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N.º 5

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1968 

Antologia Aveirense

ADOLFO PORTELA

NOTAS

BIOGRÁFICAS

 

Foi no pequeno bairro ribeirinho de Além da Ponte, às portas da Vila de Águeda, mas já no aro da freguesia de Recardães, que a 16 de Agosto de 1866 nasceu este brilhante escritor; foram seus pais José Rodrigues Pinto e D. Maria de Jesus da Silva.

Ao berço de recém-nascido chegavam os ecos dos cantares alegres das esfolhadas que já a esse tempo começavam nas eiras, como também a balada triste e dolente do chiar das noras, ali no rio seu vizinho, casando-se com as cantigas das lavadeiras, à tardinha, e o canto dos rouxinóis por noites calmas e luarentas de Verão. Lá ia ter também o sussurro do marulhar das águas que às primeiras cheias vinham cercar a casa onde o poeta viu, pela primeira vez, a luz do dia. Tudo isso que – quais canções de embalar – ele ouviu em menino, haveria de ser pela vida fora, além duma continuada e viva saudade, a fonte mais límpida, mais pura, da sua fecunda inspiração; e foi sem dúvida que, nestes e noutros motivos que lhe eram familiares – como em cadinho maravilhoso – se fundiu o seu privilegiado estro. Ninguém como ele soube, até hoje, traduzir com mais realidade, com mais sentimento e viveza de cores, a paisagem, as tradições da sua terra, os costumes da sua gente: romarias, trabalhos do campo, devoções e crenças populares; as formosas procissões, enfim, todas essas tão variadas manifestações da vida e do sentir do nosso povo ele as descreveu com leveza e uma nota de pitoresco que atingiram uma expressão alta, de aliciante encanto. Em toda a sua obra reside um pensamento fixo, nota-se uma constante, que é o amor ao seu torrão natal; é lá que ele vai buscar os temas que o apaixonam, que o prendem, que o seduzem; e nem é preciso ler a sua obra completa, para disso tirar prova segura. Veja-se, ao acaso, o belo prefácio das ORVALHADAS, onde Adolfo Portela, depois de lembrar os loiros milharais dos campos d'Águeda, as ermidas, o rio, cantigas de romeiros, murmúrio de pinhais, tanger de sinos, etc., mostra bem a saudade que o acompanhava na distante terra do Fundão, onde ao tempo desempenhava um cargo público, e veio a falecer no ano de 1923. Escreveu ele então:

Saudades da minha terra, saudades da minha gente – eis o livro que agora escrevo. Vai nele toda a minha alma, a confessar-se como a gente se confessa aos pés dum prior velhinho; vai nele toda a alegria ingénua que eu tenho, ao evocar de longe, d'entre as altas serras, onde branqueia a neve, os loiros milharais da minha terra, as suas ermidas simples, o seu rio manso e claro...

Nascido em Águeda e tendo aqui a roda dos seus amigos mais dedicados, foi aqui que passou o tempo da sua infância e parte da mocidade, estudando no Porto e mais tarde em Coimbra, onde se formou em Direito; mas não esquecia a velha terra de Recardães, / 40 / outrora importante Julgado. À Senhora das Dores, que desde antiga data é muito venerada numa modesta capelinha a olhar o campo, ele se refere assim:

Nossa Senhora das Dores,

Quantas dores vós guardais!

Ó roza da Alexandria

Cravada a sete punhais!

Nada por ele é esquecido na sua obra: as sachadeiras do campo, os pastores, os barqueiros, as sardinheiras, as regateiras da praça, as devoções do nosso povo, que ele nos vai desenrolando desde a quadra dos Reis até ao Natal, etc., etc. Lembra-se também dos mortos e dedica-lhes uma enternecida poesia, Dia de Finados, de que respigo estes versos:

Dobra o sino grande em fúnebre lamento!

Pelo ar suspensas andam, como estrelas,

Lágrimas em lume, ardendo lento e lento,

Prantos de viúvas dum magoado acento.

Prantos de velhinhas, prantos de donzelas...

Para a sua guitarra, companheira das noites de Coimbra (Adolfo Portela foi um exímio guitarrista e conseguia arrancar da guitarra notas de harmoniosos sons que o ajudaram a compor belas canções que correram o país de lés a lés) – ele teve também uma palavra amiga. Recorda-a pendurada numa das paredes da sua casa, junto do seu gabão de burel; dela fala assim:

Defronte, crucificada entre dois antigos espadagões do tempo do terramoto, a minha guitarra pende também, viuvinha triste, sem um coração d'esposo que lhe aqueça o frio dormir. E as duas cordas que lhe restam, "ao verem o gabão, com todo o seu trágico chorar de lágrima negra, a escorrer da parede, costumam também chorar com ele, às noites, quando o luar embebeda a terra... (Do O País do Luar).

Adolfo Portela tem um lugar à parte na nossa Literatura; mas lugar de relevo eminente. Bem merece que da sua obra, que não é pequena, se faça um estudo detalhado, completo, que não cabe no limitado espaço duma crónica deste género, pelo que – e já nos alongámos demasiadamente – encerramos estas notas com a indicação mais completa que pudemos apurar, das obras por ele publicadas. Assim, temos:

Em poesia – Sol Posto, 1896; Pela África, 1896; Orvalhadas, 1898; Toadas da Nossa Terra (em colaboração com Tomaz Borba). 

Em prosa: Boémia Lírica, 1893; Jornal do Coração, 1897; Contos e Baladas, 1896-1897; O País do Luar 1902; Por Bem d'Águeda, 1902; Águeda, 1904.

Teatro: A Festa do Pão; Manga do Frade; A Noiva de João; A Flor do Linho; e Tambor da Folia, sem mencionar a sua colaboração em jornais e revistas da época.

Parte da sua obra mantém-se inédita.

Serafim Gabriel Soares da Graça

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*   *

Transcreve-se do livro «Águeda» o capítulo que se refere à Noite dos Passos, um belo naco de prosa, cujo descritivo mantém, ainda hoje, rigorosa actualidade. 

«A Noite dos Passos, com a sua procissão pela estrada de Assequins, desde a igreja da Vila até à capela da Senhora da Graça é toda ela cheia do mais lindo e mais comovedor espectáculo de que tenho conhecimento; pois, na verdade, não sei de terras portuguesas onde essa procissão se revista de tanta poesia.

É toda a vila, é gente do concelho, é gente de muito longe – tudo a presenciar esse lindo e piedoso cortejo e a comover-se profundamente do espectáculo estranho e original que a vista lhes dá.

Ao fundo dos outeiros das Chãs e da Bicha Moira, o leito da estrada coalha-se de lumes. – São os brandões velhos da Irmandade do Senhor Jesus, as tochas, as lanternas, os círios e todos esses coloridos novelos de luz nas mil velas dos devotos, a estenderem-se por aí fora como uma tira da Via Láctea que se descosesse do céu... Os outeiros de envolta, o Adro, as Chãs, S. Pedro, a Borralho, o Randam, põem nos postigos ou nos beirados de cada casal uma pinha ardente de lanternas. E essas migalhinhas de lume, que são outras tantas almas, de joelhos, tremulinam à flor da água empoçada, acrescentando-se e multiplicando-se por tal forma, que toda a bacia do Vale de Águeda, desde o seu fundo verde até ao cabeço dos outeiros que o cercam, é uma cheia grande de luz a transbordar!

– São as mães em ânsias diante dos filhos, com sarampo; são os pais, mirradinhos de saudade, a lembrarem os filhos que andam na tropa ou sobre as águas / 41 / do mar; a tia Zefinha do Atalho a rezar pelo rapaz que foi para o Brasil; o João da Viúva que não teve carta no último paquete, mas que tem lá dentro uma coisa que lhe diz que a primeira carta que vier há-de ser de preto, com más novas dentro do sobrescrito; ainda a Marianinha da Chãs a rezar pelo neto que anda para padre (a poder de quantos sacrifícios, sabe-o ela) e que confia que Deus lhe faça a esmola de o levar a bom termo dos seus estudos... Há também rapariguinhas ingénuas que, ao assomar dos dezoito anos, se voltam para o Senhor dos Passos, a rogar-lhe que acalme as febres da sua mocidade em flor com o achado dum noivo que seja honesto e temente a Deus; rapazes, por sua vez, que lhe imploram, de coração solteiro e deserto de amor, outro que o despose e se emparelhe com ele para levarem a cruz da vida, aos beijos...

Entretanto, pelos campos encharcados das últimas invernadas, as rãs coaxam; e o coaxar monótono das rãs, ao passar da procissão, funde-se no murmúrio das orações que todos os devotos vão rezando. – É um ribeirinho de música que vai desaguar num grande mar de lume: mas um ribeirinho de águas puras, em cujo fundo se vê distintamente o álveo da areia branca sobre que ele vai correndo...

É assim, conforme a evocação ingénua mas desapaixonada da minha alma, que essa linda procissão de aldeia assume um ar majestoso de devoção antiga, com o sino grande do Senhor Jesus, lá do campanário, a despejar soluços de bronze para cima das almas... É assim, com todo esse revestimento feérico de luzes e de orações piedosas, que essa procissão, ainda agora, me passa à porta da alma, na Noite dos Passos... – Pois que é assim também que toda a gente da nossa terra a vê passar, majestosa na sua simplicidade, imponente na modéstia do seu asseio, cheia de virtudes e cheia de pureza através desta vida negra que todos vivemos!»

 

páginas 39 a 41

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