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N.º 6

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1968 

Antologia Aveirense

EGAS MONIZ

NOTAS

BIOGRÁFICAS

 

EM terras do distrito, ali em Avanca, nasceu, na Casa do Marinheiro, em 29 de Novembro de 1874, o eminente Sábio EGAS MONIZ de seu nome completo António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz – glória da região aveirense e de Portugal inteiro.

Frequentou brilhantemente a Faculdade de Medicina na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1899 e doutorou em 1901, e onde foi Professor até 1911. Neste ano, foi transferido para a Faculdade de Medicina de Lisboa, ficando a reger a cadeira de Neurologia, especialidade a que se dedicou. Faleceu na capital a 13 de Dezembro de 1955.

As investigações e descobertas do Professor Doutor Egas Moniz alcançaram fama universal e haveriam de galardoá-lo com a mais alta distinção – o PRÉMIO NOBEL.

Não foi, porém, somente no mundo da Ciência que Egas Moniz se celebrizou: a sua actividade inteligente manifestou-se intensamente também no domínio da Literatura e da Arte.

 

É vastíssima a sua bibliografia médica e extra-médica, sabendo-se ainda da existência de preciosas cartas e outros escritos inéditos. Damos aqui à estampa um excerto de uns apontamentos, datados de 1948, notas em que ele esclareceu tratar-se apenas de um «esboço do Catálogo da Casa Museu do Marinheiro».

Esta Casa-Museu, sonho que o insigne Mestre acalentou, tornou-se realidade no corrente ano: foi inaugurada e patente ao público, em Julho último, com o nome de Casa-Museu da Fundação Egas Moniz. Reúne numerosos e preciosos objectos artísticos que, como afirma, «durante décadas de anos foi adquirindo», os quais farão sem dúvida, o regalo dos olhos e do espírito dos visitantes.

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I

«Durante dois ou três anos pensei na efectivação da «Casa-Museu» do Marinheiro, que minha mulher e eu projectámos legar aos meus patrícios dos concelhos de Estarreja e Murtosa, que sempre me deram demonstrações de estima e apreço, particularmente Avanca e Pardilhó.

Entendemos que o grupo de limitados haveres que possuímos em Avanca deviam formar o grupo que poderia suportar o encargo do Museu.

Tudo foi ponderado, desde a sua organização financeira até à distribuição dos objectos artísticos que formam a base da atracção dos visitantes. Encheu-me de prazer este trabalho, que apreciei nas mínimas particularidades. Reunir num único local as coisas que durante décadas de anos fui adquirindo, informar da origem das mais importantes, viver as peripécias que muitas compras determinaram e que ainda permanecem na lembrança, coisas mínimas que só os que se dedicam ao prazer de coleccionar algumas antiguidades podem saborear.

Um exemplo: um dia, Álvaro de Miranda conseguiu uma bela colecção de serviços de chá que pôs à venda. Sabia que eu era comprador e, como desejava transaccionar com brevidade a mercadoria, mandou-me um telegrama a pedir a minha visita. Como andava, de há muito, em busca destes objectos, segui, no dia imediato, no rápido da manhã, para a Granja. Na carruagem em que entrei também fazia viajem o grande poeta Guerra Junqueiro, a quem me prendia, com muita admiração pelo seu talento, uma amizade a que ele correspondia. Ora o autor de «Os Simples» era também um coleccionador afamado e apaixonado de objectos antigos de arte e conhecedor, a fundo, de porcelanas e faianças. Disse-me que ia passar um tempo à sua casa do Norte. Estranhei um pouco o nosso encontro a «caminho da Granja», mas não fiz reparo de maior. Chegados à estação, verifiquei que Guerra Junqueiro também se apeara e tive então a certeza de que fora avisado pelo Miranda da colecção que obtivera. Deu-se nessa altura uma espécie de marcha forçada para o estabelecimento de vendas, que ficava próximo, do lado oposto à estação, tendo por isso de se atravessar a linha.

Sentindo que ia ter um competidor de grande categoria, apressei o passo, não sei mesmo se cheguei a correr; e, como era mais novo, alcancei o estabelecimento antes que Guerra Junqueiro chegasse. Ao ver o meu avanço, não insistiu em apressar a marcha, dando-me uns minutos de vantagem, que aproveitei em ver as porcelanas. Sobre uma mesa grande havia vários serviços da China de chá: um azul e oiro, completo, um dos mais belos que conheci, um da Companhia das Índias, com firma, também completo, e mais dois incompletos, mas com peças interessantes, azul e branco e vermelho e branco e bastantes chávenas. Perguntei o preço total. Não discuti. – «Está tudo comprado; mas daqui não sai nenhuma peça, seja para quem for». Concordou comigo. Continuei: – «Vem aí o Guerra Junqueiro, que V. também avisou» – disse-lhe intencionalmente. Não negou. «Repare bem: o que está sobre a mesa já lhe não pertence».

Na impossibilidade de contar as peças, que passavam de 150, fui notando o que era mais importante, ficando assente que, no dia imediato, ficariam no «Marinheiro». Nisto, entrou o nosso querido Poeta. Logo se encaminhou para a mesa onde estavam expostas as preciosas porcelanas. Disse-lhe Álvaro Miranda que eu comprara o lote. Não desanimou de acarinhar uma malga do serviço azul e oiro, que desejava por todo o preço adquirir. Miranda bem lhe dizia que já lhe não pertencia; mas insistia com uma pertinácia digna de um coleccionador de grande classe. Sob o pretexto de ver outras antiguidades expostas, ia vigiando os movimentos do Poeta amigo, naquele momento competidor de temer. Miranda ainda ousou perguntar-me se podia ceder a linda tigelinha... – «Impossível. Então V., amador de coisas de arte, entende que eu posso consentir em ficar incompleto um serviço daquela categoria? É esse o seu grande valor. Comprei tudo. Nada lhe pertence do que aí está». E, dirigindo-me a Guerra Junqueiro: – «Adeus, caro amigo. Boa viagem. Eu sigo agora no tramway para a minha aldeia, onde receberei as suas ordens. Até breve». No dia imediato tinha em Avanca toda a encomenda e muito nos regozijámos com a vitória apontada.

Outro exemplo: José Relvas, um dos mais notáveis coleccionadores portugueses, conhecedor como poucos de quadros e tecidos, cuja opinião todos respeitavam, deixou ao país um dos melhores Museus que possuímos. Já a casa é digna de ser visitada pela sua arquitectura invulgar, com ressaibo de linhas andaluzas. O recheio é magnífico. Quadros primitivos formam uma das salas. Do melhor que possuímos.

Dos pintores modernos um sem número de preciosidades, de Constantino, Silva Porto, Condeixa, Malhoa... para só citar os que mais me impressionaram. De quadros estrangeiros, uma abundante documentação.

Uma excelente cópia dos Borrachos de Velásquez e um quadro original que lhe é atribuído e ao qual, à primeira vista, dei essa paternidade. Soberbo. Em louças, Saxe, China, Índia, Vista Alegre, tudo ricamente representado. Tem um grupo de Saxe como nunca vi igual e outro também muito grande e muito belo. Em mobiliário, uma sumptuosidade que merecia uma larga descrição se a memória me ajudasse e fosse aqui lugar azado para o fazer. Tapeçarias como não há mais belas. Embora seja pouco conhecedor desse género, citarei entre as portuguesas um tapete de Arraiolos, de / 50 / seda, antigo, exemplar único; e riquíssimos paramentos religiosos que dariam o precioso recheio de uma sumptuosa Catedral. Não há catálogo deste maravilhoso Museu, no conjunto o mais rico de Portugal. Quando estiver patente ao público, será motivo de peregrinação para os romeiros da Arte.

José Relvas andou muito tempo em torno de dois quadros franceses da época romântica, tipo Corot, (ilegível) com assinatura indecifrável, pois os nomes estão substituídos por uns sinais que não pude interpretar. Eu também apreciava os quadros em que se respirava melancolia e eram de minuciosa e primorosa execução. O antiquário teimava num preço que José Relvas se não decidia a dar, elevado para a época, insignificante com a actual desvalorização da moeda. O episódio deve ter-se passado há cerca de 40 anos. Eu também achava a quantia excessiva mas, um dia, num ímpeto de coragem, resolvi-me a satisfazer a exigência do antiquário e trouxe os quadros para casa. Figuram hoje, como jóias valiosas no salão da Casa do Marinheiro. José Relvas conheceu o nome do rival e disse-me um dia que os quadros eram bons, mas que não valiam o dinheiro que por eles dera. Por isso os não tinha adquirido.

– «Às vezes os fracos tomam assomos de valentões» – retorqui-lhe, sorrindo. Com efeito, comparar as magras possibilidades com as de José Relvas, era audácia que me ficava mal. José Relvas sentiu não se ter decidido pela compra. Daí a explicação.

Também perdi algumas partidas, entre elas uma em Madrid, num brique-à-braque na Calle S. Jerónimo, que ainda agora me aborrece. Havia ali dois ricos grupos de Saxe coloridos, duma rara perfeição. Estavam na casa há muitos meses. Ninguém lhes pegava. Perdi-os por uma ninharia, de um dia para o outro. A vida de coleccionador sofre destas contrariedades. Pequenas coisas que só os que andam por estes trilhos sabem sentir e apreciar. Raro é o objecto adquirido que não tenha a sua pequena história que relembramos na apreciação das colecções. Os objectos falam-nos como amigos velhos, e alguns – já noutro campo – parecem discutir connosco a sua autenticidade. Em peças da China, quando se quer penetrar a fundo na determinação da época exacta a que pertencem, mesmo os grandes peritos, de lente em punho e cheios de experiência, caem em erros ou ficam em incertezas impenetráveis. As porcelanas das dinastias de Ming, de Tsing, do período Vung-Ching ou Keen-Lung são problemas para mim transcendentes, pois até as peças foram por sua vez imitadas. Copiaram-nas de potes, jarras e pratos de épocas anteriores. O emprego de certas cores, de vidrados e esmaltes podem inclinar os conhecedores para um certo período, para uma determinada época; mas, como diz Blacker (ilegível), as dificuldades de apreciação são inúmeras. Desde que as peças chinesas tenham a patina que o tempo lhes traz e sejam belas, o resto pouco me importou no momento da sua aquisição. Os pratos dos serviços mais conhecidos têm características próprias, como por exemplo a cercadura típica da louça de Cantão. São contudo especialmente apreciadas pelo conjunto de desenho e pelo brilho especial que o tempo lhes trouxe.

Nas peças policrómicas, e mesmo no azul e branco, têm valor especial os serviços da Índia que apresentam figuras chinesas ou figuras europeias, como se observa em porcelanas da Companhia das índias. Possuímos alguns desses exemplares, que vão ilustrar o nosso Museu.

De antigas porcelanas portuguesas já se coleccionam entre nós as da fábrica da Vista-Alegre, especialmente as da marca oiro, de que há também bastantes exemplares na nossa colecção. A marca azul com letras pequenas foi, segundo creio, a que se lhe seguiu, sendo as letras V. A. maiores na época subsequente. Há peças preciosas dos primeiros tempos. Sirva de exemplo um tinteiro, dessa época; um serviço de chá, marca oiro e outras porcelanas da mesma época, como um cesto vazado da mesma marca que possuo, para citar um exemplo e que ficarão expostos. Nos períodos seguintes também houve alguns belos exemplares, de decorações policrómicas de artistas franceses e portugueses que estiveram ao serviço da fábrica. Esta melhorou muito ultimamente, passando a ser uma excelente escola de oleiros, a mais notável do país, alcançando mesmo com justificada razão renome no estrangeiro.

Os vidros da Vista Alegre são também muito apreciados. São anteriores às boas porcelanas. A fábrica conseguiu obter cristais magníficos. Todos conhecem os copos com incrustações de retratos de reis, rainhas e algumas ordens honoríficas. Alguns exemplares figurarão no Museu do Marinheiro; mas faltam outros. Alguns perdi por falta de coragem e decisão em os pagar, quando ainda eram acessíveis à minha bolsa, entre eles um com a efígie de D. Miguel, que, em homenagem ao passado, ficaria bem na Casa-Museu que após a nossa morte se organizará. Também tenho algumas peças, hoje muito raras, de vidros de primitivo fabrico, em especial uma compoteira de cuja identificação não tenho dúvidas. Na exposição que há anos se realizou em Lisboa, de peças antigas da Vista Alegre, apareceu uma preciosíssima colecção de cristais, quase todos da família Pinto Basto, a quem a fábrica pertenceu e suponho ainda pertence, pelo menos na sua maior parte, peças a rivalizar com o que de melhor se obteve no estrangeiro. A colecção que possuo da Vista Alegre – porcelanas e vidros – foi constituída através de muitos anos, muito antes de pensar na organização de um Museu. Havia uma razão a orientar-me neste sentido; era do meu distrito e foi nessa fábrica que o operário Capote, de que tenho o busto descobriu os / 51 / primeiros jazigos de caulino, indispensável ao fabrico da porcelana. No catálogo definitivo serão descritos todos os objectos expostos de que fica notícia nos inventários que possuo das Casas de Avanca e Lisboa. Eles servirão de base à ordenação final.

Por agora deixarei apenas umas notas expressas (um pouco ilegível) ao correr da pena, esboço sem a pretensão de servir de directriz à ordenação dos objectos que consegui amontoar. E com ele um ou outro episódio, que, servindo para amenizar a leitura – se alguém se der ao trabalho de compulsar estes apontamentos, um ou outro facto íntimo, até aqui esquecido ou ignorado. Tudo ninharias; mas anseios de quem tem a vida presa à sua aldeia, à família querida, e à Casa, escrínio de saudades que levarei comigo para o eterno esquecimento.

O livro «A Nossa Casa», que publiquei mais tarde, mostra todo o afecto que eu e minha mulher lhe dedicamos. Estas notas foram escritas antes de o escrever. Foi aqui a sua origem. São de 1947, antes de me terem celebrado com o Prémio Nobel que veio no fim da vida, mas a tempo de tornar mais justificado o nosso intuito de não dispersar a nossa colecção antes de juntarmos nesta Casa-Museu para regalo e educação dos meus patrícios. De tal maneira o povo português me tem considerado, que, uma vez por outra, se dignará visitar este modesto solar, que foi dos meus e onde nasci.

 

II

A primitiva Casa do Marinheiro era uma modesta construção do século XVII, similar a outras de Avanca de que ainda hoje se conservam vestígios. A Casa do Mato, a mais antiga, que sucedeu a uma outra, foi edificada por volta de 1500, segundo rezam apontamentos de família, que possuímos. Está bastante arruinada, mas ainda tem num portão lateral uma bela pedra armoriada, mandada fazer no século XVIII por um sacerdote da família.

A antiga construção tem janelas similares à parte térrea da Casa da Areia, outra construção da época, depois acrescentada com uma parte mais alta, também interessante pela forma dos telhados. A antiga Casa do Outeiro também tinha traça similar, segundo ouvi contar. No mesmo local levantaram no século XVIIII o belo solar que hoje existe com a capela estilizada, D. João V, uma das mais interessantes que conheço no seu granito lavrado, da melhor categoria. Outras casas houve em Avança, da mesma época, de famílias aparentadas, a dos Brandões e a do Telhado, já de transição, assobradada, com varandas de ferro forjado simples, ambas demolidas e de que, dentro em pouco, apenas só ficará fugaz memória dos locais onde existiram.

A actual Casa do Marinheiro foi reconstruída, aproveitando todo o perímetro da velha edificação, depois aumentada para o Sul, dando a frente para a estrada que, da estação, segue para Mourão e Pardilhó. A entrada do antigo prédio era do Norte, do lado oposto. Ainda me lembro de não haver estrada, melhoramento primordial que deve ter sido levado a efeito por volta de 1879, segundo as minhas reminiscências. Avanca era nessa época uma pacata terra de lavradores, que, querendo dar-se ares de senhores, empobrecia a olhos vistos. Só se salvavam alguns, também possuidores de boas leiras que eles próprios cultivavam com porfiado trabalho.

O primitivo apeadeiro dos Caminhos de Ferro, que se deve a João Pacheco Corte Real com influência por parentesco junto de José Luciano de Castro e seu irmão Francisco Matoso de Castro Corte Real, que dominavam a política do distrito por ser José Luciano o chefe do partido progressista, um dos grandes agrupamentos políticos dessa época.

O modesto apeadeiro da linha férrea, substituído por um edifício de belo aspecto, com ilustrações de azulejos de Aveiro, graças à iniciativa e aos esforços duma Comissão de que faziam parte o Prof. Boaventura Pereira de Melo, Cap. Manuel António da Silva Pereira e outros. Foi esse o primeiro grande passo para o progresso da freguesia de Avanca. A sua ligação por estradas com as aldeias vizinhas, especialmente com Pardilhó, de população dinâmica, activa e empreendedora, principalmente em construções navais em cuja carpintaria, agora quase sempre fora das suas Ribeiras, ainda mantém a hegemonia do operariado desta arte. Ao lado dessa, outras actividades industriais e comerciais têm mostrado quanto os pardilhoenses se comprazem em engrandecer o seu burgo. É de muito mais recente data do que Avança, à qual, há pouco mais de um século, estava ainda eclesiasticamente ligada.

Avanca é uma terra antiga, que dizem fora vila em remotos tempos, pois é coeva da fundação da monarquia lusitana. Teve famílias, todas mais ou menos aparentadas com brasões de armas e faláucias nobiliárquicas que muito as prejudicaram, afastando os seus membros de actividades produtivas, perdendo-se na inactividade de grandes senhores, quando não havia riqueza intrínseca para tal. Outros Avancanenses subiram, no campo industrial e comercial, e a custo resgatavam, pelo trabalho, a estagnação da actividade dos que os antecederam. Ainda me lembro, em criança, das aparências fictícias dum fausto que não podia manter-se em agradáveis festas de gente bem educada e de boas maneiras, qualidades que representavam alguma coisa, mas não bastam às exigências e progresso da vida, que por toda a parte se levanta sobre pilares sólidos duma actividade honesta, persistente e regrada. Meus pais e meus tios, agregado familiar muito antigo e muito unido, viram talvez tarde, para eles, o problema; mas muito a tempo para mim. E não / 52 / digo para os meus três irmãos, infelizmente levados cedo pela morte e pela desventura.

O mais velho, António Joaquim, faleceu criança; minha irmã, Luciana Augusta de Sousa Abreu Freire, veio tuberculosa do convento de Arouca, onde estava a educar-se e finou-se em Avanca, aos 16 anos, entre cuidados e carinhos, numa consumpção geral, quando a existência era apenas um vago e prometedor sorriso. Foi-se com ela a alegria do nosso lar. Todos a estimavam. As primas do Outeiro e da Areia disputavam a sua amizade e compraziam-se com o seu agradável convívio. Por fim, já nem o seu piano a chamava, pois faltavam-lhe forças para mover as teclas, o que tanto prazer lhe dava e a todos nós, que, em torno das suas modestas exibições, enleados a ouvíamos. O meu irmão Miguel Maria, de nome que evocava as tradições legitimistas de toda a família paterna, pois meu avô António Pinho de Resende fora tenente-coronel de caçadores e um dos bravos que à frente do seu regimento atacaram o Porto onde o constitucionalismo alcançou ruinosa vitória. Um tio meu, de nome Miguel, foi afilhado do Sr. D. Miguel, como soía dizer-se, mesmo na maior intimidade, com mesura das damas da família, ao pronunciar-se-lhe o nome. Meu irmão ainda conservou o nome numa homenagem de saudade ao Rei proscrito.

Minha mãe era caramulana, filha de um grande liberal daquelas terras montanhosas. Rafael Henrique de Almeida e Sousa, o Rafael de Alcofra, que de tempos a tempos visitava a filha, que o adorava. Mas não entrava em nossa casa, falava-lhe do caminho. Andava de mal com o meu pai, e talvez no complexo determinante do corte de relações entrasse o coeficiente político, pois os dicídios das lutas liberais permaneceram por muitas décadas de anos na sociedade portuguesa. Só com ele convivi depois do desaparecimento de meu pai, já então colegial, nas férias, em Pardilhó, em casa de meu Tio Abade. Admirava a sua bela barba branca, o seu fato de burel de montanhês intemerato das guerrilhas anti-miguelistas e companheiro de luta do célebre Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, a quem, por iniciativa liberal, levantaram uma estátua em Viseu. Meu avô era vivo e simpático no seu convívio. A sua conversa anedótica deleitava-me. Ainda me estimam no Caramulo por essa ascendência de Alcofra, aldeia perdida na vertente norte da serra, num vale profundo, onde ainda hoje negreja a casa do Carril, na qual viveram os meus maiores e se criou a minha querida Mãe.

A gente de Vouzela nunca se esquece de mim, nas horas de homenagem; a elas se associando com entusiasmo pois para os Vouzelenses continuo a ser caramulano, portanto conterrâneo. Minha mãe não foi feliz na vida. Nem lhe pude dar a compensação que esperava proporcionar-lhe, fazendo-a viver uns anos de tranquilidade, amparada pelo meu braço. Faleceu cedo, sem que eu pudesse saldar a minha dívida de reconhecimento. Meu pai viu-se em más circunstâncias pecuniárias e, homem de decisão, empregou-se na Alfândega da Beira, na província de Moçambique, vindo a falecer em Lourenço Marques antes de completar dois anos de voluntário exílio.

Meu irmão Miguel seguia o liceu em Viseu, para onde meus tios me mandaram concluir o curso secundário. Até aí frequentara um colégio de Jesuítas, em S. Fiel, e falava ao tempo no propósito de pertencer à Companhia. Nessa época deslumbrava-me a Matemática, como a mais bela das ciências. Prendiam-me os problemas que, já fora do curso liceal, um jesuíta de grande categoria mental, o Padre Fernandes Sant'Ana que ao tempo ensinava essa disciplina em S. Fiel, me dava para entretenimento, especialmente numas férias que ali passei, e a que, se bem me recordo, nunca deixei de lhes encontrar solução. Devo dizer em abono da verdade que não era este professor que me instigava a entrar na Ordem. Pelo contrário, aconselhava-me a seguir, cá fora, o destino escolar que escolhesse e, se mais tarde pensasse em seguir a vida religiosa, que fosse então. Só assim mostraria ter decidida vocação. E, de facto, não a tinha. Passados três meses em liberdade, não mais pensei na Companhia de Jesus. Começaram então a assaltar-me dúvidas sobre problemas religiosos. Em menos de um ano, despia-me de todas as poeiras que me prejudicavam a visão e desde essa época adquiri a independência mental que perdura hoje, na avançada idade em que estou escrevendo, com a mesma convicção e segurança. Meu irmão Miguel seguia bem nos estudos, três anos atrás de mim. Naquele tempo os exames eram singulares e as disciplinas não obedeciam rigidamente à organização dos estudos por anos.

O facto é que fui estudar inglês com ele num prelector militar que conhecia bem a língua. Meu irmão tinha jeito e gosto pelo estudo dos idiomas estrangeiros, habilidade em que nunca fui forte.

Eu estava bastante sobrecarregado com estudos, nesse último ano liceal e abandonei um pouco o inglês que meu irmão, por fim, me ensinou de sorte a poder fazer exame. Nas provas finais, alcancei um prémio em Matemática e distinções em outras disciplinas. O Inglês foi o último exame. Entrámos os dois a provas em dias seguidos. Resultado: o Miguel ficou aprovado e eu, que não tinha metade do seu saber, fiquei distinto. Isto contrariou-o ao máximo, não por emulação, pois era muito meu amigo e apreciava as minhas qualidades, mas pela injustiça do facto, tanto mais que as provas se distanciaram, sendo as dele muito melhores.

Isto concorreu para, passado mais um ano de liceu, / 53 / atendendo por um lado às dificuldades financeiras da casa e por sua vez dando satisfação ao seu feitio aventureiro de origem, pedir a meu tio para ir para a África trabalhar, ganhar a vida: pois, esclarecia, era um encargo pesado para meu tio estar a subsidiar, ao mesmo tempo, a educação de dois sobrinhos. No fundo, porém, era a revolta contra a injustiça de que foi vítima e uma tendência inata para ver novos horizontes na vida. Da família só meu tio Padre Caetano de Pina Resende Abreu Sá Freire, ao tempo abade da freguesia de Pardilhó, muito dedicado à família, podia a custo arrostar com as despesas da educação dos sobrinhos que estremecia. Muito económico, a braços com dificuldades para salvar a Casa do Marinheiro, que teve de comprar em praça e que não desejava perder, por ser o modesto solar da família, onde seus pais tinham falecido, e nós tínhamos nascido.

Opôs-se com boas razões aos desígnios do meu irmão; mas, por fim, consentiu em que partisse, no que também concordou minha pobre mãe, que vivia em nossa companhia em Pardilhó.

Dias de lágrimas, de minha mãe, minhas e também do velho Abade no dia da despedida. Quis acompanhá-lo ao embarque a Lisboa. Assistiu à largada do vapor, seguindo-o até o perder no escuro do horizonte e descrevia a cena com uma realidade impressionante, em que a saudade punha lances de drama que todos vivemos em hora amargurada. Na sua exposição simples e comovida havia passos de uma poesia íntima, afectiva e dolorosa. Depois da ceia, meu tio continuou a salmodiar o breviário e minha santa mãe levou-me para o oratório, a fim de rezar à Virgem da Boa-Viagem para proteger o Miguelzinho e a pedir que lhe desse sorte por terras de África onde já tinha falecido meu pai. Procurava aliviar as suas desgraças nas suavidades da crença em que se enlevava. Horas de suprema angústia para a minha querida mãe, tão boa e tão cruelmente experimentada pelas mais duras adversidades.

Meu irmão era audacioso e forte. Um pouco moreno, parecia-se mais com minha mãe. Era um coramulano de músculo forte e tez amorenada. Empregou-se na Beira, logo que chegou, e a vida corria-lhe regularmente. Mas seduziam-no as caçadas aos leões e um dia foi mais longe com os companheiros, em busca das feras. Informou um deles que meu irmão abatera dois leões; mas uma fera prostro-o definitivamente na selva muito longe da Beira, onde ficou sepultado à sombra das palmeiras esguias em que o rumorejar das folhas ainda hoje reza, no sopro das ventanias, pelo seu eterno repouso.

Falecera em Lobão meu tio Augusto, o carinhoso padrinho de minha irmã Luciana. Não tardou que minha mãe os acompanhasse. Faleceu com pouco mais de 50 anos. E da numerosa família apenas restava eu, como seu representante, ao lado de meu bom tio Abade e do velho tio João António, último sobrevivente de Lobão da Beira. Veio ver-nos a Pardilhó. Aproveitei para os fazer fotografar e em grupo comigo, última trindade dos Resendes.

Estava no quarto ano de medicina, quando me faltou o meu tio Abade e queridíssimo amigo que, acima de todos queria ressuscitado para ver a carreira que pude percorrer devido aos seus estímulos pelo trabalho, pregão constante com que me embalava, aos seus carinhos e ao seu valioso e indispensável auxílio.

Deixou-me a Casa do Marinheiro entre os seus haveres. Ninho abençoado, que recorda todo este passado familiar e onde decorrera a vida inteira ao lado da minha carinhosa Mulher, que tanto se afeiçoou à terra onde nasci. Foi sempre o nosso melhor refúgio no redemoinhar de alegrias e contrariedades da vida. Tudo devo a meu tio e padrinho. Santo velho que trago sempre no meu coração, ao lado dos meus pais, talvez mais alto ainda! E seriam estes que o desejariam ver mais elevado no altar dos meus melhores afectos.

Meu tio João António faleceu três anos depois do Abade.

Em mim termina a estirpe, pois não tenho descendência. Não sinto pesar por isso e só o sentiria, se não tivesse arranjado solução de continuidade para a nossa Casa do Marinheiro, onde guardo as minhas saudades e afeições, Santo Graal onde luzem as altas virtudes – e tantas foram – dos que mais amei na vida.

Estas evocações que o coração ditou e ficam nestas páginas íntimas, vieram à colação por me referir à Casa de Avanca. Era-me indispensável deixar escritas estas impressões (1) de um passado que tenho sempre presente, coisas por certo desconexas por acudirem à pena sem sofrerem retoque ou correcção. Simples confissões íntimas, retratadas em pinceladas duma forte tonalidade afectiva. Panorama de uma época que só tem importância para a minha sensibilidade. Recordo-a com prazer, e não raras vezes se me humedecem os olhos no embevecimento de lembranças que só a mim acalentam nas horas que vão passando. Quando me prendo a estas recordações, entro numa espécie de êxtase em emotivo, vivendo o sonho triste, mas reconfortante das pessoas queridas que represento neste momento da existência. É provável que mais tarde me abalance a fazer um volume sobre a família e a Casa do Marinheiro. Espécie de autobiografia da idade infantil e juvenil, se tiver tempo e disposição para ir tão longe. Por agora ficam aqui exaradas umas notas preliminares que ficarão arquivadas na Casa-Museu que espero as conserve, pois não valerá a pena publicá-las».

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(1) – O que aqui escrevi em 1947 foi o esboceto do meu livro «A Nossa Casa», publicado em fins de 1950.

 

páginas 47 a 53

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