Pertencia a paróquia de Cabanões (mais tarde dita de Ovar) à Mitra
e ao Cabido (1), todavia, por acordo entre ambas, passou,
em 18 de Setembro de 1466, o seu padroado a ser da apresentação
simplesmente do Cabido
(2). Quanto aos seus frutos e
proventos materiais, foram unidos à Mesa Capitular, por Bula de
Paulo II, de 24 de Maio de 1468, executada em 27 de Outubro de
1470. (3)
Ovar e Válega eram da apresentação
do Cabido, pelo que lhe pertenciam os dízimos, que, de três em
três anos, eram arrendados em hasta pública pela Páscoa. Em 1790,
o Capitão Manuel de Oliveira Camoça, de Aveiro, arrendou-os
conjuntamente, por três anos, pela quantia de 8733$335 reis anuais
– continuou no seguinte triénio por 8870$000 anuais e no de 1796
foram para José Pinto Machado, do Porto, por 9300$000 anuais –
mas, além disso, tinha o arrematante de pagar «de propina» ao
Cabido, até ao fim de Janeiro de cada ano, sessenta e quatro
milheiros de sardinha escorchada, encanastrada e posta no Porto.
(4)
Por causa dos seus interesses
materiais em Ovar, teve o Cabido de sustentar grandes pleitos
judiciais, do século XVI ao XVIII, com Válega, Beduido, Arada,
Maceda, Cortegaça e Mira.
OVAR E VÁLEGA
Em 1540 começou uma questão, que
subiu à «Corte de Braga» (Tribunal Eclesiástico), para onde apelou
o Cabido, contra Gaspar de Resende – filho do Cavaleiro Fidalgo,
Garcia de Resende, morador na Vila de Ovar – que, de há pouco, era
«Reytor e Abbade» de Válega, não obstante ter menos de 20 anos, e
bem assim contra o Comendador e cavaleiro Fidalgo da Ordem de
Santiago, Belchior de Macedo, que, por Bula Apostólica, tinha as
duas partes dos frutos da dita Igreja de Válega. A razão era esta:
os Réus apoderaram-se indevidamente dos dízimos de certas ilhas,
alegando que estavam dentro da sua paróquia.
Na sua alegação, dizia o Cabido, a
igreja de Cabanões estava anexa in perpetuum à Mesa
Capitular, pelo que nela percebia os dízimos, permícias, rendas,
direitos e frutos. Cabanões «estava cita ao Norte e a Igreja de
Vallega estava ao Sul e asim a Igreja de Abanca, e a de Vedoido, e
a Igreja de Cabanões com a de Vallega com penção de partir o
lemite de suas freguezias na terra e dali vinha ter a Cal da Agoa
do Puxadouro que hera huma Cal de agoa tão larga de baixa mar como
o Rio Douro e de preamar hera duas vezes tão larga como o dito
Douro e dali por a Cal abaixo athe a Ponte de Rabe Rabe e da dita
Ponte de Rabe Rabe não paçava o lemite da dita Igreja de Vallega a
parte do Soão e Sul e o da Igreja de Cabanões para a parte do
Norte e a dita Cal da Agoa vay athe a fos de Aveyro que são sinco
legoas pouco mais ou menos o que o dito lemite da dita Igreja de
Vallega como dito he chegava somente a dita Ponte de Rabe Rabe e
dali não paçava nem a de Abanca nem a de Vedoido e do lemite da
Igreja de Cabanões do Cabido Autor hera por a dita Cal abaixo da
parte do Norte e chegava com lemite athe a Ermida de Nossa Senhora
das Aréas que esta junto da Fos de Aveyro da qual Ermida levava a
dita Igreja de Cabanões as ofertas», por estar dentro do seu
território. (5)
A igreja de Cabanões estava em
posse pacífica de colher o dízimo todo «de todas as Ilhas que se
sempre lavrarão da dita Cal do Puxadouro da parte do Norte athe a
dita Ermida e por ser seu lemite a freguezia o anno paçado do
trinta e nove o Ilhote do Cabo de Ovar pequeno e o IIhote de
Boellas que estava abaixo e do IIhote da Moraceira e o IIhote que
chamão Laranjo e Lizira do Cu do Porco estavão de dentro da dita
Cal do Puxadouro da parte do Norte athe a Cal e Ermidas das Aças
(6) no lemite e freguezia da dita Igreja de Cabanões os
quais IIhotes e Lizira
/ 22 /
do Cu do Porco se lavrarão e frutarão novamente o anno paçado de
quinhentos e trinta e nove» e onde os Réus foram colher os dízimos
do trigo e cevada, cerca de 700 alqueires, no valor de uns 20$000
reis.
Na sua contestação, diziam os Réus
ser Válega tão antiga, como Cabanões; as freguesias próximas de
Cabanões, como Beduido, Avanca, Cortegaça e Esmoriz, estendiam
seus limites até o mar em linha recta; os Ilhotes do Cabo de Ovar
Pequeno, Boelas, Morraceira, Laranjo e Esteiro de Porcos estavam
mais próximos de Válega e eram cultivados por fregueses desta e
nunca o Cabido deles recebeu dízimo; a Ermida de N. Senhora, a
Virgem, era sua sufragânea, «muito antiga e de muita romagem»;
Cabanões tinha Vigário residente e os Abades de Válega «sempre
estiverão auzentes da dita Igreja», com excepção da actual.
Replicou o Cabido «que as Igrejas
de Cortegaça e de Esmoris não demarcavam os limites de suas
Igrejas com a de Cabanões»; o limite desta sua freguesia passava
da Cale do Puxadouro para dentro até à Ermida e os ilhotes da
contenda estavam entre a Cale e a Ermida referidas; o Cabido
percebia pacificamente o dízimo e os ilhotes estavam mais
perpínquos de Cabanões! pertencia-lhe o dízimo do sal e do pão das
Ilhas de Garcia de Resende, Rebordosa, Carvalhosa e Cabo de Ovar
Pequeno; tinha posse de dizimar também nas ilhas de Ovar Grande,
Mós, Marinha Nova, Morraceira e Raposeira; se tais ilhas eram
fabricadas por fregueses de Válega, era tão somente por pagarem
certo foro ao Conde da Feira.
Treplicaram os Réus, dizendo que a
Marinha ou Lezíria de Esteira de Porcos, bem como outras (cujos
nomes não menciona) lhe pertenciam; as Igrejas em demanda nunca se
demarcaram nestas «Lezírias e terras da contenda com outras mais
que o Reo demanda aos Autores (Cabido) em outro libello apartado
que estavão contra o mar e herão e forão nos tempos passados
prayas e borraceiras que não tinhão nenhum proveito e por isso se
não procuravão de aproveitar nem demarcar entre si».
Por sua vez, os Réus moveram uma
acção de reconvenção contra o Autor, argumentando Válega partia,
em linha recta, para o mar: ia ter ao Puxadouro, que era limite e
daí «hia pela Marinha novamente rompida da parte dos herdeiros de
João dos Santos que se chamavão os muros de Sambujeiro e ao diante
para o mar hia huma Marinha de Sal que hera de Jorge Pires que
haveria sinco ou seis annos que hera edificada». Continua a
demarcação pelas ilhas (ou marinhas ou lezírias – parece tratar-se
de sinónimos) acima ditas, que o Cabido chama suas. Diz
pertencer-lhe «a leira do Cabo de Aguião que partia da banda do
Norte com a Marinha do Sal que fora de Pero Fernandes e jazia no
meyo antre a dita Marinha dos Escudeiros
(7) e do Cabo de
Aguião»; há quinze ou dezasseis anos, lavrando-se o Cabo de Aguião,
a Marinha Nova e outras lezírias, indo o Abade Brás Brandão, de
Válega, receber o dízimo, «os Reos (Cabido) com ajuda do Senhor
Conde da Feira (...) com bestas e armas e espingardas lhe
defendião o dito dizimo e de o dito tempo para cá levarão o pão
trigo e sevada que serião sinco mil alqueires que podião valer
mais de quatro centos mil reis».
Por sua parte, o Procurador do
Cabido, de novo, repetia as demarcações acima ditas. Dizia que, de
tempo imemorial, o seu Constituinte levava o dízimo das ilhas da
Cale do Puxadouro para a banda do Norte até à Ermida das Areias,
pois se encontravam dentro dos limites de Cabanões.
Reconhecendo não lhes assistir
justiça alguma, o Abade Gaspar de Resende e o Comendador Belchior
de Macedo assinaram em 20 de Julho de 1542 a desistência da
demanda, confessando que as ilhas da contenda pertenciam a
Cabanões. Foram condenados nas custas – 3$174,5 reis – e a
restituir ao Cabido a posse dos limites contidos no seu libelo
(8). Passados dias, em 25 do mesmo mês, presentes os
Capitulares e o Fidalgo Garcia de Resende, assinaram um contrato
de perdão mútuo nas custas de diversas contendas havidas entre o
Cabido e o Comendador de Válega. Perdoava também aquele as
novidades que este tivesse colhido nas ilhas e lezírias de Ovar,
desde que não ultrapassassem, no total, 160 alqueires de cevada e
20 de trigo. (9)
OVAR E BEDUÍDO
A ilha do Corvo, a da contenda,
somente em 1542 fora, pela vez primeira, semeada, produzindo trigo
e cevada. Como o Rendeiro de Beduído, João Fernandes, fosse lá
dizimar, e continuasse a fazê-lo até 1545, instaurou-lhe o Cabido
um processo junto do Vigário Geral do Porto, alegando que a ilha
pertencia a Ovar. Outro tanto reclamava Beduído, pela boca do seu
Comendador, Rui de Sousa, Cavaleiro da Casa Real, que procurou
inibi-lo, trazendo a causa ao Vigário Geral de Lisboa, Dr.
Cristóvão Teixeira, por ser Conservador da Ordem de Cristo, à qual
pertencia o direito de apresentação daquela Igreja contendora.
Dizia que Beduído partia com Avanca directamente até ao mar «por
marcos e bulhõens», dentro de cuja delimitação ficava a ilha do
Corvo, e lá tinha ido, de noite, dizimar, sem qualquer direito, o
Rendeiro do Cabido, Tomé Fernandes, levando 29 feixes de cevada.
Apelou, então, o dito Cabido para Braga, mas como o Núncio
Apostólico o inibiu, chamando a causa a si, recorreu à Santa Sé,
não tendo, porém, sido recebida a sua apelação pelo que veio
perante a Nunciatura
/ 23 / Apostólica com embargos. De
novo se sentiu na necessidade de apelar para a Santa Sé, que
nomeou João Gonçalves, Tesoureiro da Igreja de Cedofeita, como
Juiz Apostólico. Foi, então, absolvido o Rendeiro Tomé Fernandes e
revogados as sentenças dadas em favor do Comendador, que foi
condenado nas custas.
Daqui recorreu este à Santa Sé,
mas não tendo sido recebida a sua apelação, conseguiu que a causa
fosse julgada pelo Auditor da Nunciatura, Dr. João Pais, que o
condenou simplesmente nas custas, por os limites de Beduído não
irem além da Cale do Puxadouro, ao Contrário dos de Cabanões. De
novo, recorreu à Santa Sé, mas viu confirmada a sentença, tendo de
pagar as custas – 5$764 reis –, sob pena de excomunhão. A sentença
final foi emitida em 28 de Janeiro de 1549.
(10)
Simultaneamente com esta questão,
e pelo mesmo motivo, trazia outra o Cabido contra o Rendeiro de
Beduído, João Fernandes, no Tribunal de Ovar. Dizia o autor que
era sua a Igreja de Cabanões, anexa à Mesa Capitular,
pertencendo-lhe os dízimos; a ilha da contenda estava dentro dos
seus limites, pelo que lá colhia o dízimo do pão, do gado, que
vinha pastar da serra de Arouca, de Albergaria, do Monte do Muro,
e do junco, de que se faziam esteiras; o Réu, com gente armada,
colheu 60 alqueires de cevada, de dízimos, indevidamente.
Respondeu João Fernandes que a
ilha era de Beduído, pelo que o Rendeiro do Cabido o tinha
esbuIhado de 30 alqueires de cereal.
Replicou o Cabido que o Réu era
casado, e por isso não podia possuir dízimos da Igreja, nem como
feitor da de Beduído, que tinha Vigário e Comendador, pelo que não
lhe competia acção de força; Válega, Avanca e Beduído iam até à
Cale do Puxadouro, de forma que todas as ilhas e ilhotes que nela
estavam eram de Cabanões: o dízimo do pão do Corvo era do Cabido,
de que pagava, desde 1542, um quarto ao Conde da Feira, e bem
assim das terras sitas dentro da Cale, por serem de Cabanões. O
Réu apelou para Coimbra, sendo condenado nas custas –12$940 reis e
na restituição dos dízimos, em 6 de Julho de 1547.
(11)
Em 4 de Agosto de 1550, Fernão de
Évora, Notário Apostólico, foi notificar Rui de Sousa, que morava
na sua Quinta, na Caparica, a pagar as custas «e elle disse e deu
em resposta que elle tinha gançadas certas custas contra o dito
Cabido do Porto por outras sentenças que requereria que se
descompençassem humas por outras», pelo que protestava não
incorrer em excomunhão. Mas afinal o Cabido já lhe tinha pago
tudo, de forma que, em 23 de Agosto de 1550, o Provisor do Bispado
do Porto e executor da referida sentença eclesiástica de 28 de
Janeiro de 1549 determinou que ou pagaria nesse mesmo dia ou se
lhe passaria carta de excomunhão.
OVAR E ARADA
Se as pugnas entre Ovar e Beduído
foram esforçadas e dolorosas, as que, agora, vão seguir-se, entre
Ovar e Arada, são, além disso, numerosas e morosas. O Cabido vai
defrontar-se com um adversário temível, qual é o Comendador de
Riomeão, a quem pertence Arada e Maceda, da Ordem de Malta ou de
S. João do Hospital de Jerusalém. O magno pomo de discórdia será
este: Arada e Maceda terão praia de mar, ou não? Por outras
palavras, Ovar confrontará ao norte com Cortegaça, ou não?
Foi o Comendador Fr. Bernardo
Pereiro, Cavaleiro professo do Hábito de S. João do Hospital de
Jerusalém que atombou os bens pertencentes à Comenda de Riomeão.
Para tal, tinha-se feito representar o Cabido pelo Cónego João
Pereira, sobrinho daquele. Em 1630, o Dr. António de Campejo (ou
Sampaio?) Ribeiro, Juiz do Tombo da Comenda, julgou por boa e
confirmou, por sentença, a demarcação entre Arada e Ovar,
trazendo, com isso, grande prejuízo, tanto ao Cabido, como aos
seus Rendeiros. Na costa do mar ficava Ovar sem mais de légua e
meia de território e anualmente passava a ter, de menos 200$000
reis, de dízimas de pescado.
Eis o termo da demarcação:
«Aos vinte e três dias do mes de
Março do dito anno de mil e seis centos e trinta annos no lugar
dos moinhos de Maria Annes estando ahi o Lecenciado António de
Campejo Ribeiro Juis deste Tombo logo ahi prezente elle juis
apareceo o ouvidor do Conde da Feyra da Camera de Ovar, e Joam
Pereira Conego da Sé do Porto e Procurador do Cabido e por elles
fora aprezentado a elle Juis pera os louvados pera dizerem por
onde hera a demarcação da freguesia de Ovar com a de Arada que he
da Comenda o Pero Fernandes o velho e António João e Bastião João
todos do lugar de Loural e pelo dito Comendador foi apresentado
por sua parte a Pero Dias e a Pero Pires e António Domingues todos
de Arada aos quais elle Juis deu o juramento dos Santos Evangelhos
em que suas mãos puzerão e por vertude delle lhes mandou que bem e
verdadeiramente declarassem por onde hera o partilha da freguesia
de Ovar com a de Arada que da vea da agoa do Ribeyro da Arca
Pedrinha sahia a Madeyra (sic)
(12) de Sima dos moinhos de
Maria Annes e logo ahi mandou elle Juis de concentimento de todos
por hum marco que esta na linha do Monte fora da marca com a quina
ao Poente que vai dar ao Forno da Cal por onde vai a dita partilha
e do Forno da Cal do outeiro da vella agoa a Fonte do Carregal e
/ 24 /
dahi direito ao Mar onde se não meterão marcos por ser acoitada e
xarneca dos Condes da Feira e feita a dita demarcaçam por onde
devidião as ditas freguesias em respeito dos dizimos que em algum
tempo herão lavradas as ditas terras da dita xarneca e não a outro
algum a respeito somente se meteo o dito marco asima da dita
Madria de Maria Annes na dita Ilha atras declarada e não
prejudicar a xarneca e coitada dos ditos Condes da Feira por ser
como dito he sua de juro e asinou aqui elle Comendador e Juis e
louvados com mais o dito Conego João Pereira e testemunhas a todo
prezentes Manoel de Magalhães morador em Arada e Francisco Dias e
Manuel António de Arada e o Padre Frey Pero Rodrigues Sardinha
Vigario de Riomeão e Francisco Borges Cura de Arada que todos aqui
asinarão leu Lourenço Teyxeira de Quadros Escrivão do Tombo o
escrevi = Ribeyro = Bernardo Pereira = João Pereira = Lourenço
Borges = Pero Fernandes = António João = Bastião João = Manoel de
Magalhães = Pero Dias = Frey Pero Rodrigues Sardinha = António
Domingues = Francisco Dias = Manuel António».
(13)
*
* *
Por causa desta demarcação, vão,
agora, começar a surgir graves litígios, pois Arada e Maceda
passaram fraudulentamente a ter praia de mar e os dízimos do
pescados desviados para Comenda. Em 30 de Julho de 1646,
levantou-se a primeira contenda. O Cabido processou os pescadores
Manuel Fernandes, Diogo Fernandes, António André, Domingos
Martins, todos de Ovar, e Manuel de Magalhães, do Hábito de S.
João do Hospital de Jerusalém, de Arada: este último tinha
induzido e persuadido aqueles a pagarem-lhe o dízimo do pescado em
certo ponto da costa do mar (que não se nomeia, mas entende-se ser
a tal praia da Arada), e não o quiseram fazer ao Rendeiro do
Cabido.
Contestando a acção, disseram os
Réus «entre os mais bens de que esta de posse a comenda de Riomeam
que ha o Bauleio Bras Brandam e seus Rendeiros e ffeitores bem
asim he colherem e receberem ho dezemo do peixe que se arrasta no
termo e Ilemete de sua comenda isto de mais de hum dous tres sinco
e mais annos sem pessoa alguma lho prohjbir».
Disse Manuel de Magalhães foi como
feitor do Balio que recebeu o dízimo, por terem os ditos
pescadores arrastado suas redes e chinchorros nos limites da
Comenda.
Argumentaram somente pertencia ao
Cabido o dízimo do pescado, desde a Barra de Aveiro «em lhe chegar
a desmarcassam da freiguezia de Arada no que toqua hao mar e
pescandosse fora dos ditos Ilemites nam tem posse de receber nem
cobrar dezemo allgum no lemite da frejguezia de Arada e Maceda que
sam da comenda de Riomeam que he do dito Bras Brandam nem numqua
ho cobraram antes».
Mais alegaram, pretendendo o
Cabido, há sete ou oito anos, dizimar do pescado, no limite das
freguesias da Comenda, Manuel de Magalhães, como Procurador do
Balio, demandou os pescadores pelo dízimo e por acharem que o
deviam à Comenda, confessaram que o queriam pagar, pelo que o
feitor continuou na cobrança e posse que tinha. Se o Cabido
cobrava os dízimos no limite da Comenda, era à força e ameaçando
com censuras. E, sendo Rendeiro do Cabido João Dias Galego, de
Avanca, e querendo cobrar dos pescadores, nos limites agora em
questão, Manuel de Magalhães «ho fez munir por hum monetorio do
colleytor como conservador da comenda pella forssa que o dito
Rendeiro queria fazer a quall vendo que estava convenssido
dezestio e nam tratou de cobranssa allgum.».
Foram condenados os Réus, em 18 de
Abril de 1653, como se vê pela sentença seguinte:
«Consta que a Meza Capitular dos
autores pertencem os Dizimos dos fruitos novidades e pescados que
os moradores e freiguezes da sua Igreja d'Ovar cultivam e recolhem
ou pescam em que nam ha duvida e estando de posse de receberem por
si seus remdjros e feitores os ditos Dizimos de todo o peixe
arrastado e pescado pelos seus freiguezes da dita Igreja os Reos
hum como procurador do comendador de Riomeam os mais como dele
emduzidos lhe nam quezeram paguar os ditos dizimos perturbando aos
autores em a posse que tinham valemdosse o dito procurador do
comendador de Munitorios que fizeram mais notoria forssa e
violencia contra os autores o que elles nam podiam prevenir pellos
meos que se apontam por parte dos Reos que em qualquer tempo
negaram os dizimos aos autores contra elles cometeram forssa nem
os Reos ficam escuzos de a cometerem por dizerem que os Reos e os
mais moradores do Var freiguezes dos autores arrastam o pescado
nas terras da dita Comenda porque as praias e terras nam sam has
que dam o peixe de que se pagam os Dizimos se nam ho lear e
imdustria dos pescadores que estam sugeitos ha Igreja de que sam
freiguezes pera nela paguarem o Dizimo do que ganham comtra o
custume e posse que os autores justificam da sua parte nam podiam
os Reos sem consentimento dos ditos autores adquirir posse alguma
o que visto com o mais dos autos despocissam de direito julguo
terem os Reos huns e outros cometido forssa comtra os autores asim
o Procurador do Comendador Manoel de Magalhães como os mais contra
quem esta Cauza se jmtentou que procede via ordinaria ou por
Restituicam com sedula aos autores os quais mando que os Reos
Restetuam a dita sua posse com todas as
/ 25 /
perdas e damnos que na execussam se liquidarem e Custas dos autos.
Porto dezoito de Abril de seis centos e sincoenta e tres».
(14)
Como se vê, a sentença não dirimia
o problema dos limites territoriais, diz simplesmente devem pagar
os dizimos a Ovar os seus pescadores, «porque as praias e terras
nam sam has que dam o peixe de que se pagam os Dizimos se nam ho
Mar e imdustria dos pescadores que estam sujeitos na Igreja de que
sam freiguezes».
Na forma da sentença, foi Manuel
de Magalhães notificado para dar posse ao Cabido e em 27 de Maio,
nas notas do Tabelião da Feira, Domingos Homem Soares, lhe largou
e deu a dita posse.
(15)
Outro tanto fizeram Manuel
Fernandes Lé (ou Olé), Diogo Fernandes e António José Paulo, nas
notas de António Cardoso Sanches, de Ovar, restituindo a «antigua
pose que tem (o Cabido) de receber por seus Rendeiros, e efitores
os dizimos de toda a sorte do mar».
(16)
Em 4 de Junho, Manuel de
Magalhães, que com os outros réus, tinha sido citado pelo Tribunal
da Relação, nomeou um procurador para a liquidação da sentença
havida «aserqua dos disimos do peixe que os pescadores dOvar
pesquão na freguesia dArada».
(17) É caso para dizer:
vencido mas não convencido!...
*
* *
Simultâneo com este litígio,
correu outro contra o mesmo Manuel de Magalhães, que terminou no
Tribunal da Suplicação, em 1657, por causa dos dízimos da Ribeira
do Sobral e outras terras.
Disse o Cabido no seu libelo estar
de posse dos dízimos de Ovar, desde tempo imemorial e os moradores
do lugar de Sobral lhe pertenciam, bem como a Ribeira do Sobral,
no limite da freguesia; há quatro anos, o Réu tinha-se intrometido
violentamente a colher os dízimos das terras desta Ribeira, bem
como da terra chamada Senhorinha, sita no limite da freguesia, de
que os Rendeiros do Cabido estavam em posse pacífica e imemorial;
nunca o Réu, os Rendeiros da Comenda de Riomeão, cobraram os
dízimos do terço da Ribeira do SobraI, nem de Senhorinha, tanto
antes, como depois de feito o Tombo da Comenda, senão há quatro
anos; sendo sempre os Rendeiros a colher os dízimos, nunca
souberam do esbulho, senão em Setembro de 1643, avisados por João
Dias e Baltasar de Resende, que traziam a dita renda por dois
anos, a começar no S. João do dito ano de 1643.
Na sua contestação, disse o Réu
que o Comendador de Rossas, Frossos e Riomeão, Fr. Bernardo
Pereira, fizera Tombo da Comenda, demarcando as suas terras, sendo
julgado por sentença, e na demarcação fizera-se o Cabido
representar por seu Mestre-Escola, o Cónego João Pereira, em 23 de
Março de 1630. Portanto as partes litigantes estiveram presentes
na demarcação da Ribeira do Sobral.
Quando foi Comendador Fr. Bernardo
Pereira, os seus Rendeiros cobraram os dízimos das terras, sitas
dentro da demarcação de Arada, «como herão as que confrontavão com
a Senhoria (sic) e que para a banda de Arada direito athe a praya
do mar das quais se lhe pagara sempre o dito dezimo em quanto se
lavrarão porque muitas dellas estavão ia hoje aruinadas».
A terra de Senhorinha fora sempre
dizimada pelo Cabido e há dois ou três anos tinha o Réu dizimado
aí «huma pontinha piquena que importaria hum alqueire de dízimo»,
por julgarem os lavradores que estava dentro da demarcação de
Arada.
No S. Miguel de 1645, tinha o
Cabido dizimado toda a terra da Senhorinha, incluindo a «pontinha
piquena», pelo que não podia intentar contra o Réu uma acção de
força.
«A Ribeira do Sobral fora tambem
demarcada no dito tombo e do Rio que por ella vay se fizera também
menção e asim e as terras que estavão de huma e outra parte
pagarão dizimos a ambas as freguesias e se os lavradores pagarão
algumas ao Reo que não tocava sempre a Comenda estava prestes para
restituir na forma de suas ofertas».
Não era verdade ter o Réu dizimado
a Ribeira toda, porque o Cabido tinha recebido mais de três partes
e se a Comenda recebera o restante fora porque aos lavradores
parecia serem dela.
Além das terras velhas da Ribeira
do Sobral, havia muitas novas que se foram rompendo e ajuntando,
alargando os lavradores os valos para dentro da freguesia de
Arada, e das ditas terras sempre a Comenda colhera os dízimos,
depois que se lavraram, sem o Cabido tem posse nelas.
Usara o Autor de dolo, quando
dissera no libelo estava de posse de toda a Senhorinha e da
Ribeira do Sobral, pois as terras novas eram de Arada, ainda que
fossem lavradas por lavrador de Ovar.
Quando os dízimos da Comenda eram
colhidos, não se diziam quais as terras que os pagavam, mas
mandavam os colhedores procedessem os lavradores, segundo a sua
consciência.
Os autos foram julgados no Porto,
em 2 de Junho de 1647, pelo Corregedor do Cível, Dr. Francisco
Monteiro de Leiva, ficando o Réu absolvido: «Provasse que havendo
devidas sobre a demarcação entre o Cabido da Sé desta Cidade e o
Comendador de Riomeão da Ordem de Malta se fes medição e
demarcação da forma do dito tombo pelo qual se mostra que estas
partes
/ 26 / devide hum Regato que comessa
da lica (sic) pedrinha e vem para a vista de hum Marco que esta
defronte do moinho de Maria Annes o qual está direito pela veya da
agoa ao forno da cal que está no mesmo Regato e dahi por diante
para o mar a outeiro de vella agoa por entre a praya e o regato
direito ao dito mar o que tudo visto e o mais dos autos conthendo
na dita visturia e como se mostra a divizão com clareza absolvo ao
Reo do pedido pelos Autores e paguem ex cauza as custas dos
autos».
Apelou, depois, o Cabido para o
Tribunal da Relação do Porto, mas em 2 de Maio de 1655 viu
confirmada a sentença e condenado nas custas. Recorreu, então, ao
Tribunal da Suplicação de Lisboa, que, em 17 de Junho de 1657, deu
a sentença seguinte:
«Aggravados são os Aggravantes
pelos Dezembargadores dos Aggravos da Relação e Coza do Porto em
confirmarem a Sentença do Corregedor do Civel em que absolve ao
Reo da aucção de força e esbulho pelos Autores intentada revogando
sua Sentença vistos os autos pelos quais se mostra que os autores
e a sua Meza Capitular por si e seus Rendeyros estavão em posse de
muitos annos de cobrar os dizimos da Ribeyra do Sobral e terra da
Senhorinha dos freguezes da Igreja de Ovar de que o Reo Manoel de
Magalhães se intrometera porcoza e violentamente a cobrar os ditos
dizimos como Rendeyro da Comenda de Rio meão e freguezia de Arada
o que o Reo não nega porem dependesse com que a dita Ribeyra do
Sobral e terra da Senhorinha são pertenças da dita Comenda e estão
dentro de sua demarcação feita pelo Juis do tombo sendo ouvido o
Procurador da Mitra que deu Sentença em confirmação da dita
demarcação porem como a dita Sentença he dada por Juis leigo nunca
por ella podia paçar em cauza julgado o direito dizimal que he
meramente espiritual e a decizão delle pertence ao Juizo
Eccleziastico e sòmente podia dezimir a demarcação dentro da qual
se pode pagar os dizimos a Igreja de diferente território havendo
posse bastante de os cobrar como os Autores mostram e estavão
largamente e pelos autos como nelles se tractava somente do
processorio para que este Juizo he competente particularmente
sendo intentada a aucção dentro do anno e dia o qual anno he util
e não corre senão do tempo da ciencia do esbulhado por ser asim
conforme o direito e como se não mostra que os Autores tivessem
noticia deste esbulho antes do dito anno e a ignorancia se prezume
quando se não prova o contrario sempre se deve declarar que esta
acção foi intentada em tempo legitimo particularmente implorando
os Autores o benefício da restituição o que visto e o mais dos
autos despozição de direito julgo haver o Reo e seu Assistente
cometido força e esbulho no recolhimento dos dizimos das ditas
terras de que se tracta e mando sejão restituidos com perdas e
damnos e lhe rezervo seu direito da propriedade para juizo
competente e pague o Reo os autos. Lisboa dezaseis de Junho de
seis centos e sincoenta e sete = Pinheiro = Lemos = Privado».
(18)
Pinheiro e Privado são os
Desembargadores, Drs. José Pinheiro e Jorge Privado de Faria.
Uma vez mais, ganhou o Cabido a
contenda, todavia, também nesta, nada decidiu o Tribunal quanto
aos limites territoriais. Sentenciou que não aproveitava ao Réu
ter sido o Tombo da Comenda julgado por Juiz, pois tendo sido este
leigo, faltava-lhe competência para decidir do direito dizimal.
Quanto ao direito de propriedade, podia o Réu recorrer a Juízo
competente.
*
* *
Neste mesmo ano de 1657, teve o
Cabido no Tribunal da Relação do Porto uma questão contra D. Fr.
Bernardo de Noronha, Cavaleiro professo da Ordem de Malta e
Comendador de Riomeão, a quem, depois, sucedeu na Comenda e no
pleito Fr. Lopo Pereira Lima
(19) É o candente problema dos
limites. Apelava da demarcação sentenciada pelo Juiz do Tombo em
1630, não obstante terem decorrido tantos anos.
Razões do Cabido:
«Prouaria que a antiga e
uerdadeira demarcação entre os freguezes de Ovar e Arada e Maceda
fora sempre pelo alto da Madria da agoa da Arca Pedrinha e dahi ao
alto do Monte Sobreiro e deste ao de Fonte de Canas e deste ao
Marco Redondo que se não achaua e dezião ser furtado e deste ao
outro que estaua quebrado e deitado de fronte do outro do
Morangueiro e dahi pela xarneca e costa do mar que estestaua no
lemite e Facho de Cortegaça donde hia correndo por toda a costa do
mar para o sul athe a Barra de Aueyro aonde chegaua o lemite da
dita freguezia de Ovar».
Dizia que esta demarcação sempre
se observara athé à feitura do Tombo de 1630, e Arada e Maceda,
tanto antes, como muitos anos após esta data, nunca tiveram Costa
de Mar, nem pescaria que aí se arrastava, nem dizimavam do peixe,
pelo contrário este direito era cobrado pelos Rendeiros do Cabido,
desde Cortegaça até à Barra de Aveiro.
«Prouaria que as freguezias de
Ovar, e Cortegaça estauão muito chegadas do mar e sempre na Praya
o dizimo da pescaria delle partirão huma com a outra e não com a
Comenda de Riomeão e suas anexas, Arada, e Maceda que estavão
muito mais metidas pella terra dentro e nunca de tempo antigo
levarão dizimo algum do peixe da Praya do mar».
Alegava que, segundo a antiga e
verdadeira demarcação, as terras da Ribeira do Sobral, Carregal e
Senhorinha
/ 27 / estavam dentro dos limites de
Ovar, pelo que pagavam ao Conde da Feira o Oitavo, como quaisquer
terras de Ovar, e as da Comenda não estavam oneradas com tal.
«Provaria que tudo quanto hera
destricto e jurisdição do Concelho de Ovar tudo hera tambem
destricto da freguezia de Ovar e ainda hera mais dilatada que o
Concelho porque se extendia ao lugar de GuiIhonai que hera do
Concelho de Pereira e costa do mar que contestava em Cortegassa de
que sempre se pagarão os dizimas a dita freguezia de Ovar athe o
tempo que o dito Tombo se fizera e inda muitos annos depois».
Mais alegava que pela demarcação
sentenciada em 1630 se tinha tirado a Ovar «mais de huma legoa e
meya pela Costa do mar e mais de tres legoas de terra em cerco e
tudo isto se dera as anexas da dita Comenda sem de antes se terem
couza alguma na dita Costa e terras», o que tinha acarretado a
Ovar um prejuízo em dizimos de 100$000 reis.
Naquela demarcação dissera o
Comendador Fr. Bernardo Pereira «fazia o dito Tombo pera os
Requerimentos e milhoramentos e não para prejudicar as demarcações
antigas e dizimos» de Ovar, no que houve «dolo simulação e fraude.
Confirmava-se isto mesmo, pelo facto do Cabido não ser inquietado
nos dizimos, durante uns oito ou dez anos, após 1630, mas somente
quando Manuel de Magalhães se intrometera a dizimar do pescado. O
mesmo dolo houve quando foram enganados os louvados e Procurador
do Cabido, dizendo-lhes, que a nova demarcação não prejudicava os
dízimos e direitos de Ovar, antes beneficiava os seus moradores,
pois os isentava de pagar o Oitavo ao Condado da Feira e os
encargos do Concelho.
Concorreu nesta partilha
fraudulenta o escrivão do Tombo, Lourenço Teixeira, parente do
Comendador. Era também seu sobrinho o Cónego João Pereira, que por
ele se deixou enganar...
Contestando o libelo do Autor,
apresentava longa defesa do Comendador e Réu:
«Provaria que a mais antiga e
verdadeira confrontação de que todas as mais demarcações nascerão
entre a freguezia de Ovar e Arada que herão as que ambas partião e
circumvezinhavão e que se conservavão a dita demarcação de Arca
Pedrinha Marco que demarcava com a freguezia do Souto e com a de
Travanca e com a de Ovar e com a de Arada pela veya de agoa da
Ribeyra da Arca Pedrinha sahia a Madria de Sina dos moinhos de
Maria Annes e dahi pela veya de agoa ao Forno da Cal e dahi ao
outeyro da Vella Agoa e Souto do Carregal e dahi direito ao mar
esta hera a verdadeira antiga demarcação entre as freguezias de
Ovar e Arada que se acordava nem ouvera outra mais que esta entre
as ditas freguezias como constava da mesma demarcação e sentença
dada sobre ella».
Mais afirmava que outra demarcação
nunca houve antes ou depois do Tombo de 1630, e se o Rendeiro do
Cabido dizimou alguma vez do pescado no limite da Comenda, foi
porque os Comendadores andavam ausentes, em defesa da fé cristã,
pelo que não podia prescrever seu direito, sobretudo estando o
Tombo julgado por sentença.
«Provaria que a freguezia de
Cortegaça e Maceda estavão mistos e juntos que tinhão terras que
partião a vara huns com outros e estavão em sua altura e Costa do
mar e Arada da mesma qualidade em rezão que da igreja de Arada não
havia caza athe o mar e algumas mais terras da mesma freguezia e
Comenda e seria meya legoa da dita freguezia ao mar e pela parte
do nascente ficava a freguezia de Arada e nunca a freguezia de
Cortegaça com Ovar partio pam nem peixe nem couza alguma por se
meter entre elles as freguesias Maceda e Arada partindo Maceda com
Cortegaça e Arada com Ovar».
Disse também se não havia marco
até ao mar, era por haver muitas coutadas e por ter o Conde da
Feira pedido a Fr. Bernardo Pereira os não metesse, com receio de
um dia outros Comendadores impedirem a caça; não obstante, se tais
montes e terras um dia fossem lavradas, pagariam dizimo a Arada,
pois lhes pertenciam.
«Provaria que que (sic) nunca
ouvera Marcos que se achassem a que se podesse dar fe que podessem
fazer demarcaçam com Arada e Ovar mais que o da Arca Pedrinha pela
veya da agoa ao Forno da Cal e dahi ao Outeyro de vella agoa e
Fonte do carregal e dahi direito ao mar e não havia outra
demarcação nem na houve entre a freguezia de Ovar e Arada Comenda
de Riomeão e o Marco de que o Reverendo Cabido se queria ajudar
para a sua menos verdadeira demarcação em que esteve de fronte do
outeiro do morangueiro demarcava com hum Marco que estava junto a
Sernacheira e dahi a outro que estava entre Alegonches de Jogal e
dahi outro que estava a Fontinha do valle que hia para a Fontinha
do valle e de Pereira de Bouças e dahi a Pedra de Armar a qual
demarcação demarcava entre Maceda e Arada anexas da Comenda de
Riomeão como se julgara na demarcação por Sentença que hera a
apelada ha vinte e sete annos pois fora demarcada e confirmada a
dita demarcção no anno de seis centos e trinta».
Alegava, ainda, os lavradores que
lavravam as terras do Carregal ora da Comenda, se pagavam o Oitavo
ao Conde da Feira, não era por tal deverem, mas para evitarem
litígios com «pessoas poderozas». Nem se metiam em demandas os
Rendeiros, pois não iam defender à sua custa o que não lhes
pertencia, e os Comendadores andavam ausentes. E se pagavam,
/ 28
/ seria porque o Ouvidor da Feira, Lopo Soares de
Albergaria, usou de força com eles. Mas as terras da Arca Pedrinha
até ao Forno da Cal não pagavao tal ração, apenas o dízimo à
Comenda.
Mais. Vindo o Vigário Geral do
Porto em 1657 a Ovar arrendar os dízimos desta igreja, pediram-lhe
os Rendeiros mandasse pôr balizas, para evitar dúvidas com Arada e
saberem o que podiam cobrar. Então o Vigário Geral mandou que o
local fosse visto pelos louvados – foram António Rodrigues Galo e
Amador Jorge, ambos de Ovar – e pelos Rendeiros do Cabido e
Comenda. Alinharam por um pinheiro no outeiro da Senhorinha e
outro na costa do mar, por onde se vê ser boa a antiga demarcação
da Comenda, que dava a Arada cerca de uma légua de costa marítima.
E a dita demarcação era tão
verdadeira que fora feita perante os louvados do Cabido, Câmaras
de Ovar e Feira, Conde, Comendador e Frades da Feira, Senhores da
igreja de Travanca, Abades de Espargo, S. João de Ver, assistiram
e a houveram por boa. Portanto não houve dolo e malícia da
Comenda, antes poderia presumir-se tal coisa da parte do Cabido.
Nem este estava de posse das terras da contenda, nem dos dízimos
dos cinchorros, pois dantes os não havia, nem tais terrenos se
lavravam por serem montes e paus.
Impunha-se uma vistoria ao local
em questão, cujo acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
pronunciado em 31 de Agosto de 1661, só três anos após, em 28 de
Abril, teve execução. Foi feita pelo Desembargador, Dr. Duarte
Ribeiro de Macedo, com o escrivão Baptista de Sá, e juntamente os
Advogados das partes, Drs. Gonçalo Ribeiro de Sousa e Cunha, pelo
Cabido, e Manuel Nunes Franco, pela Comenda.
Começou-se no Monte de Alpedrinha,
– onde «achara (o Desembargador) que as ditas pedras da Arca
Pedrinha hera demarcação das freguezias do Couto e Arada e a que
estava declarada no Tombo viera elle Desembargador vendo pello
mesmo Monte a vista do valle da Madria e Arca pedrinha aonde
nascia hum Ribeyro que tinha entre o Monte e Arca Pedrinha e o
Monte Sobreiro athe o lugar donde estava o moinho de Maria Annes e
achara que ambos os ditos Montes herão agoas vertentes para o dito
Ribeyro e valle e viera ao meyo que estava na fralda do Monte
Sobreiro que hera da Contenda e hera uma pedra grande que tinha
huma Cruz da Ordem de S. João com a hera de mil seis centos e
vinte e nove e estava posto na fralda do dito Monte agoas
vertentes da freguezia de Arada para o Rybeiro e com huma testa a
quina para o Nascente demorando o citio dos moinhos de Maria Annes
e a outra quina a face demarcando ao forno da Cal das terras da
dita Ribeyra que se lavrarão e asim as que ficavão para Arada
pagavão dizimas permicias (...) e logo dahi fora elle juis ao
Forno da Cal que se desse dahi a andar ao Outeiro da vella agoa e
Fonte digo que estava sobre o Carregal e dahi direito ao mar com
que se ouvera por vista a demarcação declarada no Tombo da Comendo
e por quanto o artigo de nova razão primeiro do Reverendo Cabido
continha que a demarcação hera pelo alto da Madria da agoa de Arca
Pedrinha e dahi ao monte Sobreiro (...) e do alto do Monte
Sobreiro ao de Fonte de Caves e deste ao Marco Redondo que se nam
achava e dezião ser furtado e deste ao outro que estava quebrada e
deitado de fronte do outeiro de Morangueiro que ficava na Area
sobre o mar e o dito Dezembargador por lhe ficar mais perto donde
acabara a visturia da Comenda asima dita atravessara a xarneca
junto a costa do mar que hera perto de huma legoa ao citio
defronte do dito outeiro de Morangueiro aonde achara huma pedra
terria e lançada no chão que tinha quatro palmos e meio em
comprido e tres de largo e que junta della não havia outros nem
havia mais no cítio por onde andarão e dali fora elle juis para a
xarneca que tudo hera chão e Monte ao citio da Fonte das Cabes por
se não achar no sitio do Marco Redondo de que se tractava as
Cauzas concedidas as appelantes já dahi foi elles juis ao Monte
Sobreiro donde se descobria o Monte da Arca pedrinha e citio delle
e vira elle Dezembargador que esta demarcação hera o meyo da
xarneca e ficava direita de Fonte Pedrinha mas muito desviado do
Marco do Tombo da contenda de que se apelara e logo pelo
Procurador do Reverendo Cabido o licenciado Gonçalo Ribeiro de
Souza foi dito que protestava como protestaria e tinha no
princípio daquella visturia della não prejudicar a seus
Constituintes porquanto elle se achava certo sempre de quem o
informasse nem processara os autos e logo pelo Procurador do
Comendador foi dito que protestava que a chamada demarcação em que
se fundava o Reverendo Cabido não prejudicar em couza alguma a
demarcação da dita Comenda e que requeria em Juizo da Cauza
mandarem dar vista as partes pera apontarem de direito e o
Dezembargador lhe mandou tomar seus protestos e que se fizessem os
autos concluzos (...)».
Requereu, em seguida, o Procurador
do Cabido, dizendo que no auto da vistoria faltara declarar «que
no citio do Forno da Cal e agoa vella por onde se alleava que era
a demarcação da Comenda não havia Marco nem sinal algum de que
fosse demarcação nem donde estava metido o Marco sobre que corria
letigio athe o mar e que o Juis da villa de Ovar acompanhara ao
dito Dezembargador por toda a demarcação do Reverendo Cabido
levando sempre a sua vara alçada por ser isto notaria por onde
estava a dita demarcação (...)».
Então o Réu, Comendador Fr. Lopo
Pereira de Lima, dizendo que há dois dias tivera conhecimento da
sentença
/ 29 / da demarcação de 1630, pediu
fosse apensa aos autos e se lhe desse vista.
O Tribunal da Relação do Porto
pronunciou, em 27 de Janeiro de 1665, a sentença seguinte,
favorável ao Cabido:
«Acordão os do Dezembargo &ª. Não
deferem aos embargos visto o treslado da Cauza digo visto o estado
da Cauza e forma da Sentença dada nos autos apenços, e deferindo
sem embargo delles apellação interposta, não foi bem julgado pelos
Juis do Tombo em haver por boa e confirmar por Sentença a
demarcação feita no anno de seis centos e trinta entre a Igreja de
Arada pertencente a Comendo de Riomeão e a Igreja de Ovar unida im
(sic) perpetuum a Meza Capitular declarando começar no Ribeyro de
Alpedrinha e hir pela veya da agoa a Madria do Moinho de Maria
Annes onde meterão Marco e dahi ao Forno da Cal continuando ao
Outeiro da Vella Agoa e Fonte do Carregal direito ao mar dizendo
que não metião mais Marcos nas ditas partes por ser coutada
xarneca de juro dos Condes da Feyra declarando outro sim que
dividião e demarcavão as ditas freguezias a respeito dos dizimos
se em algum tempo se labrassem as terras da dita xarneca e não a
outro e que sómente a esse fim metião o dito Marco anulando e
revogando a dita demarcação e sendo vistos os autos provas dadas
sobre os artigos de nova rezão recebidos Sentenças e mais
documentos juntos e como se mostra ser o direito dos dizimos e
questão sobre a propriedade delles meramente espiritual cujo
conhecimento compete privativamente ao Juizo Eccleziastico sem os
louvados nem o Juis do Tombo se poderem intrometer nella nem
fazerem a declaração referida sendo seculares e incompetentes e no
contrario procederão nula mente como se julgou na Sentença da
Suplicação dada sobre o processo em favor do Cabido e visto outro
sim fazerem a dita demarcação e porem o Marco sem procederem
Justificação nem se juntarem documentos alguns por onde legitima
mente constasse da posse e direito que estas partes tivessem como
hera necessário e posto que pelas testemunhas do apellado se prove
ser a demarcação sobre dita e antiga e verdadeira e a que se
observou entre as ditas freguezias comtudo pelas dos apellantes se
prova o contrario e ser a mais antiga e esta a que o Cabido
articula que comessa no alto do Ribeyro da Arca Pedrinha indo pelo
alto do Monte Sobreiro ao Marco Redondo e dahi as mais partes
declaradas pelo Cabido athe o Facho de Cortegaça e outro sim se
mostra pelas mesmas testemunhas e pelas Sentenças deste Sennado e
da Suplicação estar a Igreja de Ovar em posse de cobrar todos os
dizimos das terras da Ribeyra do Sobral de ambos as partes e do
Carregal e Senhorinha e o dizimo do peixe que se toma no mar do
Facho de Cortegaça athe a Barra de Aveyro na qual posse está de
tempo muito antigo asim antes da demarcação apellada como depois
della feita athe que os Rendeyros Feitores e Procuradores do
Comendador Violenta mente os comessaram a pedir e cobrar sobre que
o Cabido juntou várias forças em que teve por si as Sentenças
referidas pelas quais tem acquerida a posse dos ditos dizimos sem
os Comendadores terem alguma sobre que possam fundar seu direito.
Mostrasse mais estarem as ditas terras e Praya do mar demarcados
dentro do termo e território do Concelho de Ovar onde as lustiças
exercitão sua lurisdiçam em tudo o que pertence a seus officios e
ficar a freguezia de Arada fora da dita lurisdição e estarem outro
sim as ditas terras e Praya dentro da xarneca que os mesmos
Louvados declarão no termo ser de juro do Conde da Feyra das quais
se paga ao dito Conde o direito do Oitavo como das mais terras da
dita freguezia de Ovar sendo que os moradores de Arada e Maceda o
não pagão das suas terras e ficão sendo de diversa natureza e
qualidade de que tudo rezulta prova bastante para se anular e
revogar a dita demarcação como não legita mente feita em prejuizo
da posse do Cabido que he a que principal mente se concidera nas
ditas demarcações julgão e declarão por nulla e não legitima mente
feita a dita demarcação e mandão que por ella se não faça obra nem
pela Sentença em confirmação della dada e que o Marco posto se
levante e seja o Cabido conservado na posse em que está athe se
fazer outra demarcação sobre que as partes requererão pela via que
milhor lhes parecer e condemno ao apellado nas custas delles de
ambas as instancias. Porto vinte e sete de laneyro de seis centos
e sesenta e sinco = Souza = Ribeyro».
Daqui se infere que o Juiz do
Tombo não julgou bem e se considera nula a demarcação de 1630.
Ovar e Cortegaça são limítrofes na praia pois Arada e Maceda não
têm acesso ao mar. No Tribunal da Primeira Instância tinha perdido
a questão o Cabido. No da Relação ganhou, sendo o Réu condenado
nas custas de ambas as Instâncias. Não se conformando, recorreu o
Comendador ao Tribunal da Suplicação, que proferiu o acórdão
seguinte:
«Não he agravado o agravante pelos
Dezembargadores dos Agravos da Relação do Porto Cumprasse Sua
Sentença por seus fundamentos e o mais dos autos e o agravante
pague as custas delles Lisboa quatro de Novembro de seis centos e
sesenta e seis – Lampreya – Tem tenção do Doutor Francisco da Crus
Freire». (20)
Lampreya é o Dezembargador Dr.
João Lampreya de Vargas. Tinha terminado mais um renhido pleito
com a vitória do Cabido, mas o futuro reservar-lhe-ia outros.
/ 30 /
*
* *
Decorridos quinze anos, em 1681,
ainda não tinha o Comendador de Riomeão cumprido as Sentenças,
acabadas de transcrever. Tendo conseguido o Cabido uma Provisão
real, em que se nomeava o Tribunal da relação do Porto, para fazer
a execução, e estando vaga a Comenda, foi o Administrador das
Comendas, Francisco de Sousa de Meneses, citado para as audiências
de 16 e 30 de Maio, sendo julgado à rebelia, por não ter
comparecido. O Juiz, Dr. José Nogueira Galvão, Cavaleiro professo
da Ordem de Cristo, «mandou que hu escriuão fosse ao sítio e lugar
do marquo, e que este fosse leuantado a custa do Comendador»,
(21) mas tal não chegou a executar-se, senão em 1698. Então em
6 de Setembro, «no monte que esta iunto as quintas nouas», termo
de Ovar, compareceram o tabelião, Gabriel Pereira, de Ovar, os
Procuradores do Cabido, Dr. Luís de Magalhães. Arcediago de
Oliveira, Dr. Manuel de Sousa Félix, e Domingos Rodrigues da
Silva, de Esgueira, como Procurador do Comendador de Riomeão, Fr.
Gabriel de Castilho, Cavaleiro professo da Ordem de Malta, e todos
nomearam seus louvados, para que «deuidicem e dicessem onde era o
alto do Ribeyro de arca pedrinha e o alto do Monte sobreiro e o
Marco Redondo que fiquoa nas areas e tudo na forma de sentenssa
que alcanssou o dito Reuerendo Cabydo da Çee do Porto contra o
dito Comendador».
Protestaram os Procuradores das
partes que «em todo o tempo que quoalquer de sseus constetujntes
se achassem prejudicados na dita deuizão lhe não prejudicaria Gsta
louuação».
Ajuramentados aos Santos
Evangelhos, «diçerão os ditos louuados que o Ribejro de Arca
Pedrinha era o que estaua per sima das calas de sobrado de Antonio
Fernandes da Villa de Ovar e o alto do Monte Sobreyro era logo o
que estaua junto do outeyro das possas das lagoas de Arada que
fiqua pera o sul deste em direytura ao Marco Redondo».
A louvação foi aceite pelas
partes, porém o Cabido requereu fosse levantado o marco que ainda
estava caído. desde 1666, e se conservasse judicialmente na posse,
segundo a demarcação antiga, reconhecida pela sentença da anterior
contenda. Em 6 de Setembro de 1698, foi ordenada a posse e em 9 o
Juiz de Ovar pronunciou a sentença:
«Julgo a detremenação e declaração
dos louuados por minha sentenssa defenitiva e pera sua ualidade
lhe emtreponho minha authoridade e decreto judicial e paguem estas
partes as custas de permejo em que os condeno Uilla de Ouar noue
de Setembro de mil e seis sentos e nouenta e outo annos Bernardo
da Sylva».
Ao ser empossado o Cabido na sua
«antiga e uerdadeira demarcação», já ninguém sabia onde ficava o
Marco Redondo. E nem admira. pois já em 1665 se dizia não existir
no sítio, parecendo ter sido furtado, quanto mais agora em 1698.
passados tantos anos...
Eis o auto de posse:
Saibão quoantos este publico
instrumento de posse dada por uertude da Sentença junta uirem que
no anno do nassimento de nosso Senhor Jezu Christo de mil e seis
sentos e nouenta e outo annos aos onze dias do mes de Setembro do
dito anno no outeiro de Arca pedrinha que he do termo desta Uilla
de Ouar que he Uilla terra e iurisdissão do Conde da Feira Dom
Fernando Forias Pereira Pimentel de Menezes e Silva Conde e Senhor
da dita Uilla e de outras e no alto do Ribeiro de Arca pedrinha
onde eu tabelião fui uindo ahi pellos louuados conthendos na
sentença junta meterão hum marco de pedra de gram com hum letreiro
aberto que dis Cabido e Ouar na direitura deste meterão outro
marco da mesma pedra de gram e com o mesmo letrejo no alto do
monte Sobreiro e destes marcos e das terras que fiquão pera a
banda do sul que pertencem a esta freguezia meti de posse ao
Reverendo Arcediago Luís de Magalhais como procurador bastante do
Reuerendo Cabido; e pellos ditos louuados não saberem onde era ou
estiuesse o marco redondo o Reverendo Arcediago e Antonio de Soa
rendeiro do Comendador pautoarão do alto do monte Sobreiro ao do
morangueiro que fica além da charnequa do Conde de Fejra e se
mandarão meter dous marcos emqouanto se não sabia onde hera o
marco redondo e por não estar prezente.
Domingos Rodrigues da Silua
procurador do dito Comendador pera ambos de dous desidirem por
louuados onde estiuera o dito marco Redondo e que emcoanto se não
declarasse onde estiuera o dito marco se não acabaua acabaua (sic)
a dita demarcassão e dos ditos dous marcos de Arca pedrinha e do
de monte Sobreiro e das terras que ficão de dentro da dita
demarcação pera esta freguezia tomou posse o dito Reverendo
Arcedeago em prezenssa do dito António de Soa rendeiro do dito
Comendador que a não jmpedio nem outra pessoa alguma e na dita
posse o ouve aqui... por emuestido e encorporado nela de que tudo
fis este auto que asinei o dito Arcediago e de que forão
testemunhas Domingos Gomes Campos e Antonio Jorge de Carualho
rendeiro dos dezemos desta freguezia que todos aqui asinarão eu
Gabriel Pereira tabelião que escreui e me asinej de meu publiquo
sinal que tal he Luis de Magalhaes Domingos Gomes Campos Antonio
Jorge de Carualho Em fee de uerdade Gabriel Pereira».
(22)
*
* *
/ 31 /
Novamente a Comenda de
Riomeão atombou os seus bens, pois, em 2 de Maio de 1702, era
escrivão do Tombo Manuel Fernandes da Maia e Juiz do mesmo, o Dr.
António Dias Alves, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo e Provedor
de Esgueira.
Tendo Domingos Rodrigues da Silva,
Procurador do Tombo da Comenda, o tal que não esteve presente (com
boa ou má fé?) à identificação do Marco Redondo, como atrás se viu,
requerido ao sobredito Juiz mandasse fazer a demarcação entre Arada
e Ovar, o Cabido da Sé, citado, passou em 30 de Abril procuração
para o Cónego Luís de Sousa de Carvalho o representar. Diz este não
ter dúvidas em fazer-se a dita demarcação, «na forma en que já tinha
feito e levantado Marquos pella parte do Reverendo Cabido, na forma
de huma Sentenssa que contra a dita Comenda e seus Comendadores
tiveram na Soplicasam de Lisboa, que se deu a Execusam em nove de
Setembro de Mil seis centos noventa e outo», tendo-se, então,
levantado «hum Marquo no monte de Arqua Pedrinha que cordeia direito
ao outro que se meteo no alto do monte Sobreiro junto ao outeiro das
alagoas de Arada do qual cordeia dereito a huma pedra que esta narea
do mar que serve de Marquo a que se chama o marcuo Redondo».
O Procurador do Tombo, de harmonia
com a Sentença da Suplicação e execução da mesma, requereu ao Juiz
«mandasse meter Marquos por esta Comenda junto aos que estavão
postos pello dito Reverendo Cabido» e protestou «de en todo o tempo
se requerer sobre o dereito que a dita Comenda tem, e lhe pertenser
nos Dizimos da Sardinha e mais pescado da Costa do Mar, quanto
abrange por aquella parte a dita freiguezia de Arada, e a da Maçeda,
tudo pertensas desta Comenda como antigamente cobrava de que o
Reverendo Cabido se achava de posse». É sempre a Comenda vencida,
mas não convencida, a sonhar com uma frente de mar para Arada e
Maceda, por causa dos dízimos do pescado!...
Mais disse o procurador do Tombo
que, entre o marco do Monte Sobreiro e o Marco Redondo, tinha o
Cabido levantado mais dois extrajudicialmente, pelo que pedia visse
o Juiz se estavam todos na mesma direcção e, não estando, os
mudasse.
Segundo o auto desta demarcação de 2
de Maio de 1702, foi posto um marco de granito com a cruz de Malta
«no alto da Arqua pedrinha junto a Estrada que vai de Espargo pera
Cabanonz e pera Ovar», encostado ao marco do Cabido. Outro idêntico
levantou a Comenda, no alto do Monte Sobreiro, também encostado ao
do Cabido. Outro, metido extrajudicialmente, se via no pinhal de
Maria Gonçalves, junto à Corga forca e, «por se achar que estava
algum tanto metido pera os bens desta Comenda e propreedades dei
Ia», foi, de comum acordo, mudado mais para o sul, ficando encostado
a ele o da Comenda. Outro extrajudicial do Cabido tinha sido posto
na Charneca. O da Comenda foi levantado «junto a Estrada da
Charnequa que uaj de Arada pera Ouar de fronte do Monte do olho
Marinho», na direcção do do Cabido, «mais pera baixo pegado a
Estrada». A demarcação terminou «na area do Mar junto a huma pedra
branca que ahj esta a que chamam Marquo Redondo», segundo a Sentença
da Suplicação, sua execução e louvação. Aqui ficou posto o último
marco da Comenda.
Pelo Procurador do Cabido foi também
dito respondia à pretensão da Comenda sobre os dízimos do pescado
«com a sentensa de que fiqua feito mensam, e con outras que o
Reuerendo Cabido tinha alcansado sobre forssas que deram e sobre a
Propriedade».
Pelo outro Procurador «foi dito que
sobre as mesmas sentenssas he que tinha feito o Proptesto de que em
nenhum tempo seriam em prejuizo desta Comenda e seus Comendadores e
de requererem o direito que tiuessem contra as ditas sentenssas».
(23)
Finalmente a última contenda entre
Ovar e Arada!
Tinham sido mudados uns marcos
divisórios, com prejuízo do Cabido, pelo que, em Janeiro de 1739, se
demandou a Comenda. Era Procurador do Autor o Licenciado Francisco
Pinto Brandão e o escrivão Bernardo Pereira Campos, da Vila da
Feira.
O Cabido requereu fosse citado o
Comendador de Riomeão, ou seu tutor e pai, D. Sancho Manuel de
Vilhena. A uma carta do Deão, respondeu dava ordem aos seus
Procuradores para amigavelmente se reporem os marcos, mas tanto
estes, como o Cura de Arada e outros
(24) procuraram enredar
e nada se resolveu.
Em carta para o Cónego Sebastião de
Prada Lobo, dizia, em 28 de Novembro de 1744, o Advogado do Cabido:
«D. Sancho deyxou nomeado tres procuradores para a cistirem á tal
louvação e já com a premeditação de que hum o não pudece faser sem
os outros; hum destes hera o p.e Manuel Alves dos Santos Cura de
Maceda e o p.e Jacinto Cura de Arada outro; estes mancebos comem os
lombos aos seus freguezes e a Papa de D. Sancho e porisso a hum e
outros querem faser servissos, e estam acerrimamente teymosos em que
se não há de faser a reposição dos Marcos na forma da sentença de V.
Mercês do anno de 702».
(25)
A sentença a que alude esta carta é
a da última demarcação.
Em 1745, ainda corria o pleito. Era,
então, Comendador de Roças e Riomeão D. Fr. António Manuel de
Vilhena, que vivia em Malta, mas aqui tinha como Procurador, o
Comendador Fr. Manuel Távora e Noronha.
Parece que a esta contenda se refere
também outro manuscrito,
(26) com documentação de 1751 a
1767: os
/ 32 /
marcos mudados estavam no Monte Sobreiro e Corga Enforcada. E
porque da mudança só beneficiava o Cabido, foi julgado pelo Tribunal
da Vila da Feira, em 20 de Fevereiro de 1767, como tendo sido ele
quem praticou o delito e condenado nas custas. Ignoro se tal
sentença aquietou os ânimos, ou se foi, como noutras vezes, degrau
para subir mais alto, pedindo justiça.
No final de tanto contender,
torna-se claro que, de longa data, Arada e Maceda pretenderam
alargar suas fronteiras até ao Oceano, mas sem direito. Se ignoramos
como se pôs termo a esta última e demorada questão, sabemos, por
outro lado, que em 1765 Cortegaça e Ovar se demarcaram como
limítrofes, o que não aconteceria, se as freguesias referidas da
Comenda avançassem até ao mar. Os mesmos direitos do Cabido foram
mantidos, quando este processou o Vigário de Mira em 1780, como
adiante se verá, provando-se, então, que a freguesia de Ovar ia do
marco que a dividia com Cortegaça, até à barra ou foz velho.
OVAR E CORTEGAÇA
Corriam autos no tribunal
eclesiástico do Porto entre os Abades de Esmoriz e Cortegaça, por
causa dos dízimos do pescado da praia, pelo que, em 22 de Outubro de
1664, o Vigário Geral, Dr. João Rodrigues de Araújo, querendo fazer
uma vistoria do local em questão, deslocou-se a Cortegaça. Foi aqui
«nas casas de Domingos Martinz estalagadeiro»
(27) que se
encontrou com o Arcediago de Oliveira, João de Araújo Costa,
Procurador do Cabido, e Miguel Rodrigues, Abade de Cortegaça, que
disseram desejar fazer a demarcação da praia do mar, para evitar,
assim, quaisquer dúvidas entre os Rendeiros dos dízimos de Ovar e
Cortegaça. Mandou-lhes, então, ver o local com os louvados,
concordando, depois, todos amigavelmente que a divisão «héra no
areal chamado as cabarneiras que hé abaixo do outeiro donde esteve o
facho de Cortegaça algum tempo e depois, o mandou tirar a Condeça da
Feira, e tornara por no outeiro antigo donde antes estava, e que ahy
no ditto areal das cabarneiras, que estava no baixo do ditto outeiro
deçendo delle pera a parte de Ovar, ahy se devia pôr a ditta devizam,
e marco pera os dizimos de peixe da praya do mar somente». O termo
de composição foi julgado por Sentença do Vigário Geral.
(28)
*
* *
Dividia as duas freguesias um marco
«na Costa do Mar em o citio do Morangueiro» e não havia «outra
divizão alguma na dita Costa». Ora em 3 de Setembro de 1696, Manuel
Rodrigues, Manuel António e suas mulheres, de Cortegaça, bem como o
respectivo Rendeiro, Manuel João e mulher, de Silvalde, foram-se ao
marco divisório, derrubaram-no, mudaram-no e meteram balizas,
tomando, deste modo, «grande parte da Costa» de Ovar, no que
prejudicavam António Pais Chaves, Rendeiro de Ovar.
A questão foi julgada no Juízo de
Correcção do Cível da Relação do Porto, em 28 de Junho de 1697, pelo
Desembargador Corregedor Manuel Ferreira, que condenou o Rendeiro de
Cortegaça em tirar as balizas, restituir os dízimos indevidos,
reparar o marco e pagar as custas.
A reposição do marco fez-se
judicialmente em 28 de Agosto do mesmo ano, de que lavrou o
respectivo auto o tabelião Gabriel Pereira, estando o Cabido
representado pelos seus Procuradores, Cónegos Domingos Gonçalves
Prada e António de Sousa de Magalhães, Arcediago da Régua. Foi
metido um marco de granito «na dita Costa no sitio do morengejro»,
confrontando com outro também granítico, «que fica polia parte do
nassente defronte do pinhejro chamado do Alcajde adonde se devide
frejguezias de Cortegassa e Maceda».
O Abade de Cortegaça esteve presente
com o seu Rendeiro à reposição do marco e não contradisse a posse do
Cabido. (29)
*
* *
Por se encontrar caído no sítio das
Caverneiras em que estava, quiseram amigavelmente o Cabido
representado pelo Dr. Francisco Pinto Brandão e pelo Solicitador
José Inácio de Brito e o Abade de Cortegaça, João Pinto Barbosa,
levantar o marco da praia, posto em 1664, e colocá-lo mais para
nascente trinta e oito varas de cinco palmos «pera lhe nam chigar a
Mare cordiando com outros marcos que estam asima que devidem a dita
Freguezia de Cortegaça com a de Maçeda pella terra por nam ter a
dita Freguezia de Maçeda costa de mar». A procuração do Cabido é de
5 de Dezembro de 1764. A reposição do mesmo marco de 1664, com esta
data gravada, foi executada em 5 de Setembro de 1765. Do lado do
norte, lê-se «Couto» e do Sul «Ovar».
A sentença da demarcação, proferida
pelo Juiz Ordinário do Cível no Couto de Cortegaça, em 5 de Setembro
de 1765, é esta:
«Julgo o termo retro de repozisam do
marco por minha sentença defenetiva e para major vallidade sua lhe
emtreponho minha autoridade e decreto indicial que mando se cumpra
como nele se contem e paguem os suplicantes as custas dos Autos de
premejo e se
/ 33 / paçe sentença a quem a pedir
Couto de Cortegaça e de Setembro sinco de mil e setesentos e sesenta
e sinco annos» Asesor Manoel de Oliveira Baptista = Domingos Alves
de Magalhaies». (30)
Nestes autos se diz que «esta
Freguezia de Cortegaça só mente parte com a freguezia de Ovar pella
Costa do Mar».
OVAR E MIRA
Em 1 de Outubro de 1779,
encontrava-se, «no sítio da Barra termo desta villa» de Ovar, para
demarcar a costa, o Desembargador António de Lousada Silveira, dos
Agravos da Casa da Suplicação, com o escrivão de Ovar, António
Brandão Coelho de Melo. Foram postos três marcos altos de pedra,
junto à Barra, com a inscrição «Ovar – 1779», voltada ao norte e
«Mira – 1779», voltada ao sul. Protestou, então, o Procurador do
Cabido, Dr. António José Pereira Zagalo, que por esta demarcação
ficava fora a Barra e o rio, de que a Mesa Capitular recebia os
dízimos do pescado. Deste modo, Ovar ficava sem duas léguas de Costa
marítima. O Desembargador não mandou escrever tal protesto, «por que
elle não vinha demarcar a dita freguesia nem descedir sobre o dizimo
da Igreja so sim demarcar e devedir as terra (sic) dos dois
conselhos de Mira e Ovar».
(31)
Foi só então, quando desta
delimitação, que o Cabido soube que os seus direitos estavam a ser
espoliados pelo Vigário de Mira e pelo Rendeiro do pescado da Rainha
Mãe, e isto desde há anos.
Em Maio de 1775, começou o Vigário
de Mira, «que por nome não perca», a colher violentamente o dízimo
do pescado que saía da costa do mar de Ovar, impedindo o Rendeiro do
Cabido com pistolas, espingardas, bacamartes, fisgas e outras armas
contundentes, metendo-o na cadeia e tirando-lhe o pescado. O Vigário
andou nesta posse abusiva até Outubro de 1779. É de 11 de Abril de
1780 uma inquirição judicial de oito testemunhas, que disseram
pertenciam à Mesa Capitular pacificamente os dízimos de Ovar, e a
sua demarcação, pelo poente, ia do marco que a dividia com Cortegaça
até à barra ou foz velha. Uma das testemunhas, p. ex., António de
Oliveira, de Ovar, «disse sabia pelo ver e conhesser que o destrito
desta Villa ocupa pela parte do mar, e poente desde o marco que
devide esta freguezia da de Cortegaça the o sitio da barra, ou fos
velha, e nesta posse sempre se conservou com os seus rendeiros, e de
perceber os Dizimos de todo o pescado do mar praya que porta no
destrito desta freguezia, e tão bem do que não aporta sendo pescado
pelos nasionais desta Villa».
Depuseram ainda que Manoel de
Oliveira Camossa, Rendeiro do pescado da Rainha Mãe, espoliando o
Cabido em Maio de 1777, e daí até ao presente, tem obrigado a ir
aportar a Aveiro o dízimo do Cabido, fazendo-lhe pagar tributo,
contra o imemorial costume, em que estava de o transportar para onde
quisesse, livre de pagar direitos. Assim se perdia o pescado, por se
deteriorar, e a renda dos dízimos baixava, por causa destes
prejuízos. (32)
Em 22 de Maio de 1780, o Cabido
processou Manuel de Oliveira Camoça, que foi julgado em Aveiro. Em
19 de Fevereiro de 1781, confessou o Réu a sua falta de direito,
prometendo não mais tornar a coagir o pescado do Autor a vir aportar
a esta ou aquela praça. A sentença tem a mesma data de 19 de
Fevereiro de 1781 e é contrária ao Réu.
(33)
*
* *
Já é ocasião de pôr ponto final
nesta longa teia de demandas que noutros tempos foi urdida,
perturbando a paz da boa vizinhança dos povos, em defesa dos limites
territoriais de Ovar e direitos do Cabido.
Os dízimos eram fonte de múltiplas
questiúnculas – por vezes graves, como vimos – mas, abolidos pelo
Governo Liberal de D. Pedro, nem por isso deixaram de aparecer novas
desinteligências territoriais, para cuja solução importa conhecer o
passado.
________________________________
NOTAS:
(1)
– Arq. do Distrito do Porto – Cartório do Cabido, n.º 751, fls. 3 e
segs.; fls. 9 e segs.
(2)
– Cabido, 753, fls. 671 v. e segs.
(3)
– Cabido, 820, fls. 60 e segs.; 10, fls. 19 v. -20.
(4)
– Cabido, 1549.
(5)
– Esta «bela Ermida» foi, depois, surripiada pelas gentes de Aveiro,
cujo pleno direito fundavam na simples tradição. Cf. J. F. Teixeira
de Pinto. – «Mem. e datas para a hist. da Vila de Ovar», 1959, pgs.
64.
(6)
– Leia-se «Ermida das Areias».
(7)
– A Marinha dos Escudeiros e a do Cabo de Aguião não são salinas,
mas marinhas salgadas ou de pão. Cfr. Cab., 777, fls. 38 e segs.
(8)
– Cabido, 777, fls. 66 e segs.
(9)
– Cabido, 778, fls. 267 v. e segs.
(10)
– Cabido, 777, fls. 145 e segs.
(11)
– Cabido, idem, fls. 194 e segs.
(12)
– Leia-se «Madria».
(13)
– Cam., 777. fls. 107-108 v.
(14)
– Cab., 764, fls. 302 e segs.
(15)
– Ibid., fls. 313.
(16)
– Cab. Ibid., fls. 315-316.
(17)
– Ibid., fls. 317 e 319.
(18)
– Cab., 777, fls. 213-226 v.
(19)
– Faleceu em 31 de Março de 1681 e tem seu túmulo no Mosteiro de
Leça do Balio. Cfr. Pe. Arnaldo Duarte – «O Mosteiro de Leça do
Balio» – Porto, 1940, pgs. 23.
(20)
– Cabo 777, fls. 98 e segs.; e 758, fls. 267-269.
(21)
– Cab., 758, fls. 152-155 v.
(22)
– Cab., ibid., fls. 142-150.
(23)
– Cab., ibid., fls. 270-274 v.
(24)
– «Cura de Arada, e outros semelhantes, que vivem com os viloens» –
Cab., 749, fls. 55 v.
(25)
– Cab., Ibid., fls. 55 e segs.
(26)
– Cab., 1620.
(27)
– Leia-se «estalajadeiro».
(28)
– Cab., 758, fls. 187-189 v.
(29)
– Cab., ibid., fls. 133-139 v.
(30)
– Cab., ibid., fls. 173-186 v.
(31)
– Cab., 776, fls. 362 e segs.
(32)
– Cab., 775, fls. 390 e segs.
(33)
– Cab., 786, fls. 55 e segs. |