Foi no pequeno bairro ribeirinho
de Além da Ponte, às portas da Vila de Águeda, mas já no aro da
freguesia de Recardães, que a 16 de Agosto de 1866 nasceu este
brilhante escritor; foram seus pais José Rodrigues Pinto e D.
Maria de Jesus da Silva.
Ao berço de recém-nascido
chegavam os ecos dos cantares alegres das esfolhadas que já a
esse tempo começavam nas eiras, como também a balada triste e
dolente do chiar das noras, ali no rio seu vizinho, casando-se
com as cantigas das lavadeiras, à tardinha, e o canto dos
rouxinóis por noites calmas e luarentas de Verão. Lá ia ter
também o sussurro do marulhar das águas que às primeiras cheias
vinham cercar a casa onde o poeta viu, pela primeira vez, a luz
do dia. Tudo isso que – quais canções de embalar – ele ouviu em
menino, haveria de ser pela vida fora, além duma continuada e
viva saudade, a fonte mais límpida, mais pura, da sua fecunda
inspiração; e foi sem dúvida que, nestes e noutros motivos que
lhe eram familiares – como em cadinho maravilhoso – se fundiu o
seu privilegiado estro. Ninguém como ele soube, até hoje,
traduzir com mais realidade, com mais sentimento e viveza de
cores, a paisagem, as tradições da sua terra, os costumes da sua
gente: romarias, trabalhos do campo, devoções e crenças
populares; as formosas procissões, enfim, todas essas tão
variadas manifestações da vida e do sentir do nosso povo ele as
descreveu com leveza e uma nota de pitoresco que atingiram uma
expressão alta, de aliciante encanto. Em toda a sua obra reside
um pensamento fixo, nota-se uma constante, que é o amor ao seu
torrão natal; é lá que ele vai buscar os temas que o apaixonam,
que o prendem, que o seduzem; e nem é preciso ler a sua obra
completa, para disso tirar prova segura. Veja-se, ao acaso, o
belo prefácio das ORVALHADAS, onde Adolfo Portela, depois
de lembrar os loiros milharais dos campos d'Águeda, as ermidas,
o rio, cantigas de romeiros, murmúrio de pinhais, tanger de
sinos, etc., mostra bem a saudade que o acompanhava na distante
terra do Fundão, onde ao tempo desempenhava um cargo público, e
veio a falecer no ano de 1923. Escreveu ele então:
Saudades da minha terra,
saudades da minha gente – eis o livro que agora escrevo. Vai
nele toda a minha alma, a confessar-se como a gente se confessa
aos pés dum prior velhinho; vai nele toda a alegria ingénua que
eu tenho, ao evocar de longe, d'entre as altas serras, onde
branqueia a neve, os loiros milharais da minha terra, as suas
ermidas simples, o seu rio manso e claro...
Nascido em Águeda e tendo aqui a
roda dos seus amigos mais dedicados, foi aqui que passou o tempo
da sua infância e parte da mocidade, estudando no Porto e mais
tarde em Coimbra, onde se formou em Direito; mas não esquecia a
velha terra de Recardães, / 40 / outrora importante Julgado. À
Senhora das Dores, que desde antiga data é muito venerada numa
modesta capelinha a olhar o campo, ele se refere assim:
Nossa Senhora das Dores,
Quantas dores vós guardais!
Ó roza da Alexandria
Cravada a sete punhais!
Nada por ele é esquecido na sua
obra: as sachadeiras do campo, os pastores, os barqueiros, as
sardinheiras, as regateiras da praça, as devoções do nosso povo,
que ele nos vai desenrolando desde a quadra dos Reis até ao
Natal, etc., etc. Lembra-se também dos mortos e dedica-lhes uma
enternecida poesia, Dia de Finados, de que respigo estes
versos:
Dobra o sino grande em fúnebre
lamento!
Pelo ar suspensas andam, como
estrelas,
Lágrimas em lume, ardendo lento
e lento,
Prantos de viúvas dum magoado
acento.
Prantos de velhinhas, prantos de
donzelas...
Para a sua guitarra, companheira
das noites de Coimbra (Adolfo Portela foi um exímio guitarrista
e conseguia arrancar da guitarra notas de harmoniosos sons que o
ajudaram a compor belas canções que correram o país de lés a
lés) – ele teve também uma palavra amiga. Recorda-a pendurada
numa das paredes da sua casa, junto do seu gabão de burel; dela
fala assim:
Defronte, crucificada entre dois
antigos espadagões do tempo do terramoto, a minha guitarra pende
também, viuvinha triste, sem um coração d'esposo que lhe aqueça
o frio dormir. E as duas cordas que lhe restam, "ao verem o
gabão, com todo o seu trágico chorar de lágrima negra, a
escorrer da parede, costumam também chorar com ele, às noites,
quando o luar embebeda a terra... (Do O País do Luar).
Adolfo Portela tem um lugar à
parte na nossa Literatura; mas lugar de relevo eminente. Bem
merece que da sua obra, que não é pequena, se faça um estudo
detalhado, completo, que não cabe no limitado espaço duma
crónica deste género, pelo que – e já nos alongámos
demasiadamente – encerramos estas notas com a indicação mais
completa que pudemos apurar, das obras por ele publicadas.
Assim, temos:
Em poesia – Sol Posto,
1896; Pela África, 1896; Orvalhadas, 1898;
Toadas da Nossa Terra (em colaboração com Tomaz Borba).
Em prosa: Boémia Lírica,
1893; Jornal do Coração, 1897; Contos e Baladas,
1896-1897; O País do Luar 1902; Por Bem d'Águeda,
1902; Águeda, 1904.
Teatro: A Festa do Pão;
Manga do Frade; A Noiva de João; A Flor
do Linho; e Tambor da Folia, sem mencionar a sua
colaboração em jornais e revistas da época.
Parte da sua obra mantém-se
inédita.
Serafim Gabriel Soares da Graça
*
* *
Transcreve-se do livro «Águeda»
o capítulo que se refere à Noite dos Passos, um belo naco de
prosa, cujo descritivo mantém, ainda hoje, rigorosa actualidade.
«A Noite dos Passos, com a sua
procissão pela estrada de Assequins, desde a igreja da Vila até
à capela da Senhora da Graça é toda ela cheia do mais lindo e
mais comovedor espectáculo de que tenho conhecimento; pois, na
verdade, não sei de terras portuguesas onde essa procissão se
revista de tanta poesia.
É toda a vila, é gente do
concelho, é gente de muito longe – tudo a presenciar esse lindo
e piedoso cortejo e a comover-se profundamente do espectáculo
estranho e original que a vista lhes dá.
Ao fundo dos outeiros das Chãs e
da Bicha Moira, o leito da estrada coalha-se de lumes. – São os
brandões velhos da Irmandade do Senhor Jesus, as tochas, as
lanternas, os círios e todos esses coloridos novelos de luz nas
mil velas dos devotos, a estenderem-se por aí fora como uma tira
da Via Láctea que se descosesse do céu... Os outeiros de
envolta, o Adro, as Chãs, S. Pedro, a Borralho, o Randam, põem
nos postigos ou nos beirados de cada casal uma pinha ardente de
lanternas. E essas migalhinhas de lume, que são outras tantas
almas, de joelhos, tremulinam à flor da água empoçada,
acrescentando-se e multiplicando-se por tal forma, que toda a
bacia do Vale de Águeda, desde o seu fundo verde até ao cabeço
dos outeiros que o cercam, é uma cheia grande de luz a
transbordar!
– São as mães em ânsias diante
dos filhos, com sarampo; são os pais, mirradinhos de saudade, a
lembrarem os filhos que andam na tropa ou sobre as águas / 41 /
do mar; a tia Zefinha do Atalho a rezar pelo rapaz que foi para
o Brasil; o João da Viúva que não teve carta no último paquete,
mas que tem lá dentro uma coisa que lhe diz que a primeira carta
que vier há-de ser de preto, com más novas dentro do
sobrescrito; ainda a Marianinha da Chãs a rezar pelo neto que
anda para padre (a poder de quantos sacrifícios, sabe-o ela) e
que confia que Deus lhe faça a esmola de o levar a bom termo dos
seus estudos... Há também rapariguinhas ingénuas que, ao assomar
dos dezoito anos, se voltam para o Senhor dos Passos, a
rogar-lhe que acalme as febres da sua mocidade em flor com o
achado dum noivo que seja honesto e temente a Deus; rapazes, por
sua vez, que lhe imploram, de coração solteiro e deserto de
amor, outro que o despose e se emparelhe com ele para levarem a
cruz da vida, aos beijos...
Entretanto, pelos campos
encharcados das últimas invernadas, as rãs coaxam; e o coaxar
monótono das rãs, ao passar da procissão, funde-se no murmúrio
das orações que todos os devotos vão rezando. – É um ribeirinho
de música que vai desaguar num grande mar de lume: mas um
ribeirinho de águas puras, em cujo fundo se vê distintamente o
álveo da areia branca sobre que ele vai correndo...
É assim, conforme a evocação
ingénua mas desapaixonada da minha alma, que essa linda
procissão de aldeia assume um ar majestoso de devoção antiga,
com o sino grande do Senhor Jesus, lá do campanário, a despejar
soluços de bronze para cima das almas... É assim, com todo esse
revestimento feérico de luzes e de orações piedosas, que essa
procissão, ainda agora, me passa à porta da alma, na Noite dos
Passos... – Pois que é assim também que toda a gente da nossa
terra a vê passar, majestosa na sua simplicidade, imponente na
modéstia do seu asseio, cheia de virtudes e cheia de pureza
através desta vida negra que todos vivemos!» |