) de S. Martinho (outro padrão, no próprio lugar), a Vales (aí um marco), a Marmoirais (um padrão), a Laceiras (outro), à lomba das Laceiras (actual Laceiras de Cima?), à mamoa Coutadeira (outro padrão), à mamoa de Fontão de Lobos (actual Fontão?), à pedra da Foz de Crastelo (outro), seguia pela veia do rio Antuã, saía do rio «onde entra água de Centeais», ia à encruzilhada de Mosteiró (Mosteiróó, Mosteiroo) (outro padrão, às mâmoas entre Antuã, Centeais e Beduído (outro), ao Outeiro de Fravega (outro), ao marco de Silveira (outro padrão), ao cimo do Vale do Cão (outro) seguindo à estrada entre Avanca e Dagarei (Válega) (outro), pelo Vale do Cão ao porto de Mosteiró, passava o rio e ia ao Outeiro de Fontela (outro) e ao Porto de Fontela e seguia pela veia até entrar na «veia que se chama de Ovar».

Esses os limites da primitiva circunscrição estarrejense.

A configuração do território do Couto seria a de um polígono irregular, com uma abertura para o mar (ou a Ria?), entre o Antuã e a veia (canal) de Ovar, isto é, abrangendo, mais ou menos, as terras da actual comarca de Estarreja, com a exclusão de alguns lugares do norte da freguesia de Avanca, que eram do termo da Feira, e de Centeais, parte de Salreu e as freguesias inteiras de Canelas e Fermelã, que pertenciam ao julgado de Figueiredo (Bemposta), ao qual vem também a aparecer subordinado o «julgado de Pardelhas», dado, com aqueles e o de Cabanões, como seu confinante, nas Inquirições de D. Afonso IV.

Logo o início da linha divisória é impossível de localizar actualmente, ao menos disfrutando da relativa e precária margem de certeza com que ainda se conseguirá segui-Ia até ao «canal de Ovar», apesar da ausência da maior parte dos topónimos decorrentes.

Tornar-se-ia necessária a determinação do local onde se achava o primeiro padrão (inter Sanctum martinum et anthoanam juncaria quomodo intrat aqua de juntaria in anthoanam – como se diz no título constitutivo). Surge, porém, a incerteza quanto ao sítio e à água de Junqueira, a qual se amplia quanto ao curso final do Antuã, à sua própria foz e às ignoradas circunstâncias em que, naquele tempo, se apresentariam e seriam marginados. / 13 /

 

O problema da formação da Ria 

Por essa época, na presunção de alguns abalizados autores (Dr. A. G. da Rocha Madahil, in «Arquivo do Distrito de Aveiro», IV, 71, a propósito de «A Carta de Doação de Alquerubim em 1090», que contém a mesma expressão (prope litore maris), referida ao rio Vouga, que aparece no documento de 1078, servindo para localizar as vilas do Rochico, de Canelas e de Fermelã, e referindo o rio Antuã; e Comandante Rocha e Cunha, conferência de 1923, «O Porto de Aveiro», em separata da «Revista de Obras Públicas e Minas», 2.º ed., 1959, e outra – «Relance da História Económica de Aveiro – Soluções para o seu problema marítimo, a partir do século XVIII», publicada em «O Povo de Aveiro», de 27 de Julho de 1930, e mais tarde em separata) – «a Ria não existia ainda então e um braço de mar penetrava numa vasta reintrância da costa», o cordão litoral ainda não se havia levantado da Torreira para o Sul no séc. XII e «As forças naturais exteriores – ventos dominantes, correntes marítimas e marés – no seu trabalho incessante, começaram a fazer sentir a sua preponderânica sobre as forças interiores – correntes fluviais – talvez a partir do século 16.º».

Onde estaria a foz do Antuã – hoje a cerca de 6 km de Estarreja e então provavelmente mais recuada – e seus juncais, desaguando o rio naquele braço de mar ou golfo?

As bulas com que os papas Pascoal II (1115) e Calisto II (1120) vieram dar satisfação às reivindicações territoriais que o célebre Bispo D. Hugo, do Porto, instantemente formulara contra os Bispos de Braga e de Coimbra, adoptam o Antuã, aproveitando-lhe todo o curso, como linha divisória, na maior extensão, entre as duas dioceses continantes do sul, e põem-no a descer «ao Mar Oceano», o que levou o erudito investigador Abade Arede («Arquivo do Distrito de Aveiro», X, 275, nota) a «supor a não existência, nesse tempo, da Ria de Aveiro, ou a possível confusão, à falta de informações precisas, da Ria com o Mar Oceano».

O pormenor não convenceria, isoladamente considerado, sabendo-se que, no inquérito paroquial de 1758 – à distância de mais de 6 séculos – muitos dos párocos da região, apesar da formação e existência definida da ria de Aveiro, onde efectivamente desagua o rio Antuã, ainda o dão a «meter-se» ou a «morrer» no mar.

Porém, há mais quem entenda não existir ainda, naquele tempo, a Ria, como laguna fechada. As informações fornecidas e as opiniões sustentadas por aqueles autores, corroboradas foram pelo ilustre polígrafo Dr. Jaime Cortesão que, em estudo incluído no volume «Os Factores Democráticos na formação de Portugal», das suas Obras Completas – Portugália – 1964, págs. 65, assim se pronuncia:

«Nos séculos XI e XII o Vouga era de barra aberta, e diz Edrisi que muitos navios lhe subiam o curso; só no segundo destes séculos começaram a tomar vulto os cordões litorais que haviam de formar a laguna de Aveiro. A localização da cidade, como centro de actividade marítima, não é anterior ao século XIII e só no XIV começa a ganhar a importância, que vai culminar na centúria seguinte, durante a qual se eleva à altura dum dos portos mais prósperos e activos do País. Nos começos do século XII a linha da costa devia passar muito perto de Ovar, Estarreja, Vagos e Mira; e com efeito ainda neste século esta última vila era porto de comércio, onde se cobravam direitos de tráfico externo, como adiante veremos».

  Clicar para ampliar.  
 

Estarreja – Capela de Stº António – Brasão dos Morgados da Casa da Praça, padroeiros do altar-mor de S. Mateus e Santa Brígida, erecto a quando da sua mudança em 1735.

 

Não conhecendo directamente fontes documentais, apenas citamos opiniões daqueles que tiveram ensejo de se debruçar sobre o problema, ainda sem solução definitiva.

A questão continua a ser, actualmente, de pôr:

O cordão litoral haver-se-ia levantado, ou continuado, desde a Torreira, a partir do séc. XII, ou a Ria, carecendo de não menos de 25 séculos para se formar, segundo as deduções de ordem geológica e hidrográfica que o distinto engenheiro que foi o Conselheiro A. F. de Araújo e Silva (1843 – 1908) teve ocasião de expender em um artigo publicado no jornal «A Locomotiva», de 11 de Setembro de 1883, transcrito por Marques Gomes, no volume «Os Meus Mortos – Recordações e Memórias», que é o Tomo III da «Biblioteca Histórico-Política», publicada, sob a sua direcção, pela empresa do «Campeão das Províncias» em 1894 –, já existiria ao tempo dos mencionados documentos e, portanto, formado o mesmo cordão litoral?

O Comandante Rocha e Cunha, na sua citada conferência de 1923, considerava «suficientemente demonstrado que a existência da duna exterior é posterior a 1200». E, em planta que diz ter organizado e com que ilustra, entre outras, o seu trabalho (n.º VIII), mostra as várias posições que a barra teria assumido no seu avanço para sul, a partir da localização, naquela data, já na referida praia, a sul de S. Paio (e não a norte), até às outras que dá como historicamente averiguadas: em 1500, a sul de S. Jacinto e norte da actual; em 1584, a sul desta; em 1643 (quando foi construído o «Forte velho»), 1757 (regueirão – com a data errada), 1762 e 1838 (barreta), a sul, na Vagueirai em 1685 e 1778, duas próximas, entre a Vagueira e a «barra velha» de Mira, a qual indica também, em 1756; em 1802, entre essas duas e a «barra velha»; e, finalmente, a actual (1808).

Inclui ainda pequenas plantas complementares mostrando a ausência da ria (canal) de Mira (e, portanto, do cordão de areias respectivo) em 1500, quando havia / 14 / uma «barra ampla, profunda, limitada ao norte pela duna onde os mareantes edificaram a Capela da Senhora das Areias, e ao sul pela duna da Gafanha». Em uma dessas plantas, extraída dum mapa da província da Beira, de 1762, presumível cópia de outro muito mais antigo, nota-se uma abertura franca, mas entre dois cordões, que se figuram acentuadamente oblíquos em relação à linha de costa, e esta muito irregular, partindo de Vagos, o do sul. Em outra, de um atlas francês de 1695, os cordões são menos oblíquos, e em mais duas dessas plantas, há apenas um cordão, o do Norte, evidenciando-se um golfo interior semeado de pequenas ilhas.

Na conferência de 1930, o Comandante Rocha e Cunha mantém o seu ponto de vista, amplia as suas conclusões e, na separata publicada no mesmo ano – Imprensa Universal, Aveiro –, fez incluir reproduções de vários mapas mostrando a evolução da Ria e da Barra a partir da data de 1200, entre os quais as pequenas plantas que inseriu na separata da conferência anterior, além de outras, de que damos a lista, reproduzindo as legendas do autor:

Págs. 4 – Costa de Portugal segundo o Portulano de Petrus Visconte, 1318 – «Cremos que o portulano, datado de 1318, nos representa uma costa muito posterior ao domínio romano, mas bastante anterior à sua data, possivelmente no séc. IX» – diz o autor a págs. 7.

Págs. 6 – O antigo litoral entre Espinho e o Cabo Mondego, segundo a carta geológica de Delgado e Choffat – Posição da barra desde 1200 até 1756.

Págs. 11 – A laguna segundo o mapa de Alvares Secco, 1560. Não existia o braço de Mira.

Págs. 14 – A laguna, segundo o mapa de Carpinetti, 1762, reprodução de outro mais antigo de época em que não existia o braço de Mira (séc. XV e XVI).

Págs. 18 – A laguna segundo o mapa de S. Sanson, 1695. Reproduz com pequenas diferenças o mapa de Secco, de 1560.

Págs. 21 – A laguna segundo o mapa de Alvaro Secco, de 1600. Indica o canal de acesso à laguna já orientado para SO., depois da crise de 1575.

Págs. 24 – A laguna segundo a obra do P. Placide Augustin Desclosé, quando o cordão litoral atingiu a altura do Forte Velho, cerca de 1643.

Págs. 25 – A laguna segundo o cosmógrafo-mor João Teixeira, 1648. O cordão litoral tinha atingido a altura do Forte Velho.

Págs. 29 – Planta indicando o local ao sul do Forte Novo, escolhido por Mardel em 1756 para o corte do cordão litoral, as obras projectadas para fixar a barra aberta em 1757, em frente ao Forte Velho, por Sousa Ribeiro, e o corte, proposto por Polchet, em S. Jacinto, em 1759.

São ainda do mesmo trabalho do distinto marinheiro e publicista as seguintes informações:

«No séc. XII já temos notícia da barra da Torreira, um novo cabedelo avançara do Carregal para o sul até àquele local».

«No séc. XV tinha atingido [o cordão litoral no avanço para sul] o local onde hoje está a S.ª das Areias e existiam todas as ilhas do delta, mas separadas por canais profundos onde podiam navegar navios de alto bordo».

Difícil continua a se formar opinião definitiva sobre a idade da ria de Aveiro como laguna fechada (ou do cordão de medos que a fecha), tão embaraçosa se apresenta a opção, que até agora nos é facultada, entre 4 ou 5 e 25 séculos ou um número indeterminado de milhares de anos...

Que a barra, como comunicação entre a Ria e o mar, tem mudado no decurso daqueles 6 séculos, várias vezes, de posição, e as dunas litorais de orientação, é de averiguação certa quanto àquela e deduz-se das mencionadas plantas quanto a estas.

A localização da barra nas proximidades (ou ao norte) da Torreira em 1200, ou aí (ou no sítio a que viesse a ser dado o nome) «no princípio da monarquia», conforme a opinião do Comandante Rocha e Cunha, que diz baseada em antigos documentos e radicada pela «direcção do curso primitivo do baixo Vouga, inflectindo para NW», com evidência nesse sentido, pode afigurar-se contraditória, sob dois aspectos, com a apregoada e coeva inexistência da duna exterior para sul, que o antigo e prestigioso capitão do porto de Aveiro e publicista ilustre também sustentou.

Na verdade, se barra existia, tinha de abrir-se entre dois trechos de dunas, sendo um deles o que se admite como já formado do Carregal à Torreira. Outro teria de existir, a sul (ainda que não tão extenso que merecesse menção), como indispensável para completar a boca da barra.

Sob segundo aspecto, todavia, sendo de pequena extensão – embora, na hipótese, suficiente para formar a barra – não se tornaria necessária, já que aos muitos navios que subiam o curso do Vouga, no dizer do geógrafo árabe Edrisi, conforme a mencionada citação de Jaime Cortesão, estaria livre o acesso directo ao mar, inclusivamente costeando e flanqueando pelo sul o promontório que aquele cordão de areias constituía, salvo se (e quando) obstáculos houvesse impeditivos (baixios, o cordão litoral em vias de formação?) que forçassem a demanda da conjecturada barra.

O Sr. Dr. F. Ferreira Neves publicou no «Arquivo do Distrito de Aveiro» (vol. XIII, págs. 20 e segs.) o seu esclarecedor «Resumo Histórico da Barra de Aveiro», que fez acompanhar de vários documentos e da «Memória Descritiva» de Luís Gomes de Carvalho. Aí não se / 15 / debate o problema da formação da Ria, apenas se tratando da Barra. Mas já no vol. I, 219, nos havia dado a sua «Breve História da Barra de Aveiro» e aí afirma que «o cordão litoral deve ter sido formado anteriormente ao séc. X»; e, em nota de págs. 21 do estudo anteriormente citado, observa que na hipótese de aquele cordão ainda não existir da Torreira para o sul no séc. XII, «não podemos dizer que neste século e ainda em alguns seguintes houvesse uma barra propriamente dita de Ovar e Aveiro».

E o P.e Miguel de Oliveira opina (no mesmo «Arquivo», vol. II, a págs. 114-115), a propósito da pesca, que «os velhos documentos não têm designação própria para este acidente do nosso litoral» – referindo-se à Ria, que diz os antigos considerarem ainda mar. Mas, não só os antigos, pois, como já tivemos ocasião de apontar, grande número dos párocos que responderam ao inquérito de 1758, entre os quais muitos há que lhe chamam já ria e outros rio (de Ovar ou de Aveiro) e ainda alguns nem se lhe referindo ou mencionando em seu lugar os canais principais, a que chamam rios – dão o Vouga e o Antuã a desaguar no mar.

O mesmo investigador, embora sem tomar abertamente partido, admitindo, contudo, a existência da Ria («diferente da actual, com largas entradas marítimas»), trouxe (artigo citado), além das mencionadas bulas do séc. XII, outros documentos que poderão servir para o estudo do problema, embora sem constituirem elemento decisivo para triunfo de qualquer das teses em presença.

Um deles, de 1103, situa Esgueira à beira da foz do Vouga, perto do mar; em outro, de 1182, uns casais da vila do Rochico (Fermelã) são situados in liture maris oceani, Vauga flumine discorrente ipsaque villa introitum ejus in more ab Orientali parte non multum eminius intuente.

Esta referência indiciará a Ria ou o golfo atlântico, a «barra aberta» de Jaime Cortesão?

Um terceiro documento, que damos como simples elemento de informação, é uma carta, de 15 de Abril de 1510, em que o rei D. Manuel faz mercê a D. Manuel Pereira (depois conde da Feira) dos direitos relativos «a toda a pescaria que se fizer na costa do mar da foz de Espinho até à foz do Vouga».

Pelo mesmo título (presumivelmente) de 1182, atrás referido (P.e Miguel de Oliveira, rev., vol. e art. citados, págs. 27), são doadas ao mosteiro de Grijó propriedades situadas entre Canelas e Fermelã «subtus monte mansione frigida nuncupato in liture maris oceani Vauga flumine discorrente».

Ainda, seguidamente, acrescenta o aludido investigador o extracto de mais um documento, do ano seguinte, de outra doação de bens no mesmo lugar – «subtus monte qui propter heremi magnitudinem vocatur mansio frigida, secus litus maris oceani et ostium, que Vauga flumen intrat in mare» – dando-nos, além do mais, a ideia do ermo, da selva, que era a zona.

O nome daquele monte – Mansão Fria (ou Mesão Frio) – que aparece em antigos documentos, servia de expressão referenciadora da localização de propriedades e terras desta região da beira-mar, como usados eram para tal efeito, acompanhando o do rio discorrente, os castros mais próximos (da Branca, de UI, de Ossela, de Recarei) e a estrada (a antiga Via Militar romana Emínio – Cale) erroneamente designada por mourisca.

As mansiones (albergarias) figuravam, com as mutationes (mudas) e as stationes (estações), além dos apeadeiros e dos marcos miliários, entre os cómodos com que os romanos dotavam as suas magníticas estradas.

Tudo indica que o monte dos dois citados documentos, sobranceiro a Canelas e Fermelã, se situasse na região de Albergaria-a-Velha. A albergaria instituída na Carta de Couto e Foral de S. Pedro de Osseloa, em Novembro de 1117, pela «lnfanta D. Teresa, Rainha de Portugal», é aí chamada de Mejamfrio (António / 16 / Caetano do Amaral, «Memória V. Para a História da legislação e Costumes de Portugal», ed. da livraria Civilização, págs. 9, nota), e o P.e Miguel de Oliveira informa (artigo citado, págs. 26) que Albergaria-o-Velha era chamada em antigos documentos Albergarie veteris de Meigonfrio.

Aparecem, assim, documentos medievais a situar terras de Fermelã e Canelas, ou entre ambos as vilas, no litoral, e a pôr o Vouga a desaguar no mar, parecendo servir para abonar a tese da mais recente formação do cordão de areias exterior que veio a fechar a Ria.

Para se aceitar, porém, o pleno triunfo desta tese, faltará coordenar razões científicas que porventura expliquem como os apontados agentes naturais, no decurso de milhares de anos, reservaram as forças da sua influência acumuladora para as virem a exercer mais aceleradamente, apenas em 5 (com o máximo sugerido de 6) séculos, ao menos desde a Torreira a Mira. A própria formação dos medos, que se haveria, plausivelmente, processado com maior lentidão, de Ovar (ou Espinho) até à Torreira, teria facilitado e propiciado, por sua vez, o levantamento mais rápido, a partir daí, do segundo (ou do restante) cordão, para sul?

Em conclusão:

Quanto às alterações do litoral e à formação da Ria, no que se podem considerar de acordo, declarada ou implicitamente, todos os observadores é em a linha da costa oceânica, remotamente, passar pelas apontadas terras hoje na margem oriental da Ria, considerada em toda a sua extensão. Os sinais de incidência marítima, que têm sido trazidos a lume, são evidentes, como se mostra das mencionadas obras e outros trabalhos de investigação.

Faltam os elementos de informação decisivos para se determinar até quando o mar banhou directamente as terras da primitiva linha litoral e desde quando passaram elas a ser interiores da laguna fechada. Os documentos e elementos escritos que os antigos nos tivessem deixado, são de escasso ou nulo esclarecimento.

Na posição actual do problema e dada a contrariedade das duas versões em conflito, apenas podemos considerar-nos habilitados com duas certezas, mas quanto à barra: primeira, a barra achava-se em 1643 na Vagueira, e já na segunda dinastia, e em 1756 um pouco ao norte de Mira e, portanto, até aqui formado, a essa data, e anteriormente, o cordão de dunas a encerrar completamente a Ria; segunda, a barra, aberta entre areias movediças, beneficiando de esporádicas e escassas obras, andou erradia ao longo de 6 séculos (1200-1808) e desse cordão, entre a Torreira e Mira, fechando-se ou tornando-se pouco praticável por acção dos mesmos agentes naturais que formaram, através dos séculos, a duna litoral (com as desastrosas consequêncios conhecidas, nos séculos XVII e XVIII, para a navegação e o comércio, a produção de sal, a agricultura e até a salubridade pública da região, com o paludismo a dizimar as populações ribeirinhas), e abrindo-se onde a incidência do mar e a pressão das massas de água acumuladas pelas maiores enchentes do Vouga e dos outros rios ia encontrando um ponto mais propício de ruptura.

E assim se manteve esta situação instável, até que foi fixada em 1808 e nela se empenharam as obras de engenharia que continuaram até aos nossos dias.

 

Temos, até aqui, lidado com os elementos de investigação recolhidos no «Arquivo do Distrito de Aveiro»e extraídos das conferências do Comandante Rocha e Cunha e da obra de Jaime Cortesão.

Só depois de elaboradas as notas que atrás deixamos, resolvemos ampliá-Ias, no contacto com as obras de maior desenvolvimento que até hoje foram publicados sobre a Ria, o Vouga e os outros cursos de água que nela afluem, e as terras da Região, e podem fornecer aos estudiosos elementos de relevante interesse. limitamo-nos, compreensivelmente, a dar transcrições, que servirão a quem, privado das referidas obras, ofereça curiosidade o conhecimento do assunto nelas versado.

 

Os autores modernos que produziram os mais notáveis trabalhos sobre a Ria, o Dr. A. Amorim Girão, que foi distinto Professor da Faculdade de letras de Coimbra, e o ilustre Aveirense, Dr. Alberto Souto, opinam pela sua mais antiga formação.

O primeiro, em «A Bacia do Vouga» (1922), falando da antiga linha da costa (anterior à Ria), diz-nos que ela «em parte coincidindo com a via férrea, tirada de Esmoriz por Ovar, Estarreja, Salreu, Fermelã, Angeja, Esgueira e Aveiro até Vagos, atravessando o Vouga muito no interior, separará duas zonas completamente diversas, tanto pela sua idade, como pelo seu modo de formação. A Oriente, ficam os terrenos antigos, triássicos, cretácicos ou ainda pliocénicos, e a Ocidente, sobrepondo-se a estes com mais ou menos evidência, formações recentes, quaternárias, de sedimentação marinha e em parte fluvial.» Acha um pouco exagerado o cálculo do Eng.º Araújo e Silva (que já referimos) e opina que «a formação definitiva da ria deve ser coeva da construção dessa estrada [a estrada romana entre Águeda e Porto, embora cognominada de mourisca]», que «Em qualquer das hipóteses, porém, este singular acidente litoral não deve ir além da era cristã, não sendo unicamente os geólogos, como diz o Sr. Marques Gomes, mas sim os geólogos e arqueólogos que têm de passar a certidão da sua idade», e que «por grandes / 17 / vicissitudes passou a zona lagunar, diversas devendo ter sido as soluções de continuidade no cordão litoral, através das quais a ria comunicava com o mar, e diversos também os pontos onde nela desembocava o Vouga.»

E na «Geografia de Portugal» – 3.ª ed., 1960, págs. 102 – deixa afirmado: «Nos recuados tempos a que podem levar-nos os mais antigos testemunhos históricos a ria de Aveiro não existia ainda; nem é natural que, se já existisse na época romana, tivessem os escritores coevos deixado em silêncio o singular acidente, onde a Natureza prodigaliza ao homem tão variados recursos.»

Nesta última obra, a págs. 106, insere uma «Reconstituição hipotética do litoral junto da foz do Vouga na época proto-histórica», já reproduzida na «Bacia do Vouga», e o «Desenho da ria de Aveiro em mapas antigos», que nos dão uma ideia genérica da evolução histórica do nosso litoral.

O Dr. Alberto Souto, nas suas «Origens da Ria de Aveiro» (1923) – obra esgotada e que só tarde tivemos ocasião de compulsar – oferece-nos um amplo estudo da laguna e da sua história e da formação das terras e da vida dos rios da nossa região, incluindo também um mapa da «reconstituição da costa entre o cabo Mondego e Espinho, depois do estabelecimento da rede hidrográfica e antes da formação do delta do Vouga e do sistema lagunar da Ria de Aveiro, segundo os dados fornecidos pela carta geológica».

Aí se mostram Ovar, Estarreja, Aveiro e Mira na linha costeira, o rio Antuã a desaguar directamente no mar, e o Vouga, o Cértima e o Aguedão em pronunciada reintrância marítima, «esteiro», «espécie de mar interior», como lhe chama o Dr. Amorim Girão e cuja existência considera evidenciar-se «na zona alagada e pantanosa onde assentam as pateiras de Fermentelos, Frossos e Taboeira». O Dr. Alberto Souto, depois de reproduzir estas considerações, com as quais concorda, diz: «...simplesmente julgo poder acrescentar que a esse esteiro se seguiu o delta [do Vouga] e a este o distendimento do cordão litoral».

Esta a opinião do ilustre aveirense, que atrás havia afirmado, após extensa justificação geológica e geográfica:

«Antes, pois, de se formar o último cabedelo, ou seja o cordão de areias onde hoje assentam as praias do Furadouro, Torreira, S. Jacinto, Barra, Costa Nova do Prado, Mira e Tocha, cuja construção deve ter sofrido grandes intermitências, experimentado grandes vicissitudes, demorado longos séculos para chegar à continuidade e alinhamento presentes e determinado desastrosas perturbações na vida económica ribeirinha, é bem provável que o Vouga tivesse desaguado por um delta, embora imperfeito.

«E neste ponto divirjo eu dos autores que consideram a Ria um mar interior primeiramente fechado pelo distendimento do cordão litoral e depois preenchido pelas aluviões dos rios que aí trazem as suas águas.»

Continua mais adiante rebatendo as opiniões dos que sustentam ser a Ria de Aveiro moderna e posterior aos Romanos, afirmando que o cálculo do Eng.º Araújo e Silva «não anda longe da verdade e que a separação da laguna ou encerramento da reintrância costeira onde se estabelecera o delta do Vouga pelo cordão litoral, isto é, a formação da Ria na sua fase presente, deve ser obra anterior à dominação romana» e que «temos ainda muita liberdade para atribuirmos três dezenas de séculos à Ria de Aveiro.»

Passa, no final do seu valiosíssimo trabalho, a analisar a questão sob o ponto de vista arqueológico, histórico e documental. Cita as referências do Dr. Amorim Girão aos «monumentos pre-históricos que circundam o estuário e que marcam a linha do primitivo litoral, onde teriam vivido as populações neolíticas e proto-históricas, segundo as modernas ideias autóctones, em grande parte eivadas da mestiçagem dos imigrantes e dos invasores» – monumentos que descobriu «...e em que até à data ninguém reparara (...) a Pedra Moira, a S. E. de Aveiro, a Mamoa de Requeixo e a Mamoa de Estarreja, além de outros congéneres, restos de longínquas civilizações.»

Prossegue, com a análise e comentário do «...mais antigo e valioso escrito que a este respeito possuímos (...) a Ora Maritima, de Festus Avienus, poema nebuloso que Martins Sarmento comentou na parte respeitante a Portugal e à Galiza, num volume notavelmente erudito, publicado em 1880.»

Trata-se de uma célebre composição poética que tem sido objecto de longos e profundos estudos e comentários também entre vários autores estrangeiros e «parece reproduzir as informações de um périplo fenício ou cartaginês do séc. VI a. C.». Interessa a Portugal na parte em que alude a uma Pelagia insula, sobre cuja duvidosa localização os autores se têm pronunciado divergentemente.

Martins Sarmento opinou que se devia situar em Aveiro, mas teria desaparecido, visto não encontrar nada que se parecesse com a ilha descrita.

O Dr. Amorim Girão adopta também a opinião de se tratar de uma ilha desaparecida, em frente à foz do Vouga.

Mas, o Dr. Alberto Souto, extraindo da descrição da ilha um argumento em favor da sua tese da antiguidade da Ria, afirma que «sendo aqui o lugar da Pelagia insula é bem de ver que nesse tempo a Ria tinha já muito da feição lagunar do presente», pois teria chegado à conclusão de se tratar de uma dessas «ilhas enormes de bajunças, juncos, canísia e ervagens ondeando com o vento e com a agitação produzida pela / 18 / passagem dos barcos» que ainda hoje se vêem na laguna: seria «um desses prados das nossas águas salobras».

E, quanto à localização, interroga: «...nas proximidadês da foz do Vouga? na actual Murtosa? junto à planura da Gafanha?» – concluindo por a dar como situada «em qualquer das emergências do delta do Vouga».

Continuando a sua exposição, e relacionando-a com a tão discutida Talabriga, inquire onde seria então a foz do Vouga. Citando a opinião do Dr. A. Girão, segundo o qual a foz do nosso rio dominante ficaria mais distante da actual, muito para o interior, de harmonia com a sua tese da inexistência da Ria no tempo dos Romanos, o distinto investigador aveirense contrapõe que, em face do referido poema, «...outra conclusão é forçoso tirar (...) o fenómeno descrito por Avienus nos versos 164-171 do seu poema só era possível no estuário do Vouga ou no local ocupado hoje pela Ria de Aveiro, onde o carácter lagunar se mantém ainda tal qual o descreve o autor do Ora Maritima na sua Pelagia Insula

Numa separata publicado em 1933 – «A Pelagia Insula de Festus Avienus» – o Dr. Alberto Souto, mantendo a sua opinião em apoio de Martins Sarmento quanto à localização aveirense, rebate as conclusões a que, entretanto, havia chegado o investigador alemão Schulten, de a Pelagia Insula ser a Berlenga.

 

O Dr. Luís Filipe de Lencastre Schwalbach Lucci, que foi assistente da Faculdade de Letras de Lisboa e professor do Liceu de Pedro Nunes, na sua obra «Estudos Geográficos – Alterações Litorais – A Ria de Aveiro», 1918, cita já a opinião do Comandante Rocha e Cuha sobre a barra da Torreira, fala na corrente norte-sul que roça o litoral de quase todo o País e teria activado o desenvolvimento do cabedelo norte, «cujas raízes se prendem para as bandas do Furadouro», trata do alteamento ou exalção do fundo da Ria proveniente da precipitação de areias dos dois cabedelos, às toneladas, «juntando-se a esta colmatagem as aluviões do Vouga e dos outros ribeiros», o que leva a calcular em 3 cm a elevação sofrida anualmente (cálculo que já se conhecia de Francisco Regala) – mas não opina nada de concreto sobre a idade da laguna.

 

Marinhas de sal

Na busca e possível utilização de elementos determinativos da época da formação da Ria e como contributo, embora indirecto, para a almejada averiguação, não será dispiciendo o conhecimento da existência de marinhas de sal nos domínios do Couto de Antuã e Avanca, mais de um século após a sua instituição.

Na verdade, tal existência é assinalada, ainda no séc. XIV, em documentos reproduzidos pelo Dr. M. Rodrigues Simões Júnior, no seu citado trabalho, a págs. 112-113: um, da era de 1408 (ano de Cristo de 1370), é o título do contrato entre a Abadessa do Convento de Arouca D. Maria Lourenço de Portocarreiro e Domingos Afonso e Martim Domingues, pelo qual estes se obrigaram a fazer a marinha de sal a que chamavam de Are Alta, cumprindo anterior carta de emprazamento, com a obrigação de dar «metade do sal que Deos nela der» e o serviço da barca a cargo dos caseiros; outro, do mesmo ano, com Gonçalo Domingues, relativo à Marinha da Gesteira (que estava erma), fazendo-se do sal dois montes, escolhendo um a Abadessa, que daria «auxílio para fazer a barca», para o serviço da dita marinha, e 50 libras em dinheiro e um moio de trigo.

Das condições contratuais, evidencia-se que já haveria para o Convento senhorio, no emprazamento ou parceria das marinhas, dificuldades em aliciar «caseiros», presumivelmente devidas à quebra das condições favoráveis à feitoria do sal, inclusive quanto à obtenção da indispensável salinidade, a qual diminuição se deve ter operado paralelamente à formação do cordão arenoso do litoral (ou ao encerramento das suas aberturas?). Teriam sido precisamente as sucessivas deslocações da barra para sul que influiriam no gradual desaparecimento de tais condições favoráveis à produção e, consequentemente, levariam à extinção das marinhas.

E daqui poderão os partidários da mais recente formação da Ria extrair argumento...

A averiguação prende-se também com a das respectivas marinhas com que foi vendida uma herdade na «vila do Rochico», entre as vilas de Fermelã e Canelas, na zona do rio Antuã, «perto do litoral do mar», pelo já citado documento de 1078.

São estes os únicos documentos que conhecemos relativos a salinas na área do nosso Couto e julgado.

Na sua busca de documentos referentes às marinhas de Ovar, que as dão em Dagaredi (Válega), no lugar do Cabedelo e outros, o P.e Miguel de Oliveira não os encontrou posteriormente a 1315, presumindo-as extintas à data do foral respectivo, de 1514, apesar de este aludir ainda a direitos de sal.

O foral de Antuã, de 15 de Novembro de 1519 é omisso a tal respeito. E essa omissão, paralela às referências contidas em forais coevos, de outras terras onde ainda se continuava a fabricar sal (Aveiro, Vagos, Soza), confirmará a extinção das marinhas nesta zona.

Entretanto, para esclarecer, em relação ao já apurado, o estudo das salinas na zona norte da ria de Aveiro, documentos recentemente publicados («Aveiro e seu Distrito», n.º 5, págs. 34-37) pelo Sr. P.e Aires de Amorim, dão notícias da existência, no concelho de Ovar, de marinhas velhas ainda nos séculos XV e XVI, e da abertura de novas no início do seguinte, o que, sobretudo / 19 / quanto a estas últimas, poderá parecer estranho, dada a distância da barra, nessa época. Haverá, no entanto, que tomar em consideração a circunstância de a freguesia de Ovar se estender «até à barra», tendo de admitir-se, nesse vasto alfoz, à margem da «cale que vem de Aveiro» – pois confinante era de todas as últimas das praias ali referenciadas – a perduração de condições favoráveis para «fazer marinhas de sal». E era por esse tempo, segundo informa o Comandante Rocha e Cunha, que o porto de Aveiro tinha um movimento marítimo de cerca de 60 navios por ano, de comércio e de pesca, em grande parte estrangeiros e muitos para embarcar sal, e se mantinha na Ria uma indústria salineira de considerável importância, mercê das satisfatórias condições da barra, o que se reflectiria no interior.

As referências dos aludidos documentos a outras cales, outras marinhas, praias, ilhas e ilhotes – além de «barcas e navios que aportam a Ovar, para carregar sal para outras terras», e já assim do Foral – induzem a conclusão de que, mantendo-se nesses tempos, e ainda, portanto, no princípio do séc. XVII, uma notável exploração salineira no termo de Ovar, se achavam já formados, por outro lado, os canais, francamente navegáveis, e os restantes acidentes que foram compondo a Ria e existiam já entre o território do Couto de Antuã e Avanca e o cordão litoral do domínio daquele termo.

As marinhas pertencentes ao Couto – pois que em ambos os instrumentos referidos se cuida expressamente do «serviço da barca» – deviam situar-se em ilhas, à margem da veia ou canal de Ovar. Os topónimos são inseguros: apenas o de Gesteira aparece hoje a designar vários locais banhados pela Ria.

 

Tudo isto vem a propósito da demarcação do Couto de Antuã e Avanca, onde se criou e desenvolveu o antigo concelho e a comarca de Estarreja.

Quanto ao seu início, a «água da Junqueira» que entrava no Antuã era, com evidência, qualquer regato afluente do Rio. Seria o seu leito uma das depressões hoje secas ou por onde ainda correm ínfimos cursos de água: a antiga «levada do Queirós», no lugar de Antuã, em Salreu, que vai dar ao rio no sítio denominado – pode ser-se levado a dizer expressivamente – «Junças», ou outro, mais abaixo, de mais escassa alimentação, que, através do lugar do Ribeiro da ladeira, ali vai dar na Cova da Raposa ou lagoeiro, ou ainda outro, entre esses dois ou para juzante, impossível de determinar exactamente na actualidade?

Porém, o termo da linha de padrões, exarado na Carta do couto (...et intrat in venam que vocatur de Ovar) é de molde a dar-nos a ideia segura de como se achava já então formada a Ria, pelo menos para norte da Torreira: a referência concreta à veia de Ovar, leva-nos a concluir que o golfo marítimo, o «braço de mar» que, remotamente, enchia a reentrância onde se veio a fechar a laguna, se encontrava aí substituído pelos referidos acidentes.

Será um elemento informativo para o debate, ainda não encerrado, sobre a formação da Ria e sua história.

Aliás, guiando-nos pelas plantas publicadas pelo Comandante Rocha e Cunha e pela notícia que este autor nos dá e aqueles documentos de Ovar confirmam, da franca navegação praticada na bacia da Ria, e das demais circunstâncias já apontadas, a «barra ampla, profunda» de 1500, bastante para sul, pode considerar-se, com mais propriedade, a entrada de um verdadeiro golfo, que se apresentava semeado de ilhas, algumas das actuais, porém, ainda submersas, como as de Monte Farinha e outras, isto é, na zona central, em 1276, conforme se conclui de documento referido na citada Conferência de 1923.

Esse seria o golfo, o «braço de mar», ainda provavelmente com mais larga abertura, que existia à data dos mais antigos documentos conhecidos e da Carta de couto, admitindo-se que a zona norte tivesse beneficiado da sua pronunciada interiormente, quanto à mais distante fixação de tais acidentes, em relação à restante bacia da Ria.

Bem poderia ser a esse golfo, perfeitamente caracterizado, numa fase intermédia da formação da Ria, entre a primitiva e recuada linha da costa – passando pela ampla reintrância marítima que banhava os terrenos antigos – e o mais recente encerramento da laguna com o cordão litoral (e uma barra por abertura), que os velhos documentos chamavam mar.

  Clicar para ampliar.  
 

Estarreja – Monumento aos Mortos da Grande Guerra (1914-1918), no largo do mesmo nome, inaugurado em 1921.

 

 

O fim de uma contenda famosa

Para finalizar este bosquejo histórico do Couto de Antuã e Avanca (limitado, por agora, aos primeiros tempos), importa dar, embora resumidamente, alguns traços das vicissitudes por que ainda passou a instituição no tempo do próprio rei doador, que a tentou revogar, sustentando contra o Convento donatário longa demanda, cujo processo, num «rolo de 20 varas e meio palmo», entre muitas centenas de pergaminhos, se encontra na Torre do Tombo, desde a primeira encorporação do cartório de Arouca, executada por Augusto Soromenho em 1858, que viria a resultar da visita de Alexandre Herculano, 4 anos antes, nas circunstâncias relatadas pelo Dr. A. G. da Rocha Madahil, no «Arquivo do Distrito de Aveiro», IV, 121.

O coutamento foi condicionado à permuta com Bouças e Vilar de Sando, que a abadessa D. Mor e o seu Convento efectivamente vieram a dar ao rei, com a confirmação papal, por carta de 1 de Novembro do mesmo ano de 1257.

/ 20 / Mas D. Afonso III, mais tarde, pretextando que a permuta se achava viciada de «dolo e fraude» por parte das freiras, tentou tirar-lhes os coutos de Arouca e de Antuã e Avanca, o que levou a Abadessa, alegando que, sem eles, nao podia sustentar as 110 religiosas que havia no Mosteiro, a solicitar a superior intervenção do Papa (Clemente IV), que mandou, por breve datado de Perusi aos 9 de Março de 1266, ao Abade de Alcobaça, ao prior de Santa Cruz e mestre-escola de Coimbra, fossem os juízes no pleito que o rei intentava contra o Convento para reivindicar «os coutos e herdamentos de Antuã e Avanca e Arouca».

O Rei, vindo a desistir da demanda, resolveu entregar à Abadessa e ao Convento do Mosteiro de Arouca os referidos coutos e herdamentos, por carta que bem revela a liberdade de julgamento de que gozava e com que se dignificava o alto tribunal da Corte e o acatamento com que o próprio monarca se submetia exemplarmente às suas decisões, senão o desígnio de se eximir à incidência da jurisdição papal...

Pelo manifesto interesse que, sob mais do que um aspecto, do seu conhecimento pode advir, permitimo-nos reproduzir as duas cartas, uma a 18 e outra de 20 de Fevereiro de 1274, pelas quais o Rei põe termo à longa e volumosa contenda, tal como no-Ias facultou, no seu valioso trabalho, que deixamos referido, o ilustre investigador Sr. Dr. M. Rodrigues Simões Júnior:

Conuçuda Causa seja a quantos esta Carta virem, e ouvirem que como eu Dom Affonso pela Graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve, fise demanda à Abbadessa e ao Convento do Mosteiro de Arouca por Letra e por Juizes do Papa sobrelos Coutos e herdamentos de Antoáã, e dAvanca e de Arouca ssagravaron de mij em minha Corte por essa demanda por embargos que lhes fazia sobre esses Coutos e sobre esses herdamentos que lhes havia dados e coutados por minhas Cartas que de mim tem. Eu mandei que a minha Corte catasse a ellas o seu Direito, e outro sim a mim o meo Direito sobre esta contenda, em a minha Corte sabuda a verdade deste feito, e vistas as Cartas de huma parte, e da outra veio por Direito e julgou os davanditos Coutos e herdamentos ao Mosteiro de Arouca e mandou a mj que eu me partisse e quitasse desta demanda que lhes fazia Cá non havia hj direito, segundo as Cartas que de mj teem e que eu deixasse a Abbadessa e ao Convento do Mosteiro d Arouca os davanditos Coutos e herdamentos de Antoãã e d Avanca e de Arouca com todos seos termos, e com todos seos Direitos, e com todas ssas pertenças assj como he contheudo em minhas Cartas que de mj teem d'esses Coutos e d'esses Logares e que des aqui adiante nunca Ihis passe contra elles e eu ouvido este Juizo louvjo e outorgo e confirmo assj como de juso dito he e mando entregar esses Coutos e esses Logares de Antoáã, e de Avanca, e de Arouca à Abbadessa e ao Convento do Mosteiro de Arouca com todos seus termios e com todos seus direitos e com todas ssas pertenças asj como lhos havia dados e coutados por minhas Cartas que de mj teem, e prometo a boa fé por mj e por meus successores a gardar essas Cartas, e non veir contra ellas nem contra este Juizo em nenhuma maneira e recundo aa Carta do Papa e aos Juizes porque demandava esses logares e a toda acçom e a todo o preito e a todo o direito que a mj pertence ou poderia pertencer por qualquer guisa sobrelos ditos logares e sobrelos ditos Coutos por essa Carta, ou por juizo dos juizes dessa carta que des aqui a diante a mj non possão prestar nem a ellas enpecer e que esta non venha en duvida, dou lhes esta minha Carta seelada do meu seelo eem testimonjo deste feito. Dada foi a Carta em Santarem aos dezoito dias de fevereiro. EI Rey o mandou por seos ricos homens, e pelos outros do seo Conselho a quem encomendou o Feito do Corregimento quando recebeo o mandado do Papa. Jannes Eanes a fez. Era de mil trezentos e doze. / 21 /

Alfonsus dei gratia Rex Por et Algarbij vobis Stephano petri meo Almoxarifo et tabellionj de terra sanefa marie et Judici de Anthoáá salutem. mando vobis quod visa ista carta vos cum isto meo portarão Johane de Barca (atore presentis intreguetis Abbatisse et Conventuj Monasterij de Arouca. herdamenta et cautos de anthoáá et avanca cum suis terminis et cum suis pertinencijs sicut continentur in cartis quas de me tenent. unde aliter non faciatis. Et mando quod abbatissa et Conventus vai aliquis pro eis teneant istam cartam. Datum Sanctarene quode vicesimo dia. ffebruarij. Rege mandante par suos Riquos homines et par alios de suo consilio. quibus comisit factum correctionis super mandato Dominj papa. Jacobus iohanis notuit. Era millesima trecentesima duodecima. (Lugar do selo pendente).

 

E assim se consolidou no domínio do Convento de Arouca, que viria a durar 6 séculos, o antigo núcleo do moderno concelho e da actual comarca de Estarreja, encerrando-se (ou com a própria carta de couto) o que se pode ter, a partir das origens (que não será ousio inédito, nem documental mente desautorizado, fazer remontar à discutida referência Ecclesia Antunane do célebre Parochiale suévico de 569), como o primeiro período da sua história. Para esta se podem sistematizar mais

três: o seguinte até à Restauração, quando surge a mudança de nome, daí ao liberalismo, pelas extraordinárias transformações que o movimento operou, e o posterior. 

 

III-ANTIGAS POSTURAS DA CÂMARA DE ESTARREJA

Tal como nos modernos, nos antigos concelhos, uma das principais atribuições e preocupações dos que, na época, se tratavam, genericamente, de «oficiais da justiça», confusas as funções judiciais com as administrativas, era a elaboração de posturas, a que procediam anualmente, em conjunto com os «homens da governança», que eram os «juizes e homens bons que costumavam andar no regimento», para tal fim convocados.

Era o escrivão da Câmara quem redigia esses «acórdãos e posturas», que ficavam sujeitas à confirmação do provedor da comarca e à fiscalização do corregedor. Tinham a vantagem de serem renovadas todos os anos, o que permitia a assídua actualização das normas administrativas em conformidade com as circunstâncias e a experiência.

Vimos dar hoje notícia de algumas dessas providências legislativas municipais que, pouco depois da Restauração, os juizes, vereadores, procurador e os outros «homens da governança» do antigo concelho de Antuã, então já mudado o nome para Estarreja, tomaram e acordaram para o seu governo.

Contêm essas sábias determinações, além de medidas de polícia e de carácter penal, outras, muito apreciáveis, de fomento, e até nelas se provia quanto ao conveniente abastecimento dos viajantes que passassem nesta vila pela estrada do Porto, do conjunto das prescrições se colhendo interessantes informações a respeito de alguns costumes da época.

 

Começaremos pelas posturas de 1645:

 

POSTURAS que os ofesiais da Camara e homens da governansa fizerão para este anno de 1645

 

Anno da nasimento de noso sõr ihs Xpõ de mil e seis sentos e quorenta e sinquo annos aos des dias da mes de fevereiro do dito anno na villa de estareia e no paso do conselho della em Camara aonde estavão prezentes os iuizes diogo tavares e antonio mateus em este conselho e seu termo o prezente anno por sua magestade com os vereadores afonso pires e fernão pires com o procurador do conselho martinho ioão do boinheiro logo ahi elles ditos iuizes vereadores e procuradores do conselho com estando prezentes muitos homens da governasa ao diante asinados diserão que querião fazer acordos e pusturas pera bon governo do conselho etara [sic - estareia] deste prezente anno os quoais fizerão na maneira e forma seginte de que tudo mandarão fazer este auto E eu diogo da Cunha escrivão da Camara o escrevi

Acordarão que nenhuma pesoa que vender vinho acoartilhado mande amostra a Camara por outre senão a trara pesoalmente pera aver iuramento se a mostra he do mesmo vinho que hade vender

Acordarão que nenhuma pesoa venda vinho acoartilhado sem lisensa da Camara que dela levara feita pelo escrivão della e asinada por dous ofesiais os quoais lha darão sendo o vinho do douro maduro bom a des rs o coartilho e o da tera e anadia a oito rs o coartilho sendo bom e não meresendo os ditos presos os ditos ofesiais lhe porão o preso pera baixo como lhes pareser que val e a pesoa que o contrario fizer vendendo em outra forma pagara mil rs pela primeira ves e dous pela segunda

Acordarão que todo o vendeiro que mesturar vinho que venda com outro ou tiver duas pipas ao torno page mil rs pela primeira ves e dous pela segunda pagos da cadea

 

 / 22 / Acordarão que toda a pesoa que vender vinho acoartilhado sera obrigado a estar senpre em caza enquoanto o vender com pena de quinhentos rs

Acordarão que nenhum vendeiro venda vinho sem trazer as medidas aferir em ianeiro e iunho e as trarão per suas pesoas pera averem iuramento sejam as praprias por que ãa de vender ou se tem outras com pena de quinhentas rs

Acordarão que nenhum vendeiro venda vinho na estrada de santiago que he a do porto e na cabesa do conselho sem se vir obrigar a Camara a ter vinho pão e carne e peixe e palha e sevada e o que fizer o contrario encora em pena de dous mil rs

Acordarão que nenhuma pesoa venda vinho en cargas a vendeiro que vender vinho acoartilhado com pena de mil rs e o vendeiro que lho conprar pera vender page dous mil rs porcoanto as cargas que a este Cº ven são de vinho verde e os vendeiros que lhos conprãa he pera mesturar com os maduros

Acordarão que nenhuma pesoa venda nem peze com pezos e medidas que não seiam aferidos em ianeiro e iunho com pena de dozentos rs e o mesmo todas as pesaas que tiverem medidas de pão e pezos ou outra quoalquer cauza por que aião de conprar e vender as venhão aferir no dito tenpo com pena de dozentos rs

Acordarão que todos os moleiros venhão aferir seus maquieiros em ianeiro e iunho com pena de dozentos rs

Acordarão que todos os tesedeiros venhão aferir suas varas e pezos em ianeiro e iunho com pena de dozentos rs

Acordarão que todos os padeiros não fasão pão senão de quoatro e oito e dezaseis rs com pena de dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que falar malensinada a outra ou lhe chamar algum nome roin page quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que fizer portal em tapagem alhea page dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que fizer caminho por tera que o não deva sendo de pe page dozentos rs e se for com gado caro au quavalgadura quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que apanhar erva em campo ou entrepão alheo page sem rs e sendo fº familia seu pai por elle e criado seu amo por elle

Acordarão que [toda a pesoa que] for apanhar bosta a terra que não for sua page dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que for achada em vinha ou pumar alheio ou orta page dozentos rs e sendo fº familia seu pai por elle

Acordarão que toda a cabesa de gado ou cavalgadura que for achada em novidade alhea sendo de dia page sem rs e de noite dozentos e sera condenado com iuramento do dono da novidade

Acordarão que toda a ovelha ou cabra que for achada em novidade alhea page sinquoenta rs cada cabesa e sera condenado com iuramento do dono da novidade

Acordarão que todo o porco que for achado em novidade ou canpo alheo page sinquoenta rs

Acordarão que toda a pesoa que achar patos em novidade os posa matar sem por iso encorer em pena

Acordarão que toda a pesoa que prometer a outrem dia de serviso e lhe faltar page sem rs e sendo de bois e caro dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que se achar com portal e não tiver tapado sua obrigasão sendo em teras galegas page dozentos rs e nas marinhas quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que tomar barco sem lisensa de seu dono page sem rs

Acordarão que toda a pesoa que der em gado alheo page sem rs

Acordarão que toda a pesoa que cavalgar em cavalgadura alhea sem lisensa de seu dono page quinhentos rs

/ 23 / Acordarão que toda a pesoa que tomar agoa de regadio a outrem em tempo q não for sua page quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que trouxer cão solto em tempo de uvas ou de milho zaburo page dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que tomar tomadia nos montes maninhos deste C.º ou neles lavrar ou cavar ou caminhos ou resios sem lisensa da Camara page dous mil rs

Acordarão que toda a pesoa que não abrir seus agreiros e recolher os enxuros page sem rs

Acordarão que toda a pesoa que tiver conboro em caminho ou estrada o pique e apare com pena de dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa da freigezia de veiros que não for abrir a Ribeira do dito lugar sendo o pregão lansado page quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que não for aos caminhos publicos sendo pera iso avizados ou lansado pregão page dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que não fizer orta tendo aonde page dozentos rs

Acordarão que toda a pesoa que lavar em fonte ou a ella for buscar agoa pera barar eira page sem rs

Acordarão que toda a pesoa que for apanhar iunquo a iunqual alheio sem lisensa do seu dono page sem rs

Acordarão que toda a pesoa q der em filho alheio page sem rs

Acordarão que nenhuma pesoa vendime sem lisensa da Camara pera o que se lansara pregão com pena de quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que for sitada pera vir dar testemunha em ausão q ponha o procurador do conselho e não vier dar seu testemunho page a pena em que ouver de ser condenada a pesoa contra quem se pozer a ausão

Acordarão que nenhuma pesoa mande ovelhas a marinha de ianeiro por diante ate outubro com pena de quinhentos rs

Acordarão que toda a pesoa que cavar nos caminhos publicos ou nelles cavar baro page quinhentos rs

E por esta maneira ouverão elles ofesiais estes acordos e posturas por feitas e as julgarão por sentensa e se mandarão se cumprisem como nella se continhão e asinarão E eu diogo da cunha a escrevi

ant.º mateus

                                    fernaõ piz [de cruz]

Djoguo tavares [de cruz]

                                    martin ioão [de cruz]

                                              p. dor

Dos de Rezende

                                    Aº pires [de cruz]

                                             vereador

fr.co da Sylua

                                    Antº de mtos

 frco da silua

dos iorge [de cruz]

                                    Antº alves [de cruz]

 

Os nomes das assinaturas de cruz mostram-se feitos pelo punho do escrivão.

Nesse ano, em Setembro, veio a Estarreja o Dr. Felix Rebelo de Carvalho, «do Desembargo do Paço de Sua Magestade e seu Corregedor com alçada em a mui nobre e sempre leal cidade de Coimbra e suas comarcas» – entre as quais a de Esgueira, em que se integrava esta vila e concelho – e aqui fez correição.

E, ou fosse pela informação que, segundo a Ordenação Filipina, lhe competia dar sobre «se havia nas Câmaras algumas posturas prejudiciais ao povo e ao bem comum», ou do Provedor, pois não se pode alcançar a origem da determinação, o que é certo é mostrar-se registada no mesmo livro da Câmara, em Dezembro, uma ordem quanto à suficiência do corpo de delito  / 24 / em que se deveria basear o procedimento contra os donos de gado que fosse encontrado em propriedade alheia e para o qual, nos termos de dois dos capítulos das mencionadas posturas, bastava o «juramento do dono da novidade», sem qualquer testemunha.

Damos a seguir a mencionada ordem, sem a parte final (roto o papel):

 

Os Juizes e vereadores não podem fazer posturas e acordãos contra a Ordenação por qm onde a lej dispoem não pode dispor o homem E inda sua magde quando quebra a lej he necessario fazer expressa e particular derrogação della assi qn os acordãos q o dono e senhor da propriedade q achar em dano o gado alheo nella os possa por si so acoimar por seu Juramto não he boa nem se pode guardar por pto a lej e Ord. do livro, 1, ttº dispoem q o pode e deve fazer com hua testemunha pello q assi se farão as tais pª se poderem condenar pellas Justicas

E assi mais não podem os mesmos donos e senhores das propriedades dizer ao procurador do Cons.º qn vio o gado de foam em seu pam ou vinhas e pumares e então qn elle procurador os assente e acuze pello q pode aver de odio e inimizade e por esse cazo dizer qn assente a tal coima... o mesmo soó poderce fazer na forma da Ord. indo diante ao escrivão os ... O modo de encoimar na forma de direito e Ord. e provizoins he qn os... [segue-se a parte rota do papel]

 

Nos anos de 1654 a 1656, os «acórdãos e posturas que os oficiais da Câmara e os homens da governança fizeram» mantêm quase todas as de 1645, com algumas variantes e novas transgressões, entre estas: o pôr marcos ou moirões nos caminhos públicos ou neles fazer covas, o não fazer os covais nas freguesias ou deles tirar gado sem licença da Justiça, o cortar pinheiros, castanheiros, carvalhos ou outras árvores, ou as esfrançar, nas terras que não forem maninhos, o apanhar lenha em propriedade alheia, com carro ou à cabeça, mais pesada a multa no primeiro caso.

A venda de vinhos e seu condicionalismo, em que são de notar as preocupações de ordem higiénica, eram objecto de especial cuidado por parte da justiça e administração municipal da época, que, pelos almotacés, se fazia incidir com maior ou menor rigor sobre os «vendeiros», e punindo mais duramente a especulação (como agora se diria) nos preços, os quais, tabelados, somente podiam sofrer as alterações que fossem determinadas em câmara, por meio de nova postura (em 1654, a 13 rs. o do Douro, e a 10 o de Anadia; em 1655 e 1656, os preços de 1645).

Clicar para ampliar.
Estarreja – Painel de azulejo na parede da escadaria nobre dos Paços do Concelho (1953).

Nas posturas de 1655, foi estabelecido que ninguém poderia vender vinho aquartilhado (a retalho) sem se obrigar previamente na Câmara a vendê-lo todo o ano e pelo preço fixado e nas demais condições, sob «pena de 2000 rs. pagos na cadeia».

Entre essas condições, novas, também, em relação às de 1645, já as posturas de 1654 obrigavam os vendeiros «a ter as medidas lavadas, cobertas com toalha lavada e carqueja no funil, muito bem limpo» e a «ter o Regimento de acordos que lhes tocassem pregados na casa onde vendessem vinho, feito e assinado pelo escrivão da Câmara», em ambos os casos com pena de 500 rs.

Passando a «vendeiros obrigados», vêem-se estes a assinar os respectivos termos de «obrigação», com os juizes, vereadores e procurador do Concelho, que em 1655, eram, respectivamente: Domingos de Resende e Fernando Antão; João Vaz, João Alves e Domingos João; e Domingos de Pinho. Assim se obrigaram os vendeiros de todo o Concelho: Manuel André Cardadeiro e Maria Francisca, de Pardilhó; Manuel Rodrigues, moleiro, Manuel Gomes, Maria André, viúva, José João, Manuel Rodrigues, o Barbeiro, e Domingos Francisco, o Tutoro, de Veiros; Manuel Nunes e Maria Dias, de Avanca; Leonardo da Costa, de S. Sebastião, e Isabel da Cunha, dos Carvalhos, ambos ditos de Adou (por Avanca?); Belchior do Couto e Manuel Domingues, de S. Tiago, para a Vila; Polónia André, dos Sedouros (Bunheiro); António Rebelo, do Monte (Murtosa); e Domingos Gonçalves, de Santa Cristina de Salreu, então do concelho de Bemposta.

Logo, porém, em 1656 se pôs de parte o sistema dos «vendeiros obrigados». E as razões constam do seguinte:

 

Acordo q os officiais da Camera fizerão sobre os Vend.ros de V.º / / Anno do nasimento de nosso sõr jezus christo de mil e seis sentos e sincoenta e seis annos na Villa de Estareja e passo do Concelho della em camera aonde estavão os juizes marcos da silva Agostinho joão e os Vreadores Andre joão e affonsso dias e o procurador do Conçelho Antonio pinto elles ofticiais por queixas que os moradores deste Comcelho lhe havião feito em rezão de não aver vinho e se não obrjgarem elles officiais fizerão os acordos com alguns os homens da governança seguintes

 / 25 / Acordarão que não ouvesse neste comselho vend.ros obrigados em rezão da falta q avia de V.º e não aver quem se quizesse obriguar e que toda a pessoa que quizesse vender V.º o podia fazer mas q seria sempre com ficar obrigado has pusturas atras feitas porq. ellas ficavão em seu vigor e somente revogavão ha que tratava q ouvesse vend.ros obrigados / / E por esta maneira ouverão o dito acordo por feito e asinarão fr.co Cardozo p.co o escrevj [Francisco Cardoso Pacheco, escrivão da Câmara].

[Seguem-se as assinaturas; havia outras, que se não descobrem]

afonso dias

                                                    Marcos da silua

Dos de pinho

                       Ant.º pinto [de cruz]

                               procurador

                                                    Manoel Rangel

Juam Rodrigez

                                                    Agostinho ioam

Mateos aº

                                                    Andre io

pº antão [de cruz]

                            manoel tauares

                                                    mel ioão [de cruz]

 

A acta não menciona o dia e mês, mas deve ser de Abril.

E, em Junho, os oficiais de justiça e homens da governança deliberam alterar os preços para 11 rs. o quartilho, o do Douro, e 9 rs. o de Anadia, «por queixas que havia que não havia vinhos em rezão da postura estar baixa e os vinhos caros.»

___________________________

(1) - Notas:

Excertos dum trabalho monográfico sobre Estarreja, em preparação. Como base documental da parte referente ao Couto de Antuã e Avanca, servimo-nos da publicada no «Arquivo do Distrito de Aveiro», especialmente no vol. XX, 90-136 (e separata), pelo ilustre investigador Sr. Dr. Manuel Rodrigues Simões Júnior, de Arouca, a quem rendemos a nossa homenagem: «Mosteiro de Arouca – Couto de Antuã e Avanca – Subsídios para a sua história».

De resto, a falta de existência real do Arquivo Distrital, aonde possam ir parar todos os espécimes relativos à região aveirense, retidos e disseminados por vários arquivos do País, e enquanto se mantiver apenas criado no jornal oficial, mas sem instalações nem recheio, coloca os investigadores e curiosos de antigualhas que vivem longe das fontes documentais directas e impossibilitados de a elas ascenderem, em situação de lamentável orfandade, a que só a colecção da cotada e benemérita Revista pode prover e em grande parte já ocorre, graças ao devotamento dos seus ilustres directores e dos mais dotados colaboradores, ao longo de 34 anos.

// Cimo da página //

páginas 7 a 25

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte