|
Dr. José Pereira de Carvalho e Silva |
Desde a «folha de couve», enfezada e
estéril, nada-morta que sucumbiu ao primeiro vagido, até ao mais
famoso incisivo semanário nacional, toda a sorte de gazetas, em
importância e duração, na diversidade de características e
objectivos, se poderia apontar, entre cerca de uma centena que têm
saído de prelos aveirenses.
Do escrevinhador incipiente e
canhestro com a ambição de se narcisar, derretidamente, com a
própria prosa de letra de forma, e do político desejoso de alargar a
sua influência ou de alimentar o fogo da afeição dos seus parciais,
até ao homem de letras com pergaminhos na cultura e na arte de
escrever e ao panfletário mais contundente e intrépido, toda a gama
de valores se toparia nas inumeráveis colunas dessa avultada soma de
jornais. |
A verrina e o ditirambo; a exegese
doutrinária e o chasqueio, o másculo estilo aziumado da polémica
/ 62 /
sem quartel nem contemplações pessoais e os poéticos arroubos; a
aprofundado estudo e o passatempo ameno; a crónica mundana e o caso
da rua; o Iouvor, se não a Iouvaminha, e a reclamação ou mesmo o
protesto veemente; os problemas de interesse vital e as ninharias da
mais discipienda frivolidade, de tudo se depararia, folheando, aqui
ou além, algum amarelecido exemplar avulso. As colecções da quase
totalidade dos jornais aveirenses, essas, é hoje impossível
consultá-las pois, por incúria dos próprios editares ou por
menosprezo daqueles que poderiam conservá-las, já de longa data não
existem.
Por todas essas gazetas, partidárias
ou incolores, no episódio ou no estável, no mero registo
incondimentado ou no exprimir dos magnos anseios Iocais, nas
afinadas Ioas ou nas dissonâncias recriminativas, perpassaria, com
uma ou outra nata de mais larga âmbito, a história da cidade – ou
mais ainda do que a história, a própria vida de Aveiro, nas acções e
reacções, imediatas, nas iniciativas com êxito e fecundidade e nos
malogros, e nos empreendimentos que elas próprias sugeriram e
estimularam ou impediram.
E em cada uma, no pró ou no contra,
no acomodatício e melífluo ámen ou no desacordo vigoroso e
rebarbativo, acima dos dissentimentos de pessoas e critérios e das
paixões que dividem e desvirtuam, se encontraria um denominador
comum – o fervor bairrista, o constante propósito de exalçar belezas
e glórias e de valorizar a terra e a sua gente.
Não curaremos agora, aliás, de
manifestar preferências, de apontar virtudes ou defeitos, de catar a
falha de mais acentuada feição doutrinal acima ou abaixo da gazeta
preferentemente informativa, de propugnar por um qualquer processo
de fazer jornalismo. Cada jornal desempenhou a sua função, exerceu a
sua obra de aliciamento, respondeu aos gostos e necessidades de um
certo número de leitores. Dependendo de factores diversíssimos,
intrínsecos e externos, integrado no ambiente e na época, viveu
sujeito às conjunturas do momento em que se publicou e às
capacidades e temperamentos dos seus mentores e responsáveis.
Voltando-nos para o passado,
principalmente, e abstraindo das próprias predilecções,
mencionaremos um punhado de jornais, com diversas características e
de diversas facções. E, nesse escorço sucinto e forçosamente
lacunar, procuraremos que, embora sem rigores de medida, haja um
relativa releva correspondente ao papel de méritos, na alusão aos
nomes aqui reunidos de aveirenses – de nascimento ou de estreita
ligação à cidade – que no papel impresso, onde por propensão de
espírito, ou por lhe estimarem elevadamente o poder de penetração
nas massas ledoras, encontraram o veículo apropriado à difusão das
suas ideias e iniciativas de interesse público, à aplicação da sua
actividade e dos seus talentos, e onde conquistaram projecção e
notoriedade. Algumas dessas figuras lograram mais vasto renome, por
vezes a maior parcela da sua aura, nas lides da imprensa, mas, com
suas penas acuradas retribuindo com liberalidade, deram larga
contrapartida para o prestígio e valorização de uma forma de
actividade intelectual nem sempre prezada no seu justo valor.
Começaremos, – embora não nos
importe, neste ensejo, a exacta ordenação cronológica – precisamente
pelo princípio.
E por uma publicação que servirá
para atestar, como as autoridades – a quem a Imprensa, em frequentes
ocasiões perturba, inquieta e molesta e merece restrições e coações,
quando desgarra do coro de louvores ou apenas bemoliza as hossanas –
se servem do jornal como meio propagandístico das mezinhas
aviventadoras da «salus publica» que preconizam e ministram segundo
a dieta prescrita para o momento, com o tempero adequado,
estimulador ou sedativo.
A primeira folha impressa de
carácter informativo editada em Aveiro teve carácter eminentemente
político. Chamou-se Boletim de Notícias e foi distribuída
pela primeira vez no dia 11 de Outubro de 1846. Apresentava-se, em
todo o rigor do termo, com a feição de um boletim. Uma finalidade
determinada e exclusiva a originara e a ela directamente visava sem
qualquer digressão.
Era composto e impresso na
tipografia de que ao tempo dispunha o Governo Civil. Nesta oficina,
montada por necessidade de obviar às dificuldades da época, saíam
impressos usados naquele departamento distrital, relatórios e
regulamentos. Ao que presumimos deve ter desaparecido com o incêndio
ocorrido na madrugada de 20 de Julho de 1864, nas dependências
ocupadas por aquela repartição pública no antigo Paço Episcopal.
Era seu redactor o Dr. José Pereira
de Carvalho e Silva, secretário-geral nesse convulso período da
política nacional.
O Dr. José Pereira – que, assim,
abreviadamente era conhecido na região – viera de Eixo, onde nascera
em 29 de Março de 1818, e, desde a sua formatura em Direito, em
1844, exercia as funções de juiz-ordinário do julgado da sua terra
natal em Maio, quando eclodira o movimento popular contra o
cabralismo. Foi então designado para fazer parte da Junta Provisória
que se constituíra na capital do distrito e à qual pertenciam também
José Henriques Ferreira, Alberto Ferreira Pinto Basto e Francisco
Joaquim de Castro Corte-Real.
Esta Junta nomeou-o para o cargo
referido, em 21 do mesmo mês de Maio. Veio a ser confirmado
/ 63 /
no lugar em 7 de Julho seguinte pelo Governo Palmela.
No exercício dessas funções se
encontrava, quando o Governador Civil de então, Custódio Rebelo de
Carvalho, por iniciativa própria ou por sugestão de algum
correligionário de mais férvido entusiasmo e maior apego à sua
parcialidade política, decidiu publicar o boletim.
A folha – como na altura se lhe
chamaria e apropriadamente hoje poderíamos denominar, já que nunca
terá excedido uma espaçada página – viera para aquietar os ânimos
febricitantes, para insuflar confiança nos prosélitos menos
confiados e minar as esperanças dos adversários pertinazes. Dava as
notícias acalentadoras e estampava as proclamações e exortações do
primeiro magistrado do distrito.
Os cabralistas haviam dado um golpe
de Estado e reassumido o poder. As autoridades locais não acataram o
governo recém-formado e opunham-se-lhe tenazmente. Convinha manter o
clima moral para uma resistência eficaz.
O Boletim de Notícias, órgão
oficial, surgia como uma espécie de «placard» volante, sucinto,
expedito na expressão e na divulgação das novas favoráveis. O número
inicial não só traz exarada a data, mas, tão viva é a preocupação de
demonstrar presteza, faz referência à hora da edição – como hoje
sucede com as tiragens sucessivas das grandes rotativas em dias de
acontecimento palpitante. Logo abaixo do título se lia: «Aveiro, 11
horas da manhã do dia 11 de Outubro».
E tão flagrante se revela esse
propósito de celeridade informativa, que o texto se enceta por estes
precisos termos: «Por notícias agora mesmo chegadas do Porto,
sabe-se que tendo desembarcado nesta cidade o duque da Terceira com
todo o seu estado maior, imediatamente se armou o povo, prendendo e
guardando no castelo da Foz o mesmo duque, conde de Santa Maria,
visconde de Campanhã e mais oficiais que o acompanhavam, sendo
necessários grandes esforços da parte de alguns beneméritos cidadãos
para salvar-lhes as vidas. Na mesma cidade acha-se estabelecido um
governo provisório para sustentação dos direitos do povo»...
A local, depois de aludir à marcha
dos acontecimentos em Coimbra, anunciava que no distrito de Aveiro
os «seus habitantes iam tomar as armas» para o que considerava a
«justa defensão» da causa popular.
Às novidades seguia-se a
proclamação: «Habitantes do distrito de Aveiro! – O pronunciamento
nacional verificado no mês de Maio último está ameaçado. Como
autoridade nomeada depois desse pronunciamento, e com ele
identificado, é meu dever sustentá-lo. Para o conseguir empregarei
os meus esforços e conto com a cooperação das autoridades e
habitantes deste distrito. A todos recomendo ordem e respeito às
leis. – Aveiro, 11 de Outubro de 1846. – O Governador Civil Custódio
Rebello de Carvalho».
Seriam idênticos os números
subsequentes. Em 12, relatava a reacção aveirense ao golpe de estado
cabralista, mencionando uma reunião de pessoas influentes da cidade
que, de acordo com o chefe do distrito «decidiram sustentar a todo o
custo o movimento nacional, e tomaram as medidas que as
circunstâncias exigiam». Dá conta das manifestações da véspera – «a
guarda nacional acompanhada de um imenso concurso de povo,
dirigiu-se ao governo civil, e seguiram as diferentes ruas da
cidade, repetindo os vivas que eram recebidos e respondidos com o
mais decidido entusiasmo». Anuncia as demonstrações de «inteira
aderência ao pronunciamento da capital do distrito», vindas de
Ílhavo, Oliveira de Azeméis e Estarreja e exulta na convicta
esperança de «em poucos dias estar armado todo o distrito (...) com
tantas ou mais forças das que já se prontificaram para salvar o
país».
As forças populares não lograriam,
todavia, os seus intentos. O seu órgão aveirense, ao fim de umas
breves duas semanas, extinguia-se. E o seu redactor, conjuntamente
com o Governador, conhecida a notícia de que o marechal Saldanha
havia entrado em Coimbra, seguiu para o Porto.
/ 64/
Por sugestão do ministro do Reino da
Junta Governativa da capital do Norte, António Luís de Seabra –
futuro Visconde de Seabra – o Dr. José Pereira de Carvalho e Silva
foi convidado para delegado de uma comarca nortenha. Declinou o
convite, e, após a convenção de Gramido, voltou para a sua terra
natal, a exercer a advocacia.
Verdadeiramente, todavia, o primeiro
jornal aveirense seria O Campeão do Vouga.
Um autodidacta que, degrau a degrau,
ascenderia de simples regedor de freguesia de Avanca às honras do
pariato, e foi um dos mais fecundos propulsores do desenvolvimento
de Aveiro – sua terra natal –, um rapaz resoluto que nenhum
obstáculo fazia esmorecer, cônscio dos seus recursos e com a
legítima ambição de os patentear, lançou e corporizou a ideia.
Chamava-se Manuel Firmino de Almeida Maia e contava, na altura,
apenas 27 anos. Descendia de uma família apegada aos credos
tradicionalistas.
D. Miguel, certo dia, com olímpica e
enfastiada indiferença, rejeitou-lhe a ingénua homenagem de uma
criança que o supusera sensível a um gesto de deslumbrada veneração,
e criou um adversário.
Manuel Firmino de Almeida Maia
Enfileira nas hostes liberais,
conspira e bate-se contra o cabralismo e, quando definitivamente, já
adulto, se estabelece em Aveiro, um propósito o domina e absorve – a
fundação de um jornal que seja o porta-voz dos seus ideais e o
defensor dos interesses da sua terra.
De um prelo tosco, ele próprio
manufacturando, por vezes as tintas com pó de carvão, já que o
capital junto e as magras receitas impunham a mais severa economia,
com uma perseverança inquebrantável, após laboriosos preparativos,
fez sair o primeiro número de O Campeão do Vouga, a 14 de
Fevereiro de 1852, e consegue que ele subsista e progrida.
Não brilhará, no estrito significado
do termo, como jornalista, pois era antes um político e um homem de
acção. Escreveu, decerto, em cerca de meio século, centenas de
colunas do seu órgão – porque o Campeão haveria de tornar-se,
especialmente, o seu órgão pessoal em todas as fases da sua carreira
de ininterrupta ascensão – mas o seu papel predominante haveria de
ser o de inspirador e guia e, mais tarde, o de patrono acatado.
A primeira adesão que conquistou foi
a de um jovem estudante de Direito, precoce e talentoso, talhado
para altos destinos na vida pública – José Luciano de Castro
Corte-Real (1834-1914). Já em Coimbra o jornalismo exercera as suas
seduções sobre o esperançoso moço e, aos dezassete anos, a sua
colaboração não destoava entre as dos articulistas experimentados do
Observador – que depois adoptaria o nome de Conimbricense.
José Luciano – cuja naturalidade
aveirense, já que nasceu a pouco mais de meia légua da cidade, se
esquece demasiadamente – dispôs-se a cooperar no arrojado
empreendimento do seu conterrâneo, com alvoroçado entusiasmo
juvenil. Graças à sua intervenção se remove o mais dificultoso dos
problemas, a falta da soma estritamente indispensável. Nos momentos
de angustiosa dificuldade não raro surge um rasgo de feminina
bondade, uma mãe extremosa que vibra, se alanceia e se identifica
com as aspirações de um filho estremecido, e lhes dá o alento e a
viabilidade de efectivação. A mãe de José Luciano, porventura sem o
conhecimento do austero morgado de Oliveirinha, seu marido, empresta
um cordão de ouro que fica como penhor das quinze moedas com que o
jornal se funda.
Um periódico para ter aceitação e
merecer a confiança do público precisa, porém, que o encabeçasse um
nome já com créditos firmados tanto pelas provas literárias como
pelo passado político. Um surgiu com os requisitos requeridos, o Dr.
José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (1820-1901) – progenitor
do que viria a ser o autor de «Os Maias», e, ao tempo, atravessava a
sua fase de «quase peixe da ria», que radicou na sua reminiscência a
invocada qualificação de «filho de Aveiro», provinda da ascendência
paterna.
/ 66 /
Sofrera, por fidelidade aos
princípios perfilhados, esse íntegro magistrado de trinta e dois
anos, as represálias cabralistas, e, nos tempos de Coimbra, como
poeta e prosador, granjeara lisonjeira reputação.
Na «Crónica Literária da Nova
Academia Dramática», publicara a balada «D. Elvira e D. Ramiro», e
outros poemas românticos, e, precedendo de alguns anos os romances
históricos de Alexandre Herculano, provavelmente influenciado por
Walter Scott, a novela «O Mosteiro de Santa Maria de Tamarães».
Também «O Ramalhete» inseriu algumas das suas produções e
publicaria, além do poema «Castelo do Lago» (1841), em 1860, um
folheto intitulado «Os Moedeiros Falsos e o Juiz José Maria
d'Almeida Teixeira de Queiroz» na qual insere uma pundonorosa e
indignada carta a D. Pedro V sobre o acórdão que despronunciara o
Conde de Bolhão, a quem, apesar de todas as pressões e de tratar-se
de um titular, «rico, poderoso, coberto de condecorações, com
relações de amizade e família», não hesitara em incriminar pelo
escandaloso caso.
Foi-lhe destinado o posto de
redactor-principal que, aliás, ocuparia apenas três meses. Não
conhecemos outra fase de actividade jornalística ao Dr. Teixeira de
Queirós, nem, em boa verdade, deveríamos incluir o íntegro
magistrado, que também ganharia notoriedade por haver relutado na
pronúncia de Camilo pelo crime de adultério, entre as figuras
aveirenses que se distinguiram na imprensa periódica.
|
Dr. José Maria de Almeida Teixeira
de Queirós |
Efectivamente nasceu no Rio de
Janeiro. Como natural de Aveiro dá-o a falsa certidão – forjada
compreensivelmente para ocorrer a uma exigência inadiável – com que
instruiu o processo de matrícula na Universidade de Coimbra. Mas na
cidade, na casa da rua Larga, ou na residência assolarengada do pai,
esse «infame, perverso e façanhoso» Joaquim José de Queirós (chefe
da revolução de 16 de Maio de 1828 e a quem a sentença que o
condenou à morte, pois fora «o mais atrevido e ousado conspirador,
cabeça e principal das tramas e maquinações que usaram e prepararam
o horroroso atentado», qualificava com aqueles precisos termos)
passou a maior parte da infância e da juventude. |
A próxima reintegração na carreira
judicial leva-o a abandonar Aveiro, e, assim, a cessar as suas
funções no novo periódico. Despede-se numa breve carta, datada de 17
de Abril. Não pode continuar na redacção, pois entende «que não se
pode redigir bem um jornal a não ser na própria terra em que se
publica». Só esse imperioso motivo o obriga a deixar a redacção do
jornal, e apenas esse: «Os meus princípios políticos não mudaram.
Posso dizer afoitamente que não mudarão; porque são filhos de uma
convicção profunda
/ 67 / da experiência que tenho dos
homens e das cousas. Apesar dos meus poucos anos, politicamente,
tenho vivido muito».
Voltará a Aveiro alguns meses mais
tarde, mas já então como delegado do Procurador Régio, cargo pouco
consentâneo com as lides jornalísticas efectivas.
Sucedeu-lhe o jovem José Luciano de
Castro, na direcção política do bi-semanário, em que firmava artigos
desde o número inicial. Despedir-se-á, todavia, do jornal passados
dois meses, e, no «Observador», onde se iniciara, revelaria os
motivos que «o levaram a dar um passo tão inesperado». Muitas vezes
sujeitavam-lhe os artigos «à censura de pessoas que estavam bem
longe de o poder fazer» e essa posição desgostava-o e
desagradava-lhe. Essa situação, que qualificou de degradante, não se
coadunava com a sua sinceridade de moço ainda não contaminado pelas
transigências da política: «Se alguma vez a minha consciência
oprimida soltava um brado enérgico, esse brado era logo abafado». E,
desalentado com essa desilusão, soltava um desabafo: «Via-me
obrigado a quebrar a pena de escritor severo e independente, e a
mergulhá-la na urna da lisonja».
O lugar foi preenchido por José
Maria de Sousa Lobo, antigo governador civil do distrito, e, além de
publicar numerosos artigos e poesia na imprensa da época, traduziu
várias obras, mencionadamente, de Vítor Hugo e de Alexandre Dumas.
|
Nesse primeiro período, O Campeão
do Vouga contava com a simpatia e o estímulo de José Estêvão e
Mendes Leite, fundadores e redactores da «Revolução de Setembro».
Depois, com os vaivéns da política,
este último retirou o apoio ao jornal da sua terra e deixou de ser o
fiador do respectivo proprietário. Porque as disposições legais, uma
vez que o jornal fora querelado pelo governador civil, assim o
exigissem, o Campeão suspendeu temporariamente, e, em seu
lugar, durante três semanas, de 9 a 24 de Agosto de 1854, saiu um
seu irmão gémeo, orientado por Manuel Firmino, com o título de o
Aveirense.
|
José Luciano de Castro |
|
Em 1859 tomou a designação de
Campeão das Províncias e, transmitido o facho do fundador para
seu filho Firmino de Vilhena, e de este a seu turno, também ao filho
Dr. Manuel de Vilhena com escolhida colaboração e apreciável
tiragem, manteve-se até 26 de Janeiro de 1924. Foi um dos mais
conceituados periódicos da província e, nos últimos tempos, o seu
decano. Em 1872, lançou uma edição especial para o Brasil, onde
possuía numerosos assinantes.
Firmino de Vilhena (1865-1922) foi
chefe da secretaria da Câmara Municipal de 12 de Maio de 1892 a 7 de
Agosto de 1922, e, pela mão de seu pai, iniciou ainda muito novo a
sua actividade no jornalismo. Deixou cerca de uma dezena de obras
impressas, a maior parte das quais em verso.
Na ordem cronológica, o segundo
jornal aveirense seria a Aurora, fundado por José Luciano e
José Eduardo de Almeida Vilhena. Tinha como principais colaboradores
o Padre José Joaquim de Carvalho e Góis (1831-1869), mais tarde
vigário geral da diocese, orador sagrado de apreciadas faculdades; e
Agostinho Duarte Pinheiro e Silva (1836-1883), que foi presidente da
Câmara Municipal, da Associação Comercial e da Comissão Distrital;
e, além de uma saliente posição na imprensa local, deixou publicados
diversos livros e opúsculos.
De José Luciano de Castro
sobejamente se sabe que durante largo tempo se dedicou ao
jornalismo, onde teve, como na tribuna parlamentar, posição de
relevo. Com carácter efectivo, depois de sair de Aveiro, foi
redactor do «Comércio do Porto», do «Nacional» e do «Jornal do
Porto», em cuja redacção emparceirou com Ramalho Ortigão. Diários
onde deixou colaboração mais ou menos frequente ou cuja fundação se
lhe ficou devendo poderiam contar-se quase por uma dezena. Porque
apenas o jornalismo e não o político importa aqui evocar, diremos,
apenas, no trilho de
/ 68 / Anselmo de Andrade, que o
notável estadista ocupou, na «Revolução de Setembro», «um posto
igual aos que ali tinham Lopes de Mendonça e Latino Coelho, esses
dois inolvidáveis mestres da palavra escrita, com os quais competia
por vezes em primores de estilo, mas a quem excedia quase sempre no
vigor da paixão, que são as duas musas mais inspiradoras do
jornalismo político».
José Eduardo de Almeida Vilhena, que
provinha como o seu parente Manuel Firmino de família legitimista,
viria a acompanhá-lo não só na luta política, mas no Campeão,
ele que viria a ser, porventura, a pena mais assídua, feroz e
incisiva. A orientação pertencia ao chefe acatado do clã, mas era
ele, a maioria das vezes, «o amplificador intérprete dessa
parcialidade local».
Estreou-se no «Jardim Literário»,
hebdomadário lisboeta que Gomes de Amorim dirigia, e, quando depois
de um largo período na capital – para onde as vicissitudes políticas
haviam obrigado a família a transferir-se – regressa a Aveiro, onde
nascera, no bissemanário aveirense, além de produções literárias, em
prosa e verso, se intromete pela primeira vez nos assuntos da vida
pública, local e nacional, mais atraentes e incentivantes para o seu
espírito propenso ao combate, que o tornou o mais malquisto dos
articulistas daquela folha local, entre os adversários da sua tantas
vezes discutida orientação. As contingências da luta em que se
embrenhava afastaram-no de Aveiro por alguns períodos mais ou menos
longos, mas sempre, ao reassumir as suas funções burocráticas,
reocupava o seu posto naquele órgão da Imprensa, aquele em que por
mais tempo assentou arraiais, no decurso da sua carreira de
jornalista. Foi redactor do «Eco Popular», de José da Silva Passos
e, em 1865, assumiu a direcção política da «Opinião». De 1891 a
1894, colocado, então, em Lisboa, como chefe de uma repartição de
impostos, pertencia ao elenco efectivo da redacção do «Correio da
Tarde». Quando motivos de doença o obrigam a voltar definitivamente
para a sua terra natal, tolhido, mas lúcido, continua no Campeão
a sua actividade jornalística. Aliás, ressalvadas as proporções,
poderia aceitar-se como exacta a asserção de Marques Gomes, de que
Almeida Vilhena representou para aquele jornal aveirense o mesmo que
Rodrigues Sampaio para a «Revolução de Setembro».
A Aurora, que se publicava
quinzenalmente, teve a curta existência de meio ano, precisamente de
1 de Março a 1 de Setembro de 1855. Subintitulava-se de jornal
literário e religioso.
|
Padre José Joaquim de Carvalho e
Góis. |
Pouco maior duração logrou O
Imparcial, que presumimos de tendência cartista, já que um dos
seus redactores, o Dr. José Crispiano da Fonseca e Brito, que foi
director dos Correios em Aveiro e nesta cidade só gratuitamente
exerceu clínica, enfileirava naquela facção. Iniciou a publicação em
1 de Janeiro de 1856.
Em 1861, abertas por Manuel Firmino
as hostilidades contra José Estêvão, por ocasião de umas
eleições que ficaram memoráveis, o grande tribuno, com os seus
amigos mais dedicados, entre eles Mendes Leite, Bento de
Magalhães, Agostinho Pinheiro e José Agostinho Barbosa, fundou o
Distrito de Aveiro. |
José Estêvão ficou na memória dos
vindouros como o mais alto expoente da tribuna portuguesa. Aí
atingiu o fastígio, deslumbrou e empolgou e, depois de uma acção de
soldado intrépido da causa a que se devotara, se guindou à fama
imperecível. Mas esse prodigioso orador, o mais dominador e
persuasivo que as assembleias políticas nacionais algum dia
conheceram, esse homem privilegiado que possuía o poder magnético da
sugestão, e de dar às palavras o vigor, a música, o colorido que as
fazem penetrar no sentimento do auditório, tinha a necessidade
constante e irreprimível de se expandir e comunicar. Quando o som da
sua voz poderosa não atingisse todos aqueles a quem desejava
dirigir-se, ou quando, por circunstâncias ocasionais não pudesse
alteá-la, recorreria à Imprensa.
Já aos vinte e um anos, quando os
revezes das hostes liberais o levaram para os Açores, redigia a
«Crónica da Terceira». Aí deixou artigos que causaram sensação, e
nunca depois, pode dizer-se, através da sua vida, curta, mas vivaz e
agitada, dispensou um órgão da Imprensa.
Funda, aos vinte e nove anos, o
«Tempo», que não perdura para além de um ano e meio, colabora na
efémera «Lança», e nesta faz sair o programa da «Revolução de
Setembro», que lhe vai suceder.
Relembre-se a propósito, um
episódio. O director da «Lança» – o «Castro da Lança», porque o
público ajuntara o seu nome ao do jornal em que se evidenciara, e
assim o conhecia – morreu alguns anos depois. Só num dos diários da
capital falhou o necrológio, e esse foi precisamente a «Revolução»,
que ajudara a fundar. A razão era, afinal, singela. José Estêvão
encarregara-se de escrever o elogio fúnebre do finado e amigo, mas,
por qualquer eventualidade, não satisfizera o compromisso para a
data oportuna. Observou-lhe Mendes Leite que a sua negligência
colocaria o jornal numa posição desairosa.
Passavam já alguns dias do falecimento, mas os recursos do tribuno
eram sobejos para ladear a dificuldade. E começou o artigo com estes
precisos termos: «Morreu, já se não pode duvidar, o nosso amigo
Silva e Castro»...
Alguns dos seus artigos tiveram
extraordinária repercussão e ficaram memoráveis, entre eles os que
dedicou à morte de D. Maria II e de D. Pedro V, verdadeiramente
modelares.
/ 69 /
Dr. Bento de Magalhães |
Sucedia, porém, que esse jornalista
de garra, a quem se devem essas e outras páginas notáveis,
propriamente, não escrevia. Atesta-o Bulhão Pato, asseverando que
ele desconhecia os sinais cabalísticos a que chamamos letras. Tinha
um secretário, mas quando este lhe faltava, perguntava ao primeiro
amigo que lhe aparecia:
– «Sabes escrever? Não te
escandalizes, porque eu não sei. Se sabes, faz-me obra de caridade
de escrever as tolices que eu vou ditar».
«Dava uma volta pela casa; depois
parava diante do amanuense improvisado, ou do secretário encartado,
e, erguendo o braço direito, com o dedo indicador em pé, a primeira
palavra que dizia era: – Ponto! Sem esse intróito nunca ditou coisa
alguma».
|
Mendes Leite, que saibamos, apenas
escreveu com continuidade na famosa «Revolução», que Rodrigues
Sampaio, para além dos fundadores, celebrizaria. Deu larga, mas
ocasional colaboração, a alguns jornais aveirenses, particularmente
ao Campeão e ao Distrito de Aveiro, de que agora nos
estamos ocupando. Um ou outro desses artigos ainda hoje se citam.
Nobilíssimo carácter – a que apenas
se apontava a fraqueza de não saber furtar-se aos encantos
femininos, particularidade em que poderia encontrar-se uma das suas
muitas afinidades com José Estêvão – integérrimo na actuação
política, liberal estreme e escorreito, de princípios os mais
generosamente fraternos, uma só das suas iniciativas dá-lhe jus a
perdurar na grata memória das gerações que lhe sucederam – a
abolição da pena de morte por crimes políticos. «Foi-lhe odiosa a
opressão – escreveu Jaime de Magalhães Lima – com qualquer rótulo
que ela viesse, despotismo tradicional, egoísta e cruel, ou vingança
e ferocidade de revoltados triunfantes». O mesmo ilustre escritor
aveirense já antes observava que essa veneranda figura da sua terra
«em matéria de política eleitoral fez o desespero dos violentos».
Ganhava nas urnas sem afrontar, perdia sem azedume. Fazia a campanha
da sua candidatura ou dos seus amigos na sessão pública ou nas
colunas de um jornal, mas individualmente era incapaz, por uma
repugnância inelutável, de pedir um voto. Mas nele se descobriria
sem tardar que a suposta brandura e indiferença era o invólucro
transparente de um largo desprendimento de triunfos efémeros e
mesquinhas vaidades; e, debaixo da frieza que as cobiças alheias
lamentavam por lhes ser contrária, ocultavam-se e mandavam crenças
liberais imperativas, o respeito da liberdade dos estranhos e da
dignidade própria, uma suave recusa a descer ao que em consciência
reputava, se não degradante, pelo menos quebra de obrigações cívicas
e humanitárias».
Bento de Magalhães (1820-1869) foi
na primeira fase do Distrito de Aveiro o principal redactor do
semanário.
Advogado distinto, orador e
elegante, estudioso e culto, afirmou-se também no jornalismo. A
justa aura de que desfrutava levou-o a ocupar diversos cargos
públicos na cidade natal, entre eles o de presidente do município.
José Agostinho Barbosa, um dos
«senhores Barbosas», da conhecida loja dos «Balcões», onde, por
largos anos, já nada se vendia, mas se estabelecera um centro de
reunião dos mais afeiçoados amigos de José Estêvão, tinha no jornal
um papel diferente. Não escrevia, mas quando os apertos financeiros
eram mais prementes, cobria os «deficits» do seu bolso de negociante
aposentado com um pecúlio que deixava algumas sobras. O grande
parlamentar, esse, adquirira – como hoje ainda se pode verificar
pelas facturas que se conservam no seu espólio – todo o material
tipográfico.
Em 1872, António Augusto de Sousa
Maia (1841-1907) adquiriu a propriedade do jornal. Começara como
tipógrafo no Campeão e no «Comércio do Porto». Naquele
periódico aveirense desempenhou seguidamente funções de revisor e
escreveu as primeiras locais. Entrou no Distrito, logo na fundação,
dirigindo-o no aspecto técnico e, mais tarde, com a mais devotada
perseverança, redigindo-o na maior parte, ocupando-se, se
necessário, da composição e impressão, lutando com toda a sorte de
dificuldades e obstáculos, soube mantê-lo, numa digna modéstia.
Quando de todo a doença – longa doença que o torturou mais de cinco
lustros – o impossibilitou, a direcção foi confiada a Mário Duarte,
que já fora director, também em Aveiro, de Le Portugal
Philatélique (1895) e da revista Ovos Moles e Mexilhões
(1893), da qual saíram apenas dois números e que,
/ 70 /
à parte o artigo de apresentação, da autoria de Fialho de Almeida,
redigiu integralmente.
No Distrito de Aveiro
estreou-se
Marques Gomes (1853-1931), o
benemérito e fecundo historiógrafo aveirense, que sobre o passado da
sua terra deixou dezenas de publicações e chegou, como redactor do
Campeão a ocupar, semanas seguidas, páginas inteiras sobre temas
locais.
Mais tarde (1916), reapareceu a
mesma denominação num órgão do partido evolucionista que apresentava
o Dr. Luís Mesquita de Carvalho como director e Albino Pinto de
Miranda à testa da administração.
Passemos, sem delongas, outras
publicações de que há escassos indícios, como a revista literária «O
Tirocínio», que viveu um semestre, de 1 de Abril a 1 de Outubro
de 1876, e uma outra, quinzenal, saída pela primeira vez a 1 de
Abril de 1881, e dirigida pelo Dr. Lourenço de Almeida Medeiros
(1835-1934), seu proprietário e cremos que único redactor.
Subintitulava-se de «política, científica e literária», e
denominava-se, com o ambicioso desejo de exceder, no seu redor, a
acanhada zona da Ria e do Vouga, Revista Nacional. Embora
impressa no Porto, tinha em Aveiro a redacção e administração. Este
Dr. José Francisco Lourenço de Almeida Borges e Medeiros de seu nome
completo, era aquele poeta que tenazmente se afirmou autor do
«Noivado do Sepulcro», acusando Soares de Passos de abusivamente a
ter publicado como obra sua.
Deter-nos-emos um tanto mais em O
Povo de Aveiro, esse jornal singular e cáustico que, segundo
Rocha Martins, na «Pequena História da Imprensa Portuguesa» «tem a
mais assombrosa carreira dos semanários do seu partido e do seu
país». Perdurou de 29 de Janeiro de 1882 até Abril de 1941, quando
seu fundador e director completara oitenta e um anos. Nunca um
jornal português se identificou tão completamente com um homem. O
Povo de Aveiro é o jornalista Homem Cristo que, descontados os
primeiros anos, quase o redige de um a outro extremo. Começara com
um grupo de categorizados colaboradores, logo no primeiro número
Teófilo Braga, Sebastião de Magalhães Lima e Carlos Faria. Nos
números subsequentes assinaram artigos de fundo aqueles,
especialmente o primeiro, que se ligara estreitamente ao
recém-aparecido órgão republicano aveirense, Silva Graça, Anselmo
Xavier, Alberto Bessa, Alves da Veiga, Heliodoro Salgado, Alexandre
da Conceição e outros prosélitos destacados dos princípios de que o
novo jornal se tornara o arauto na sua região. Homem Cristo, que
contava 22 anos, mas já antes promovera a constituição do partido
republicano em Aveiro e pertencera à redacção de «O Século», criara
o jornal. Pela circunstância de ser oficial do Exército, nem
figurava como membro da empresa proprietária, nem firmava os seus
artigos. O jornal, porém, era por ele orientado e dirigido, e, pouco
a pouco, a sua vincada e voluntariosa personalidade foi dispensando,
se não sacudindo os seus qualificados colaboradores, mesmo os que
mais de perto o acompanhavam, Carlos Faria – o futuro Barão de Cadoro, já mencionado – Egberto Mesquita e Joaquim de Melo Freitas.
Fica praticamente só no terreiro da luta, fazendo doutrina com um
azorrague, intransigente e inquebrantável.
Cria inúmeras inimizades, mas o
jornal ganha uma aura excepcional, e atinge tiragens assombrosas
para um hebdomadário da província, nessa época em que a expansão dos
próprios quotidianos se não comparava com as actuais. Em 1908 tirava
dez mil exemplares;
/ 72 / em meados do ano seguinte
alcançava quinze milheiros, e não tardaria a ultrapassar as duas
dezenas de milhares. Em fins de 1910 ascendia aos trinta e cinco
mil. Liam-no os que estavam de acordo e lhe aplaudiam as veementes
campanhas, e não resistiam a lê-lo aqueles mesmos que visava e seus
apaniguados. Ataca de olhos vendados como a justiça, tanto para a
direita como para a esquerda, e ora rejubilam estes, enquanto os
demais o crivam de injúrias, ora as posições se invertem. Alguns
simulam ignorá-lo, e lêem-no às escondidas para não se
comprometerem. Acompanhado ou só – e às vezes talvez se possa ter
razão contra tudo e contra todos – nunca se cala.
Raúl Brandão considerou-o o maior
panfletário português desde o Padre José Agostinho de Macedo. Era
tipicamente o panfletário, visceralmente oposicionista, ardoroso,
cruel na indignação, de uma rudeza que quase arrepiava o comum
comedimento na profligação dos erros, dos vícios, dos defeitos de
todo o grau ou o que tinha como tal.
Adoptara certos princípios morais e
políticos e certas normas de conduta, advogava-as com aquela
«fraseologia curta, incisiva, quente e imaginosa» que Balzac
apontava entre os atributos capitais do panfletário.
Perfilhava as ideias que lhe
pareciam mais conformes com o seu desejo de ver os homens numa
crescente dignificação e valorização.
|
|
Essa complexa personalidade, esse
desmancha-prazeres agreste, que jogava o doesto e o sarcasmo como
quem derruba fantoches de pim-pam-pum, que, com espanto e escândalo,
bradaria, no meio da circunspecção geral que o rei ia nu, se
efectivamente fosse despido, em mais de sessenta anos de trabalho
jornalístico ininterrupto, votara-se a um apostolado.
Bravio com os homens que se
desviassem da rectidão e compassivo com os infortunados e
desprotegidos, temeroso e azedo no ataque ao antagonista e jovial no
trato particular, com a paixão dos livros e o amor das árvores e das
flores, foi acidentalmente militar, deputado, professor
universitário, ou propugnador indefeso dos mais altos interesses da
sua região, quando um dia lhe confiaram um cargo de administração em
que pôde evidenciar a sua capacidade realizadora. Era medular e
inalienavelmente um jornalista, talvez «sui-generis», mas dos
maiores que algum dia houve no nosso país.
Passou por «O Século», quando
Magalhães Lima fundou o grande matutino, pelos «Debates» e outros
jornais, com alguma continuidade ou com esporádica colaboração. Mas
só se realizou plenamente, com o vigor, desassombro e independência
que dele fizeram o mais temido polemista do seu tempo, no Povo de
Aveiro. Nesse semanário nem tinha peias, nem se sentia coagido a
escolher eufemismos. Falava sem papas-na-língua, empregando o
plebeísmo se lhe parecia mais próprio para exprimir a execração por
uma atitude ou definir o impudor de alguma desvergonha. E,
obstinadamente, resistindo a toda a sorte de pressões e
perseguições, nunca a sua voz irada e máscula foi reduzida ao
silêncio. Homisiado em Paris, publica o Povo de Aveiro no
exílio; suprimido O Povo de Aveiro, crisma-o com o nome mais
sucinto de O de Aveiro; volta a denominação primitiva,
quando, a seu turno, este é suspenso; e uma ocasião que o prendem,
apesar da rigorosa vigilância a que está sujeito, o seu artigo,
anónimo mas inconfundível, não deixa de aparecer diariamente num dos
jornais da capital.
(Continua no número seguinte)
_____________________
NOTAS:
(1)
– Marques Gomes – Cinquenta anos de vida pública pg. 91 e segs.
(2)
– Litoral, n.º 105, de 6-10-1956 |