O homem de Aveiro, o mais genuíno,
o de raízes ancestrais nas fainas da laguna – aquele de quem a
máxima local escarnecedora de emproamentos aristocratizantes dizia
que na cidadezinha dos canais «quem não rema, remou» – o do Alboi
ou da Beira Mar, participe das «arruadas», prosélito de uma das
filarmónicas, torcedor de um dos clubes, cioso dos seus direitos
de cidadania e deles consciente, «cagaréu» até à medula, primou
sempre na compostura da sua apresentação e na dos seus actos
colectivos.
O marnoto e o pescador, ou o
operário que desgarrara das actividades familiares tradicionais,
finda a faina do ganha-pão, não destoava, debaixo dos Balcões, se
adregava de até lá estender os seus passos, nas horas feriadas,
dos «pelotes» e das pessoas de grada condição social ou de bens
avantajados.
Um dos pendores do lídimo
aveirense, do que tomanino chapinou e imergiu nas águas da ria,
como se esparzisse sobre a moleirinha em vias de ossificação – a
daquela idade maleável em que se torce o pepino e imprimem as
marcas no menino – a água baptismal do Jordão, eram as procissões.
Não o satisfazia plenamente, mesmo nos velhos tempos em que com
mais estrita devoção lhe cumpria os preceitos, a religião
desprovida das cerimónias luzidas do culto externo.
Poderia gazetear nas demais
obrigações, porventura agnosticizar, no íntimo da sua consciência
infirme, e não remar contra as marés do anticlericalismo, ser
impelido tanto por uma mera tradição do seu agrado como por uma fé
actuante, mas, na generalidade, a procissão, com a exterioridade
da sua pompa, sempre o seduziu.
Timbrou sempre, aliás, em imprimir
aos préstitos religiosos uma dignidade dificilmente igualada, uma
organização meticulosa e reverente, um cunho de aprimorada
distinção e pompa que lhe conferiam um evidente realce em relação
a quaisquer outros por mais famosos e maiores pretensões de
esplendor, que se arrogassem propósitos de cotejo.
D. João Evangelista de Lima Vidal
presidindo a uma procissão.
Um ou outro deslize de qualquer
mordomo menos consciente da respeitosa conduta que um cortejo
religioso dele exigia, seria caso esporádico e logo reprimido. Não
topamos mais que uma alusão a irreverente falta de decoro de
alguns membros de irmandades aveirenses. «Enquanto se recolhiam
em algum templo as sagradas imagens ou o Santíssimo Sacramento»,
aguardavam esses incorrectos mordomos que a procissão reiniciasse
o seu itinerário e não tinham pejo de beberricar alguns golos de
vinho em plena rua, com escândalo dos devotos mais morigerados.
Nos capítulos de visitas às igrejas de S. Miguel e das outras
paróquias da cidade, no ano de 1805, foi o facto apontado e
censurado, e esse reparo lhe deve ter posto imediato termo.
As quebras consentidas à gravidade
e perfeito ordenamento dos cortejos litúrgicos, aliás, só poderiam
encontrar-se na procissão de Corpus Christi, com figurações
grotescas, impróprias do respeito devido à cerimónia do culto.
Essas, porém, pertenciam ao próprio protocolo da solenidade.
Constituíam regra e eram gerais, mas foram também proscritas, como
veremos.
As procissões aveirenses, tanto as
de gente de Além da Ribeira, organizadas pelas confrarias das
paróquias da Vera Cruz ou de Nossa Senhora da Apresentação, como
as promovidas pelas irmandades, cheias de pergaminhos e de
prosápias de títulos e precedências, erectas na matriz de S.
Miguel ou as instituídas na semiurbana freguesia de Espírito
Santo, pelos rastos que delas se encontram, foram sempre modelares
na ordem, extremamente cuidadas até ao pequeno pormenor de esmero
e luxo.
Sucedia assim nos tempos em que
havia uma parte nobre, dentro das muralhas, uma «vila-nova»,
marinheira e burguesa, para que o núcleo inicial se expandira já
nos séculos XV e XVI, e o «cimo de vila», a área pouco a pouco
conquistada à zona rural para além das portas abertas para o
meridião. E do mesmo modo aconteceria quando, a partir de 1835, as
quatro freguesias
/ 40 / de criação quinhentista se reuniram
apenas nas da Glória e da Vera-Cruz, em que a antiga área da
cidade ficou bipartida e que ainda hoje subsistem, embora
acrescidas com a antiga vila vizinha de Esgueira, recentemente
incluída no perímetro urbano.
Manteve-se como que uma compita de
aprimoramento, uma rivalidade que impunha um competitivo desejo,
nas duas paróquias, de contínua superação, e alguma vez terá
levado a exageros de emulação além do conveniente, mas contribuiu
consideravelmente para manter o nível de distinção que singulariza
as procissões aveirenses.
Homem Cristo, «livre pensador que
não praticava nenhum acto de culto católico», nostálgico da pátria
e da cidadezinha onde nascera e pela qual, mesmo através de
algumas apreciações acerbas, não conseguia esconder uma
inquebrantável afeição – a que o levou a prestar-lhe os mais
prestimosos serviços – um sábado de Aleluia, recorda-as, desde a
sua infância, há cerca de um século. Lembra-as, às procissões
inultrapassáveis de dignidade, e ao povo seu patrício, à figura
física do homem da sua terra, desempenada e erecta, a condizer com
a independência de carácter, que repetidas vezes pôs em relevo:
... «O homem da faixa marítima onde nasci, que ama a Deus porque
ama as procissões, requintadamente artísticas, com uma ordem e
disciplina admiráveis, sem balandraus de paninhos nem chimpanzés
como as de quase todos os outros pontos do país – onde ele ostenta
as suas luvas, o seu calção e meia, o seu sapato de entrada baixa,
a sua opa de seda, o seu donaire, a sua elegância, a sua nativa
distinção, fidalgo de nascença».
(1)
Ausente, embora por motivos muito
diferentes, pois era o bispo missionário da então diocese de
Angola e Congo, D. João Evangelista da Lima Vidal, nas suas
crónicas para o semanário aveirense «Vitalidade», depois reunidas
em volume, releva as procissões da cidade natal, com segura
retentiva e finíssima sensibilidade de crente, no seu tão pessoal
e belo estilo, os mesmos predicados. Trasladamos alguns frisantes
períodos dessa evocação, a que a distância também confere dourados
tons superlativantes:
«Quem viu uma procissão em
Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma.
Aqueles homens da beira-mar
andavam ontem na sua faina, nas campanhas de S. Jacinto ou da
Costa-Nova-do-Prado, dentro dos grandes barcos de proa esguia, a
remar, a deitar as redes, ou, à pancada à água, a dirigir as
manobras do saco; de ceroulas arregaçadas, de peito ao léu, cheios
de escamas, gritando a todo o pulmão. E hoje, ali vão eles,
irrepreensivelmente bem postos, de fato preto, de calçado a luzir,
de gravata branca e de luvas brancas, de opa de seda com cordão e
borlas de ouro!
Quem há como a Sra. Marquinhas
Carvalho para compor um anjinho?! Aquelas cabeças encaracoladas,
aureoladas e floridas, são na realidade as cabeças dos serafins
que Murillo fazia brotar das nuvens que emolduravam as suas
Virgens; aquele ouro, distribuído com sobriedade e com arte, está
infinitamente longe de ser como noutras partes, a exposição
ambulante de algum ourives de feira; e os sapatinhos de cetim
branco amoldam-se tão perfeitamente ao formato dos pequenos pés
que os calçam, que por um lado não fazem a menor ruga, e por outro
não estorvam o menor movimento, a menor contracção».
E o prelado, que nunca deixou de
cultivar os seus primorosos dotes literários, e que tivera ocasião
de estabelecer confrontos na própria Itália, prossegue a sua
expressiva rememoração:
«Os andores, a maior parte das
vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais,
nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!
Os pendões bordados e as cruzes
de prata, a sequência grave das irmandades, o brilho das vestes
litúrgicas, a custódia debaixo do pálio, a «música-nova» ou a «música-velha»
a bulir-nos na alma, o nosso esplêndido povo pelas janelas e pelas
ruas, tudo se apresenta tão bem, que digam-me se eu não tenho
razão em repetir o que escrevi ao princípio: quem viu uma
procissão em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma.»
(2)
Coincidem, como é natural, os
depoimentos dos dois insignes aveirenses, de tão distintos
temperamentos
/ 41 / e inclinações doutrinários. E ainda hoje,
caldeado com gente recém-chegado o crescente população citadino,
declinantes muitos dos característicos e predilecções que lhe eram
peculiares, os cortejos religiosos aveirenses se avantajam no
cotejo com os de quaisquer outras localidades.
O número das que se realizam, ao
longo do ano, decresceu consideravelmente. Sem a pretensão de uma
enumeração exaustiva, recordaremos as que deixaram de organizar-se
e a que encontramos referência numa rebusca um tanto fugaz.
Mencionaremos a procissão de
Corpus Christi que continua a sair, mas tomou uma feição muito
diferente nos últimos decénios, por ela iniciando estes
apontamentos, e, passageiramente, a de domingo de Ramos, para
aludir também a uma alteração, que data, seguramente, de há mais
de século e meio.
Até ao primeiro terço do século
passado, como é sabido, (3) os componentes da edilidade aveirense
ainda tinham obrigação de acompanhar as seguintes procissões: a de
S. Sebastião, a 20 de Janeiro; dos Três dias das Ladainhas de
Maio; de Santa Joana Princesa, a 12 do mesmo mês; de «Corpus Christi»; da Visitação de Nossa Senhora, a 2 de Julho; a do Anjo
Custódio, no terceiro domingo de Julho; a de S. Francisco de Borja,
no dia 10 de Outubro; a do Patrocínio de Nossa Senhora, no domingo
depois do Oitavo de Todos os Santos; e a da Bula do Santo Cruzado,
no fim do ano – as quais desde então foram deixando de ser
organizadas.
O termo de vereação de 13 de
Novembro de 1830, que regista essa obrigação, informa ainda «que
todas estas Procisoens (menos a de Santa Joana que he privativa do
Convento de Jezus) costumavão antigamente sahir da Igreja de Sam
Miguel desta Cidade como Matriz, q então era, acompanhadas pelo
Prior, Coadjutor e Conegos da Colegiada da ditta Igreja, e só na
de Corpus Christi hia tambem todo o Clero, Comunidades e
Irmandades. Mas depois q a esta Cidade chegou o Excelentíssimo
Senhor Bispo Gameiro, todas estas procissoens principiarão a sahir
da Igreja da Mizericórdia ahonde se estabeleceu a Sede
Episcopal...».
Já antes cessara a de Sant'Ana,
padroeira do burgo aveirense e em que os vereadores teriam também
o dever de incorporar-se, e creio que também a de Santa Isabel, na
qual participava igualmente a edilidade.
Este preceito era observado com
grande rigor, quer quanto aos membros da vereação, quer mesmo para
os funcionários municipais. Por se ter permitido faltar à
procissão da Visitação de Nossa Senhora – ao que estava «obrigado
por antiquíssimo e inalterável uzo» –, haver reincidido na do
Anjo Custódio, e «praticado o mesmo ou maior escandalo» não
comparecendo à festa da Padroeira, celebrada na Matriz, foi
demitido, em 1807, do cargo de juiz-almotacé, João Lício Barbosa e
substituído por Bento José Mendes Guimarães.
(4)
Das procissões em que a vereação
participava naquela época, apenas subsistem precisamente as duas
que se efectuavam a expensas exclusivas do erário municipal e para
as quais a Câmara fazia convites às individualidades mais
representativas e determinava o itinerário – as de Santa Joana
Princesa e a do Corpo de Deus.
Aliás, o Senado do Câmara,
conforme faz crer o operoso aveirógrafo Rangel de Quadros, de
cujos Apontamentos Históricos principalmente nos socorremos na
elaboração destas notas, muito verosimilmente tomaria parte também
na procissão da Ressurreição, e, para a acompanharem formularia
igualmente convites a pessoas de grada condição. Assim mais
cabalmente se justificaria o subsídio anual de oito mil reis que
concedia, «desde tempos imemoriais», à irmandade do
Santíssimo Sacramento, erecto na Igreja de S. Miguel, com o
encargo, em contra partida, de ter sempre em condições de serem
utilizadas na referida procissão vinte e quatro brandões.
E, porque vem a talhe de foice,
ajuntaremos que a municipalidade mantinha, no século XVIII, um
outro compromisso, digamos congénere, que certamente só terá
cessado com a extinção das ordens religiosos.
Na matriz de S. Miguel, no decurso
de cada ano, pregavam-se, em regra, uns quarenta sermões. Não
importa aqui mencioná-los todos. Referiremos apenas os que seguem:
«Todas as domingas da Quaresma,
e Advento, Festas Pascais, Padroeiro da Igr.a. Padroeira da Cid.e,
que he Santa Ana, S. Estêvão, S. Lourenço e dia de todos os Stos
satisfeitos pela Camera com a esmola de quarenta mil reis aos
Religiozos de Sancto António.»
(5)
A informação que sobre o assunto
presta Rangel de Quadros de que o subsídio da Câmara Municipal se
destinava a missas pregadas por um frade daquele convento local
nas tardes de todas as sextas-feiras da Quaresma, pecará pois por
defeito, já que Frei Félix Mendes Ramos, beneficiado coadjutor e
vigário encomendado da própria igreja matriz aveirense, autor do
trecho atrás transcrito, pelas suas funções e pelo conhecimento
directo do caso, nos dá inteira garantia de autenticidade.
«CORPUS CHRISTI»
A procissão do «Corpus Christi»
continua a realizar-se. Tomou, porém, como atrás dissemos, um
aspecto tão diferente do de antigamente que se nos afigura
oportuno mencionar as suas característicos passadas, incluindo-a
na notícia consagrada às extintas.
/ 42 / Nos tempos de hoje tomou a
feição de um pomposo mas estrito préstito eucarístico, em que todo
o objecto do culto é o corpo místico de Cristo. Até à primeira
década do século corrente incluía as imagens de S. Jorge e S.
Cristóvão, e, em tempos mais recuados, as bandeiras das
corporações locais de artes e ofícios e figurações mais ou menos
pagãs e destoantes da dignidade de um tão solene cortejo
religioso.
O costume de incorporar S. Jorge,
a cavalo, nesta procissão, remonta aos fins do século XIV, pelo
menos em Lisboa. Segundo lemos, «este santo foi conhecido em
Portugal por via dos Ingleses, no reinado de D. Fernando, que se
aliou com o Duque de Lencastre, segundo filho de Eduardo III da
Inglaterra, e pretendente ao trono castelhano.
(6) E, se os
vencedores de Aljubarrota foram aguardados, à sua festiva chegada
a Lisboa, pela imagem do patrono das nossas glórias bélicas,
levada em procissão, e Nun'Álvares fez erigir no campo da
triunfante batalha uma capela da sua invocação, «associou-se
logo o Santo à procissão de «Corpus Christi», no dizer do
mesmo autor.
A imagem de S. Jorge que figurava na
procissão de «Corpus Christi».
Salienta, aliás, a solenidade que
atingiram esses actos religiosos, «na falta de melhor
compreensão litúrgica, absorvidos no seu objectivo pelo cerimonial
do Santo inglês, pelo que, se chamavam as «procissões de S. Jorge»,
na forma popular. (7)
No redor de Aveiro, a gente da
região ribeirinha chegou a preterir na designação corrente, e,
porventura, na devoção, o santo tutelar dos nossos exércitos, a
favor de S. Cristóvão, esse bom e imenso gigante que Eça de
Queirós descreve como uma torre que marchava. Chamavam-lhe o
«santo grande» ou crismavam-no ainda em termos mais irreverentes.
Sob o folgado manto da imagem, conduziu-a, por largos anos, um
mesmo homem, de avantajada estatura, invulgarmente possante, e de
bigodaça farta e viril. Por um orifício-respiradouro do cinturão
que cingia as vestes amplas, surdiam, por vezes, intempestivos,
alguns dos ornamentos capilares do transportador do santo
descomunal, trazendo sugestões menos decorosas ao espírito
malicioso dos assistentes. Daí o apodo atribuído, por essa
circunstância, ao bom gigante, e que, entre frouxos de riso, se
dizia à boca pequena, para não ferir susceptibilidades mais
melindrosas.
S. Cristóvão, o «Santo Grande».
(Aguarela de Alberto Sousa).
Em Lisboa, Coimbra e Ovar, entre
outras localidades, competia aos barqueiros apresentar um S.
Cristóvão muito grande. Terra recortada de canais de intenso
tráfego fluvial, Aveiro, provavelmente, cometeria esse encargo aos
mercanteis e outros profissionais da navegação lagunar. A imagem,
quaisquer que tivessem sido os primitivos proprietários ou
responsáveis – nesses longínquos tempos em que nem poderia
sonhar-se-Ihe o patrocínio celeste dos automobilistas – veio a
permanecer na igreja de S. Miguel, junto ao quarto altar do lado
do Evangelho, que era dedicado a S. Sebastião. Só após a extinção
da freguesia daquele nome, foi transferida para S. Domingos,
quando, em 1835, este templo se tornou sede da paróquia citadina
de Nossa Senhora da Glória.
A municipalidade, movida decerto
pelo facto de a procissão ser feita a suas expensas, teria
reivindicado a propriedade da imagem, em 1867. Por falta de segura
convicção desse direito ou por desinteresse cremos que desistiu
desse propósito. Refere-se ao facto uma carta do então vigário
geral da diocese – o futuro e virtuoso bispo de Évora, D. José
António Pereira Bilhano –, que adiante transcrevemos.
A imagem a que nos vimos referindo
foi banida da soleníssima procissão, pelo menos em dois anos. O
vigário geral substituto, em exercício, no ano de 1879, Dr. Manuel
Baptista Cunha – que viria a ter as dignidades do arcebispo de
Metilene e de Braga – em ofício ao presidente do município, com
data de 6 de Junho, faz notar que a incorporação da agigantada
figura de S. Cristóvão no afamado cortejo litúrgico «embora
fosse noutro tempo muito edificante, não excita hoje a devoção dos
fiéis, nem é próprio (tal uso) da solenidade e decência daquele
acto religioso», e comunica
/ 43 / à referida autarquia que
decidira «não permitir que a dita imagem seja de ora em diante
conduzida na procissão, sem contudo obstar a que ela fique exposta
à veneração pública, na igreja de Nossa Senhora da Glória, como
nos anos anteriores se tem praticado».
(8) Estava, porém,
muito enraizado o costume e devem ter-se reiterado as instâncias
junto das autoridades eclesiásticas para consentirem no reatamento
da tradição, tanto mais que o S. Cristóvão atraía à cidade
avultado número de devotos. Houve, assim, uma solução de
continuidade de dois anos apenas.
Catorze anos mais tarde, um
periódico aveirense, (9) a propósito da festividade do Corpo de
Deus, realça essa costumeira e extensa devoção: «Por isso,
muitas pessoas deste concelho e dos de Ílhavo, Vagos, Ovar e
Estarreja costumam vir aqui no dia de «Corpus Christi», trazer ao
«Santo Grande» broas, regueifas, toucinho e outras dádivas, que no
dia seguinte são distribuídas pelos pobres, levando também as
oferentes parte desses objectos, pois entendem que tais
comestíveis, depois de tocados na imagem de S. Cristóvão, são um
grande remédio para o fastio».
A estas oferendas, que ainda hoje
se efectuam, embora praticamente limitadas à broa, açucarada e com
uma pitadita de erva-doce, na actual Sé onde permanece a
corpulenta imagem, se refere a carta do Dr. José António Pereira
Bilhano, a que já atrás aludimos, e na qual responde à sugestão do
vice-presidente do município para a transferência da mencionada
imagem da igreja paroquial – onde, afinal ainda se encontra – para
a Catedral de então, no extinto e recentemente demolido
Recolhimento de S. Bernardino.
É do seguinte teor esse documento:
IIm.º e Exm.º Snr.
Cumpre-me responder ao officio
de V. Ex.a que tenho a honra de receber com data d'hontem:
Que não posso concordar, nem
annuir a que a imagem de S. Christovão seja conduzida para o
Templo da Sé para ali ser revestida, e ter lugar a oblação do pão,
que no dia de Corpus Christi lhe fazem os fiéis; porque, alem de
dever evitar naquelle templo os inconvenientes que a IIIm.ª Camara
Municipal deste Concelho julga que se dam na Igreja Parochial,
onde a imagem está colocada, e se expõe à veneração do povo no dia
daquella solenidade por ocasião das ditas oblações, e a
perturbação, que esses inconvenientes cauzariam à celebração dos
actos religiosos, que no dia de Corpus Christi se praticam na
Catedral – consta-me que é costume antiquíssimo fazerem-se as
ditas offertas ao Santo na Igreja parochial da Freguesia. e é ao
proprio Parocho, a quem pertence superintender sobre a reverência,
acatamento e respeito que deve haver na sua igreja naquelle, e nos
outros actos que ali se praticam.
Se a IIIm.ª Camara Municipal
entende que tem direito à imagem de S. Christovão, e a regular a
distribuição das offertas a ella feitas no dia da festividade de
Corpus Christi compete-lhe disputar esse direito immediatamente
com o Parocho.
Deus guarde a V. Ex,a – Aveiro
19 de Junho de 1867.
IIIm.º e Ex.º Sr. Vice
Presidente da Camara
Municipal deste Concelho
O Vigário Geral
José António Pereira Bilhano
A procissão de Corpus Christi,
como nas demais localidades, e particularmente em Lisboa, onde
tomava proporções e magnificência excepcionais, era acompanhada,
antigamente, como já assinalámos, por uma figuração extravagante e
burlesca, buliçosa e variegada, que constituía um elemento de
grata recreação do público da época, mas apesar do simbolismo de
alguns dos elementos incluídos no cortejo, não deixava de
representar uma degradação do acto litúrgico em que se integrava.
Uma das figuras era a de um
dragão. Aludiria a uma lenda, com larga representação
iconográfica, que
/ 44 / atribuía a S. Jorge o memorável feito de
haver matado um desses fabulosos monstros, que acossava uma
qualquer cidade da Líbia.
A municipalidade aveirense de 1728
reconheceu, em reunião revestida das praxes e consultas usuais
para as deliberações consideradas de significado invulgar, a
conveniência de proceder a uma decantação da festividade, abolindo
as carnavalescas fantochadas que precediam o préstito.
Transcrevemos, a seguir, integralmente, a acta de reunião
camarária que decidiu eliminá-las na própria indisciplina da
ortografia de escrivão municipal.
Termo de vereaçam de 13 de Mayo
de 1728
«Aos treze dias do mes de Mayo
de mil Sete Sentos e vinte outo anos nesta nobre e notavel villa
de Aveyro e na Caza da Camara della donde estavam em acto de
vereacam o Doutor Juíz de fora e os vereadores Luis pinheiro de
morais e maris e Diogo Luis da Silva Mendes e Luis Pinheiro e
procurador da Camara e ahi praticarão o bem e prol a comum
deferindo a Requerimentos e despachando a peticois de que mandaram
fazer este termo.
Logo foy perposto que na
porSição do Corpo de Deos que Se Costuma fazer nesta villa todos
os annos ha por costume antigo hirem nella huns festejos e danças
tam indecorosas e Rediculas que So Servem de perturbar a devocam
dos fieis quando aquele acto deve ser Selebrado com toda a
veneracam a elle devida e que para se ivitarem Semelhantes uzos ou
abuzos de tais antigualhas que Se chamacem as peSoas principais
desta villa a esta Camara para darem Seo parecer nesse particular
e Sendo chamado a mayor parte da nobreza por todos foy
ineformemente dito que lhes parecia munto justo e aSertado que Se
nem conSentice que na porcicam do Corpo de Deos que se há de fazer
este anno na Igreja matris desta villa foce as danças e figuras
costumadas como heram pellas Serpe e drago cavalinhos, fuscas,
jucalheiras mouriscas e Seganas e todas as mais dancas Costumadas
por Ser tudo couza munto emdecente e jocoza que diverte a devocam
dos catolicos que a experiencia tinha mostrado que nas principais
Sidades e villas deste Reino se avia impedido na dita porcicam
semelhante uzo e Redecularia e que lhes parecia munto louvavel que
este Senado empedice os ditos festins dancas e mais figuras nam So
este anno mas que se determinacem para acordar para os mais anno e
que os ofeciais e mais peSoas que heram obrigadas a dar os ditos
pellas dancas e mais festins ficacem obrigados a cõcorrer com
outras couzas decentes para mayor culto de Deos e aceyo da
porcicam para Se fazer com mavor solenidade e que este Senado
podia Repetir as tais couzas Como milhor lhe parecece a vista do
que acordaram, digo, lhe parecece que este Senado poderia fazer
reforma dos festins e dancas como milhor lhe parecece do que fiz
este termo que aSsignaram. E eu Andre Botelho deça Telles escrivão
da Câmara o escrevi».
O costume antigo, como se
verificará, parece ter sido cada freguesia fazer a sua procissão
do Corpo de Deus, embora as três demais se não revestissem do
brilho e da grandiosidade da que era organizada na matriz.
Tomariam, essas, talvez, a feição eucarística que hoje tem essa
função religiosa, pois não encontramos notícia de que nelas se
incorporassem imagens, como sucedia na saída de S. Miguel, e
percorriam um itinerário restrito, pelas imediações do templo
respectivo.
Rangel de Quadros, com efeito,
menciona uma reunião conjunta das irmandades do Santíssimo
Sacramento das freguesias da Vera Cruz e de Nossa Senhora da
Apresentação, em 24 de Agosto de 1710. Aí acordaram que «ambas
iriam às procissões de Corpus Christi das mesmas freguesias»,
além de tomarem outros mútuos compromissos.
Mais tarde, em Maio de 1871, a
irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia do Espírito Santo
enviou uma carta à sua afim de S. Miguel, notando que as
confrarias congéneres das outras duas paróquias citadinas «viviam
em tão boas relações, que era constante aquela civilidade, união e
harmonia com que se davam recíproco amor e acompanhavam as funções
públicas, que, anualmente, se costumavam fazer em ambas as igrejas.»
Idêntico procedimento propunham à
arqui-confraria da matriz, que deu a sua anuência à sugestão,
desde que a proponente tomasse parte também nas festas da igreja
de S. Miguel, particularmente nas do Corpo de Deus e de Nossa
Senhora da Graça.
Entretanto a colaboração deve
ter-se estendido às quatro freguesias da cidade. Somos levados a
essa suposição por um incidente registado em 1800.
No dia 25 de Junho desse ano, a
irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia do Espírito Santo
reuniu em massa, com a presença do pároco encomendado e sob a
presidência do Juiz, Manuel Simões Maio, exprobando uma insólita
atitude da confraria da freguesia da Apresentação, com a qual
resolveu cortar relações.
No termo lavrado após essa magna
reunião relatava-se que, havendo a aludida confraria «convidado
esta irmandade para tomar parte na sua procissão de «Corpus
Christi», no dia do Coração de Jesus, esta não só acedeu e
satisfez àquele convite, mas também emprestou alfaias e paramentos
para aquela festividade».
Esperava, naturalmente,
reciprocidade de atenções. Quando, porém, no segundo domingo de
Julho – data em que promovia, a seu turno, a procissão de «Corpus
Christi», lá no templo de Cimo de Vila – se dirigiam
/ 45 / os
seus mordomos, cumprindo as regras pragmáticas das relações entre
as corporações desta natureza, à igreja de Nossa Senhora da
Apresentação «para acompanharem os seus convidados para a do
Espírito Santo, e para eles aqui se incorporarem no respectivo
préstito, acharam fechadas as portas daquele templo». Para
maior espanto e mais grave vexame, o que mostrava premeditação
revoltante, nem viv'alma toparam, que desse uma explicação.
Redobrado motivo para se sentirem gravemente afrontados com essa
grosseria era ainda «não constar que se houvesse praticado um
facto como este desde que em Aveiro existiam as quatro freguesias».
Aspecto da antiga procissão de «Corpus
Christi».
O desentendimento, originado
provavelmente por qualquer prurido de precedências não
respeitadas, veio a sanar-se dez anos mais tarde. Congraçadas as
duas confrarias, em 29 de Julho de 1810, assinado um termo de
reconciliação, já «cagaréus» e «ceboleiros», em muitos outros
ensejos desavindos, fraternalmente tomaram parte na procissão de
«Corpus Christi» de Nossa Senhora da Apresentação.
Com a vinda para Aveiro de um
regimento de cavalaria, a procissão ganhou renovado fausto. No ano
de 1893, para apenas nos servirmos de um relato da imprensa da
época, (10) a imagem de S. Jorge, a cavalo, como a regra impunha,
era acompanhado pelo pajem habitual, «precedida por alguns
cavalos ornados com fitas e talizes» e seguida por um numeroso
contingente daquela arma.
Se as irmandades – a quase
totalidade das existentes na cidade e quantas era habitual
participarem nesse acto religioso – apresentaram largas e
aprimoradas representações no desfile processional, outro tanto
não se verificou, se exceptuarmos a Câmara, que se fazia
acompanhar do seu estandarte, com a generalidade das «autoridades
e funcionários, que por lei tinham obrigação de o acompanhar, mas
não quiseram dar-se ao incómodo de o fazer». Os tempos agora
eram outros e não se compadeceriam com os rigores que apontamos em
referência a 1807.
A título de curiosidade,
lembraremos que já nesse ano, uma das duas bandas que tomaram
parte na procissão foi a do Asilo-Escola – instituição que agora,
sob a denominação recente de Internato Distrital, se encontra a
cargo da Junta Distrital de Aveiro – mas que a orquestra dessa
casa de assistência colaborou pela primeira vez numa festa,
precisamente na do Corpo de Deus, na Sé de então, passados dois
anos, a 13 de Junho de 1895. Nessa data, e na procissão, estrearam
também os internados os seus fardamentos.
Para rematar estas notas sobre a
procissão de «Corpus Christi», anotaremos passageiramente que a
afluência de forasteiros, nessa altura e nos anos anteriores e
subsequentes, era muito avultada, e que o povo da beira-marinha,
com descantes e danças, imprimia à cidade vivíssima animação.
(11)
S. SEBASTIÃO
Como atrás ficou apontado, em 20
de Janeiro, realizava-se a festa em honra de S. Sebastião, com a
presença obrigatória da edilidade. E, como igualmente já
referimos, na velha igreja de S. Miguel era dedicado ao venerado
mártir o quarto altar do lado do Evangelho, a que, aliás, a Câmara
chamava seu. (12) Aí existia uma relíquia do mesmo santo, guardada
em primoroso cofre que tinha três chaves. conservadas na posse,
respectivamente, do pároco da igreja, do juiz de fora e do
procurador da cidade.
Essa relíquia, a que com tanto
apego dirigiam as suas preces os crentes da vila, e depois da
cidade, nas ocasiões em que doenças contagiosas dizimavam a
população, haveria sido uma oferta feita à matriz aveirense,
segundo uma tradição antiquíssima e imprecisa, por D. João III ou
D. Sebastião. Rangel de Quadros
/ 46 / opina, com lógica verosimilhança,
que se a generosa dádiva fora de um daqueles monarcas, se deveria
atribuir ao primeiro, pois durante o seu reinado, em 1524, sofrera
Aveiro, em proporções flageladoras, os efeitos da peste que
grassou pelo país. Aliás, a identidade onomástica, na incerteza.
não deixaria de sugerir um gesto de magnânima simpatia do segundo.
Apenas nesse dia a preciosa
relíquia, com a intervenção indispensável dos três claviculários,
era retirada do altar para receber as demonstrações de veneração
dos fiéis. Tanto dentro do templo como ao longo do itinerário do
préstito se repetiam as preces, com que, nos velhos tempos em que
se não dispunha dos meios profiláticos e terapêuticos da nossa era
dos antibióticos e quejandos inimigos dos contágios, nas horas
lancinantes das pestenenças mortíferas, a assolada população local impetrava a intercessão do Mártir.
Imagem de S. Miguel, que pertenceu à
igreja da matriz da mesma
invocação e hoje se encontra na igreja paroquial da Vera Cruz.
No ano de 1857, já demolida há
mais de dois decénios, a igreja de S. Miguel, de onde, como vimos,
saía esta procissão, os devotos de S. Sebastião resolveram fazê-la ressurgir. A festividade realizou-se na capela de S. João
Baptista – que era situada no Rossio e veio a ser demolida em
1911. Pretendiam, assim, «dar um testemunho público da sua devoção
para com aquele glorioso Mártir, cuja protecção invocaram nos
calamitosos dias em que nesta Cidade grassou a epidemia da cólera-morbus».
Em nome da comissão promotora, o
cirurgião Manuel Martins de Almeida Coimbra convidou a Câmara
Municipal a assistir às cerimónias, de acordo com o «costume mui
antigo e sempre usado e mandado observar nestes Reinos por
pragmática do Senhor Rei D. Sebastião». E não só esperava a
presença da vereação em cumprimento dessa determinação régia, mas
também, digamos, por uma obrigação moral. Compareceria, e esse
facto seria ainda mais imperativo, «no desempenho dos votos dos
habitantes deste Município (que a IIm.ª Câmara representa) os
quais naqueles dias de luto e aflição pronunciaram o nome daquele
invicto Mártir como seu protector para com Deus, a fim de este
Divino Senhor fazer cessar aquele flagelo».
S. MIGUEL
O orago da igreja matricial tinha,
a 29 de Setembro, a sua festa anual. Revestia-se da maior pompa,
como é compreensível, e já na véspera havia vistosa iluminação,
tocava a música – porventura o modesto conjunto de «gaiteiros»,
porque não se dispunha, nessa época, de melhor – e queimava-se
fogo de artifício.
No dia próprio, além das
cerimónias de culto interno, em que decerto se capricharia, uma
procissão, cuidada com o maior zelo, percorria as principais ruas,
engalanadas para a circunstância.
Os padres da Colegiada tinham
obrigação de assistir à festa do patrono do templo sem receber
qualquer remuneração. Era um dever inerente
à função – uma inalienável homenagem a S. Miguel.
ESPÍRITO SANTO
Na igreja paroquial do Espírito
Santo existia uma confraria dessa mesma invocação, porventura
anterior à criação quinhentista da freguesia, uma vez que o
templo. embora até então de mais reduzidas proporções, fora
erguido anteriormente.
A festividade de maior realce que
neste se realizava era, verosimilmente, a do próprio Espírito
Santo. A luzida festa constava de missa e exposição solene,
sermão, de manhã e à tarde. e procissão, que estendia o itinerário
/ 47 / até a algumas das principais ruas
da contígua freguesia de S. Miguel.
No pomposo cortejo participavam
não só os mordomos desta irmandade, mas também os irmãos das
confrarias desta paróquia e da matriz de S. Miguel, e ainda os
monges dominicanos, cujo convento se situava na área da freguesia
e recebia, para esse efeito, um donativo de 1 200 reis.
Numa charola seguia o busto do
Espírito Santo, conduzido, em regra, «por indivíduos que não eram
irmãos, mas a quem, nessa ocasião e para esse fim, era permitido,
e até obrigatório, o uso de capas, que hoje se chamam opas».
A procissão era acompanhada por
«gaiteiros», que também tocavam na noite do sábado anterior, no
adro da igreja, onde se acendiam fogueiras e havia iluminações. A
remuneração atribuída ao agrupamento musical por participar nas
duas funções, até aos fins do primeiro terço do século XVIII,
reduzia-se a uns magros 1 400 reis.
NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
Havia na igreja de Nossa Senhora
da Apresentação uma confraria desta invocação e que era a de maior
importância depois da do Santíssimo Sacramento. A devoção pela
padroeira aliás, remontaria a tempos anteriores à edificação da
igreja paroquial, pois já na primitiva sede da freguesia, a capela
de S. Gonçalo – ou de S. Gonçalinho, como é de uso local chamar-se-lhe – vinha o costume de celebrar com solenidade e luzimento a festividade em sua honra.
Rangel de Quadros, perdidos já os
livros mais antigos da corporação, só lhe topou referência a
partir de 1667, ano em que Maria Gomes de Reales e Helena da Cruz
Geralda, donzelas, filhas de Silvestre Gomes, naturais da
freguesia e nela moradoras, testavam os bens, depois da morte de
uma irmã, Isabel Mendes Reales e do marido desta, o licenciado
António Leitão, que ficavam usufrutuários, a esta confraria.
Esta subsistiu largo tempo à
extinção da freguesia e, em 7 de Novembro de 1872, o insigne
aveirense Manuel José Mendes Leite, na altura governador civil do
distrito, aprovou-lhe actualizados estatutos.
A festividade anual de 2 de
Fevereiro, a Nossa Senhora da Apresentação, ou das Candeias, até à
entrada do século corrente, consistia na distribuição de velas aos
sacerdotes e membros da confraria, e procissão, no adro da igreja,
«durante a qual se cantava o versículo «Tu es lumen», a preceder a
missa; e, à tarde, sermão, Ladainha e Magnificat».
Anteriormente à fusão das
freguesias de Nossa Senhora da Apresentação e da Vera Cruz, numa
só com esta denominação, efectuava-se uma procissão, com a participação não só da
respectiva irmandade, mas também das do Santíssimo Sacramento de
ambas aquelas paróquias.
O itinerário compreendia as
principais ruas desta zona urbana e estendia-se até ao cruzeiro da
igreja da Vera-Cruz, onde dava volta.
O cruzeiro elevava-se de uma
escadaria rectangular, com três degraus em cada lado, entre as
actuais ruas de Manuel Firmino e do Gravito e perdurou até 1873,
altura em que. no seu lugar, veio a ser erguido um chafariz –
demolido, a seu turno, há cerca de três lustros, depois do
estabelecimento da rede de fornecimento domiciliário de água.
A imagem de Nossa Senhora das
Candeias, que figurava na procissão, foi colocada, em Março de
1862, numa peanha do lado do Evangelho da capela mor da igreja de
Vera-Cruz, em substituição de outra imagem que dali fora retirada,
alguns anos antes, por ser considerada de mesquinhas proporções.
A transferência para aquele templo
justificava-se não só com a extinção da freguesia, mas
principalmente com o facto – aliás dela decorrente
– de o aludido
cortejo ter persistido com regularidade apenas até 1853. isto é,
apenas dezoito anos para além da fusão das duas paróquias.
Depois desta data somente voltou a
realizar-se em 1859, por diligência de um fervoroso devoto de
Nossa Senhora da Apresentação, chamado Domingos da Silva Couto.
BULA DE SANTA CRUZADA
Por um convite subscrito pelo
vigário-geral, Dr. José António Pereira Bilhano, verificamos que a
publicação da Bula de Santa Cruzada foi celebrada ainda no domingo
16 de Dezembro de 1960.
A procissão saiu pelas 2 horas da
tarde, da igreja paroquial de Nossa Senhora da Glória e recolheu à
Sé, onde foi pronunciado o competente sermão.
As solenidades, como era
tradicional, esteve presente a edilidade.
NOSSA SENHORA DAS AREIAS
Não só se lhe perdeu o costume,
mas quase de todo caiu no olvido a procissão de tão acentuado
carácter regional, que, ao longo da ria, com a alacridade
resplendorosa da luz outonal, da garridice das opas e bandeiras e
das jubilosas estridências das filarmónicas, se efectuava em honra
de Nossa Senhora das Areias. Saía, esse préstito singular, do
Canal Central – a velha Ribeira da toponímia de antanho –, talvez
das primeiras linguetas a seguir à ponte da Praça, pelo menos no
último quartel do século passado e. em barcos
/ 48 / engalanados,
dirigia-se a S. Jacinto, com múltiplos sinais de alegria e
veneração.
A modesta praia piscatória, que
apenas as componhas animavam por alturas da safra da sardinha. e a
que Manuel Firmino introduziu os primeiros aspectos progressivos,
estabelecendo um meio de transporte sobre carris para o peixe da
sua empresa, no inverno era uma povoação pouco mais que erma.
Marques Gomes escreveu mesmo. algures, que, pelos meados de
oitocentos, «a praia era habitada por pescadores da nossa
beira-mar (e por essa designação se deverá entender o bairro
aveirense que ainda hoje assim denominados) nos meses de pesca, mas nos
restantes apenas por um guarda, a quem o Estado pagava o salário
de 120 réis diários».
Nossa Senhora das Areias
A capela daquela invocação
– neste
caso com inteira propriedade etimológica muito ajustadamente
designada como ermida
–, no meio do areal quase deserto, não
oferecia, durante a quadra invernosa, condições de segurança para
evitar a entrada de qualquer larapiozito afoito e menos respeitoso
na solitária edificação sagrada.
Já no século XVI se tomavam
precauções para a eventualidade de algum furto sacrílego. Em 5 de
Julho de 1549, com efeito, compareceu perante o provedor da então
vila de Esgueira, Dr. Brás Cardoso, o padre Francisco de Pinho,
procurador de Fernão Barbosa, e apresentou-lhe «um frontal de carrim em folha branca e uma saia para a imagem de Nossa Senhora,
(das Areias) do mesmo carrim», e ainda uns picheis de estanho e
uma camisa de algodão, branca, que foram confiados à guarda do
escudeiro André Pires, «para que o mandassem pôr na dita ermida às
festas para serem de certo onde se conservassem; doutra maneira se
poderiam furtar». (13)
Os referidos objectos foram quatro
anos mais tarde entregues pelo seu depositário, André Pires, na
presença do mencionado provedor, para o mesmo fim e com idênticas
obrigações, aos mestres pilotos Gomes Afonso e Mateus Gomes, ambos
moradores em Aveiro, que tomavam também a incumbência de mandar
beneficiar a imagem e reparar a capela. Ficou por fiador dos dois
mareantes aveirenses o escudeiro fidalgo Simão Varela, residente
em Esgueira.
Vem talvez a propósito observar
que Fernão Barbosa, com as mais seguras probabilidades, era o
filho do famoso humanista aveirense Aires Barbosa, o «mestre
grego», aquele a quem o pai insigne e circunspecto considerava
«muito mancebo em seu viver», e que, porventura, seria de
temperamento pouco propenso a aceitar cuidados contínuos. A
fortalecer esta conjectura vem a circunstância de André Pires
figurar como testemunha no instrumento de aprovação do testamento
do notável professor da Universidade de Salamanca e, depois. perceptor do cardeal
infante D. Afonso, irmão de D. João III, e de Simão Varela
aparecer quer no instrumento de declaração do mesmo testamento,
quer no termo da respectiva abertura, no dia do falecimento do
Mestre Aires Barbosa, ocorrido a 20 de Janeiro de 1540.
(14)
Permaneciam as imagens havidas
como de menor valia e que, assim, não despertavam a falta de
escrúpulos e a cupidez de algum rapinante fortuito. Porque,
segundo parece, nem nas caixas das esmolas lobrigaria sequer um
real. Moeda que lá caísse pouco demorava.
Ao guarda atento logo lhe dava o
faro ao cofre ou a alguma pratasita miúda, ou qualquer sexto
sentido, e pouco depois estava a disputá-la ao jogo com a imagem
do pobre S. Jacinto, muda e queda, parceira inocente de uma
partida do trinta e um. O trapaceiro guarda, coonestando o vício e
a cobiça com o ditado popular segundo o qual quem cala consente,
inquiria da imagem se desejava que lhe virasse mais uma carta. E,
ante o seu silêncio, como se o próprio santo, indiferente à
velhacaria, lha houvesse rogado, logo lha dava, até rebentar e,
assim, em conformidade com as lícitas regras, retorcidas, ficar
despojado do último ceitil das piedosas oblatas.
Mantinham-se, pois, na ermida, ao
longo de todo o ano, as imagens mais toscas ou mais despidas de
adornos valiosos. A de Nossa Senhora das Areias,
/ 49 / porém, só
no período da festa anual se expunha na capela, e logo se
trasladava para Aveiro, em melhor recato. Durante algumas décadas,
guardou-a não sabemos a que título, na sua casa da Praça do Pão, situada onde hoje se encontra o
Arcada Hotel – o comerciante Francisco Elias Gamelas, um homem
respeitado, de imponente figura, que nesse encargo punha grande
desvelo.
Essa imagem, na data da
festividade anual da praia de S. Jacinto era para ali
transportada, num espectacular cortejo fluvial, que, há cerca de
um quarto de século, se tentou restabelecer, mas não passou além
de duas inexpressivas tentativas de ressurgimento de uma tradição
sem dúvida merecedora de revivescer.
A própria romaria, aliás, teve
soluções de continuidade, mesmo na centúria passada. Foi
restabelecida, depois de uma longa interrupção, no ano de 1860. Um
cronista da época, que assinava Júlio Sand
(15), refere que mesmo a
capela estivera relegada a um abandono que lhe causou ruinosos
danos. E acrescentava: «A Senhora das Areias» parecera riscada do
catálogo das romarias. Havia só saudades nos que ali haviam
passado aquele dia e noite, entre folias e folguedos, sobre aquele
solo de areias».
Naquele ano, todavia, mercê da
iniciativa e solicitude da Junta de Freguesia da Vera-Cruz e em
especial do cirurgião Manuel Martins de Almeida Coimbra – aveirense
de que já falámos e a que se não podem negar valor e serviços, mas
se não deve esconder a perniciosa e odienta acção, a que a
malquerença política não era estranha, contra Luís Gomes de
Carvalho, o benemérito engenheiro a quem se ficou devendo a
abertura da barra nova – reatou-se a tradição, e com um brilho inatingido até então.
Por uma descrição de um jornal da
época (16) se poderá avaliar a beleza de que se revestiu o cortejo
religioso pela ria além: «A procissão ia com toda a decência, e
em alguns pontos do trânsito, como no acto do embarque,
queimaram-se centenas de foguetes, enquanto na ria retumbava o
harmonioso eco das orquestras. A gente aglomerada em toda a
circunferência do cais; os barcos todos enfeitados e repletos. uns
já em curso outros preparando-se para isso; aqui o barco em que ia
colocada a imagem, guarnecido de flores e ornatos, logo adiante o
dos remeiros, uniformemente vestidos, mais além os ministros da
religião e as diferentes irmandades, cada corporação com a sua
cruz alçada – tudo isto oferecia um espectáculo atraente e
maravilhoso».
E depois de qualificar como
verdadeiramente tocante o acto do embarque, o articulista descreve
a festividade em S. Jacinto, com particular referência ao sermão
do padre José Joaquim de Carvalho e Gois – futuro vigário geral da
diocese – e regista a presença de seiscentos a setecentos barcos
– conjunto hoje praticamente impossível de reunir – numa extensão
de cerca de um quilómetro, e uma concorrência de romeiros orçada
entre oito e dez mil pessoas.
ECCE HOMO
A procissão do Senhor Ecce-Homo
era organizada anualmente, em Quinta-Feira Santa, pela Santa Casa
da Misericórdia, e perdurou até há pouco mais de um quarto de
século.
Os irmãos envergavam opas negras,
e, além do andor. com a excelente imagem que se encontra no
retábulo do lado do Evangelho e, até fins do século passado,
segundo vemos referido, estaria na sala do despacho daquela
instituição
– presentemente a Biblioteca Municipal
– figurava
ainda um painel emblemático da instituição que, nos últimos anos,
era conduzido pelo Leandro, um serventuário da Misericórdia,
simplório do entendimento, mas extremamente cioso da honra que lhe
conferia esse encargo.
O Senhor «Ecce-Homo», da Igreja da
Misericórdia.
À escultura, talhada em madeira de
alecrim, e sem dúvida de apreciável merecimento artístico, atribuía Marques Gomes uma existência remontante ao século
/ 50 / XVI. Fazia-se eco da tradição
–
similar de outra que corria sobre uma imagem da mesma natureza
existente na matriz de Caminha
–
de que houvesse sido trazida da Inglaterra, quando ali se
instituiu o protestantismo como religião oficial.
Acrescenta, todavia, que não é
fácil fazer juízo seguro sobre a sua origem, inclinando-se, apesar
de todas as dúvidas, a que seja de proveniência italiana. O
operoso e erudito escritor aveirense refere que já no século XVII
tomava voga a mencionada tradição, afirmação que não documenta,
mas infirmaria a opinião de Nogueira Gonçalves,
(17) que a
qualifica de «pouco comum, impressiva e devocional», mas a
considera dos fins de setecentos, do barroco inicial.
Esta imagem impressionante
inspirava à gente da cidade uma grande devoção e nem só em
Quinta-Feira Santa saía procissionalmente, pois, segundo o mesmo
fecundo historiógrafo local, os aveirenses para ela recorriam,
quer quando as epidemias ou a míngua resultante de adversos
períodos meteorológicos os afligiam, quer nas ocasiões em que
sofriam as consequências de algum acontecimento bélico. «Nessas
ocasiões a imagem é levada pelas ruas e praças da cidade, e o
perigo afasta-se»
– escreveu Marques Gomes num periódico local.
Anda recordada a circular de D.
António José Cordeiro, segundo bispo de Aveiro, de 5 de Agosto de
1808, em que, rejubilando com a expulsão das tropas napoleónicas
comandadas por Junot, ordena uma «procissão de penitência «que
sairá da nossa Catedral, sendo levada nela a Devotíssima Imagem do
Senhor Ecce Homo, que se encaminhará à Igreja do Real Mosteiro de
Jesus, aonde se venera o corpo da Bemaventurada Princesa Santa
Joana, a quem já em o princípio da nossa consternação havíamos
tomado por Medianeira para com o Pai das Misericórdias».
A imagem do Senhor «Ecce-Homo» na
procissão de Quinta-Feira Santa.
A essa procissão, a realizar no
dia 7, deveriam assistir os párocos com o seu respectivo clero, os
prelados dos conventos locais com os seus religiosos, e os fiéis
da cidade, que seriam exortados a fazer penitência, jejuns,
esmolas, mortificações, e a dirigir a Deus, de todo o seu coração,
fervorosas súplicas e orações.
Marques Gomes refere noutro
escrito, (18) especificadamente, a procissão que, em 20 de
Setembro de 1855, na altura em que Aveiro e o seu redor estavam a
sofrer os calamitosos efeitos da cólera-morbus, trouxe à rua a veneranda imagem. «O
préstito – escreve
– parecia mais um saimento do que uma
procissão».
Relata, nesse ensejo, o facto
então verificado, de um aveirense atingido pela peste, Manuel de
Pinho Vinagre da Loura, «já em artigos de morte» ter
empenhadamente solicitado que a imagem do Senhor Ecce Homo se
detivesse alguns momentos junto do tugúrio onde penava. E a
narração conclui: «Os levitas entoaram o «Miserere mei Deus», o
povo prostrou-se implorando do Altíssimo a vida daquele que com
tanta fé confiava na Providência. Caso raro! O homem, só,
abandonado da medicina, resistiu ao contágio e ainda hoje,
(1875) vive».
Painel com Nossa Senhora da
Misericórdia, que se incorporava na
procissão de Quinta-Feira Santa.
Colhe-se ainda no mesmo
inesgotável aveirógrafo a informação de que «o rico manto de
veludo carmesim que lhe cai dos ombros (à imagem a que vimos
aludindo) foi-lhe oferecido pelo negociante Francisco José
Ferreira, a 12 de Abril de 1813». Este comerciante local foi o
depositário de ouro e prata das igrejas de que Junot, como no
resto da país, se apoderou. Teria guardado para si uma boa parte
«de um grande número de arrobas de prata que lhe foram entregues»
e, cinco anos mais tarde, «mordendo-lhe a consciência, quis aquietá-la dando um manto de veludo bordado a ouro ao Senhor Ecce
Homo da Misericórdia».
(19)
O itinerário desta procissão, que,
nos últimos tempos se estendia até à igreja do Carmo, era de
extensão muito reduzida até aos princípios do século XVII. Da
igreja da Misericórdia seguia até ao convento de S. Domingos
–
naturalmente pelas ruas Direita e de Nossa Senhora, hoje,
respectivamente, dos Combatentes da Grande Guerra e de Santa Joana Princesa e, no regresso, pela rua da Cruz e o Terreiro ou Rossio
das Carmelitas
– integrados uma e outra na agora
/ 51 / chamada praça do Marquês de Pombal
–, tomando pela então chamada rua Nova e hoje denominada do
Capitão João de Sousa Pizarro
– e, prosseguia pela de Santa
Catarina ou do Açougue
– após a implantação da República com a
designação toponímica de rua de Trinta e Um de Janeiro
– para
recolher ao templo de onde saíra.
Em 1618, deu-se a coincidência de,
simultaneamente, ser pároco da freguesia da Vera-Cruz e provedor
da Santa Casa da Misericórdia frei Gaspar de Couros Camelo, que
Rangel de Quadros presumia nascido em Aveiro e na referida rua
Nova, e, sem dúvida, para ter sido investido naquele qualificado
cargo da instituição beneficente seria, como o mesmo autor aventa,
pessoa grada e influente na então vila de Aveiro. Frade professo
da Ordem de Avis desde 1600, servira na igreja de S. Miguel como
coadjutor, beneficiado e vigário, durante vários anos, e na de
Vera-Cruz sucederia ao primeiro reitor desta freguesia, frei
António Vaz, a partir de 1604 ou qualquer dos anos imediatos.
Frei Gaspar, reunindo as duas
qualidades e delas se valendo, procurou, passe a expressão, chamar
a brasa à sua sardinha, e levar esta procissão, a partir do ano
referido de 1618, à igreja que paroquiava. Apresentava diversos e
convincentes argumentos na justificação do seu desejo. A igreja da
Vera-Cruz
– ou de Santa Cruz, como através dos tempos, também foi designada era então o templo de maior sumptuosidade da vila e
estava incluída no percurso de outras das mais importantes
procissões anuais, como as de «Corpus Christi», do Santíssimo
Sacramento, de Santa Isabel e do Anjo Custódio. Por outro lado,
muitas donzelas a que os costumes do tempo vedavam a saída à noite
– pois era nocturno o impressionante cortejo, a que o bater cavo e
cadenciado das matracas acentuava o ambiente de lúgubre dramatismo
–, e muitos doentes retidos nas suas moradias estavam impedidos de
assistir ao desfile religioso. Sucedia mesmo que, dada a
exiguidade do itinerário, a procissão não podia tomar grande
extensão e, assim, alguns irmãos, quer residentes na vila quer
moradores nos subúrbios, se viam constrangidos a nela não
participar. E acrescia ainda que a generalidade da população
aveirense, cuja devoção pela imagem do Senhor «Ecce Homo», (ou
«Senhor da Cana Verde», na designação popular) era, como já
notámos, muito fervorosa, manifestava empenho em que o préstito
alongasse o percurso até à paroquial da Vera-Cruz.
Na irmandade da Misericórdia nem
todos os membros se deixaram vencer pelas ponderosas razões
apresentadas pelo provedor
– que, mesmo não o dizendo, não
deixariam de considerar parte suspeita, a pugnar pelos «cagaréus»
e a puxar para a Vila Nova, o que sempre fora exclusivo da zona de
intra-muros.
Objectivavam, os divergentes, que
o alongamento do itinerário aumentava consideravelmente o
dispêndio da cera e protelava o recolher da procissão para
demasiado tarde – as onze horas (hoje diríamos vinte e três) ou a
meia-noite – tornando-a estafante, pois saía ao fim da tarde,
pelas seis
– isto é, segundo o que presentemente está fixado,
cerca das actuais dezanove e meia.
Como resultado do estabelecimento
de duas intransigentes facções dentro da irmandade, no ano
seguinte, quando se deu cumprimento à resolução de levar o
préstito até à igreja da Vera-Cruz, registaram-se alguns
lamentáveis desacatos.
Os desavindos, não cedendo da sua
opinião, levaram o diferendo até à corte
–
então em Madrid, pois se encontrava o país sob o domínio
castelhano.
O processo arrastou-se, ao longo
dos anos, de estância em estância, protelado
com repetidos embargos.
A decisão final, favorável a Frei
Gaspar e seus parciais, que assim viram oficializados os seus
desejos, veio a ser dada em 21 de Julho de 1627.
NOSSA SENHORA DA GRAÇA
Na «Descrição das Igrejas e
Capelas da Freguesia de S. Miguel, existentes na segunda metade do
século XVIII», redigida por Frei Félix Mendes Ramos,
(20) vem
registado que «o segundo (altar) colateral do lado da Epístola he
dedicado a Nossa S. da Graça, imagem de vulto inteira, e perfeita,
colocada em retabolo dourado.».
/ 52 /
Com esta invocação fora instituída
uma confraria, à qual o mesmo documento, que o Sr. Dr. Ferreira
Neves, com segurança, considera escrito entre 1760 e 1775, atribuía uma existência trissecular. Não andaria muito afastado da
verdade, pois já, em 1 de Março de 1506, o Papa Júlio II concedera
cem dias de indulgência aos membros dessa corporação que
visitassem o altar de Nossa Senhora da Graça, depois de se haverem
confessado e terem comungado, no domingo da Ressurreição e a 25 de
Março, 8 de Maio, 25 de Julho e 8 de Setembro. Aliás, refere
também Rangel de Quadres que, em 4 de Outubro de 1539, esta
confraria deu de aforamento, a António Fernandes, em três vidas,
umas casas situadas na rua Direita.
A festa principal desta irmandade,
logicamente, consagrava-se a Nossa Senhora da
Graça. Tinha, todavia, a obrigação de celebrar, ao longo do ano,
ainda as sete seguintes: Dia da Epifania e dias do Santos
Inocentes, com o Santíssimo Sacramento exposto até ao meio dia; na dominga
infra-octavam de «Corpus Christi», com o Santíssimo
exposto todo o dia e procissão; dia de S. Brás; dia de S. José,
dirigida e satisfeita por três oficiais carpinteiros, eleitos
anualmente: dia de S. Pedro, dirigida pela Irmandade Eclesiástica
dos Gloriosos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo;
(21) e dia de Santa
Luzia.
Os estatutos, elaborados em 1786,
(22) prescrevem com todo o rigor as obrigações da irmandade e
cuidam todos os pormenores meticulosamente, de modo a permitir a
reconstituição bastante minuciosa dessa festividade. Previa-se e acautelava-se
com minudência, «para ser evitada toda a confusão,
dúvida e excesso».
Celebrava-se, assim, no dia
dedicada à Natividade de Nossa Senhora, uma missa cantada «a qual
terá no citar presbítero, diácono e subdiácono, paramentados,
ministrando-lhes um turiferário e dois ceroferários, compostos de
suas sobrepelizes, e no coro cantarão a mesma missa quatro
clérigos, de qualquer ordem que sejam, contando que tenham boas
vozes e compostas, conforme a arte lhes ensina, e ornados de suas
sobrepelizes». Havia sermão e exposição do Santíssimo Sacramento
até à tarde, cantava-se o «Terço à Senhora, havendo comodidade, e
no fim deste se distribuíam pelos irmãos, de um e de outro sexo, a
quem à sorte lhes tocar, duas dúzias de rosários». Seguia-se um
sermão e a procissão.
Nesta eram admitidos até vinte
padres, além dos que eram portadores da cruz, dos castiçais e dos
turíbulos. Dirigia-a um irmão, de zelo e capacidade comprovados,
ou, na sua falta. um padre conceituado como perito na ordenação
destas funções religiosas. Os sacerdotes a que nos referimos
seguiam em duas alas, alinhando pelos ceroferários, que ladeavam o
cruciferário. Aos turiferários, cuja
posição era junto do Santíssimo, competia ir incensando as ruas do
itinerário,
que, na época, não deviam primar
pela exalação dos olores, mesmo atapetadas de verduras aromáticas.
As opas, porque com toda a
probabilidade condiziam com a do juiz, e a cor desta vem
referenciada naquele diploma, eram brancas. Por estipulação
taxativa, o titular daquele cargo não só empunhava a vara
correspondente, mas não podia deixar de apresentar-se com «a
distinção que pedia o seu ofício» nem furtar-se ao pagamento do
pregador da tarde. pois lhe competia essa despesa por muito antigo
costume.
A seis mordomos. em cada ano.
cabiam os encargos com os sacerdotes que acompanhavam a procissão
e, bem assim, os correspondentes às luminárias, fogueiras e demais
manifestações festivas da véspera, à noite.
Acontecia, por vezes, coincidir o
dia da procissão com a festa de Nossa Senhora dos Febres (no
masculino, como ainda se ouve entre a gente da Beira-Mar). Essa
circunstância, com a duplicação das devoções, causaria, em alguma
ocasião, insuperáveis dificuldades para a organização, com a
costumada pompa, daquele cortejo. Era, então, substituído, por
vésperas cantadas, e revestidas de grande solenidade.
José Ferreira da Cunha e Sousa,
referindo-se à imagem de Nossa Senhora da Graça existente na
Igreja de S. Miguel, informa que foi transferida, após a demolição
daquele vetusto templo, para a igreja de S. Domingos, e crismada em Nossa
Senhora da Glória, ficando a ser o orago da freguesia.
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A seu turno, Fr. Félix Mendes
Ramos, já na citada descrição das capelas de S. Miguel, menciona
uma imagem da mesma Senhora, de vulto inteiro e perfeita, com
corda de prata, a qual, na procissão a que vimos aludindo. era
levada em um andor guarnecido de cortinado de matizes com franja e
galão novo (24) e, provavelmente, não seria a mesma, mas uma ou
outra unicamente destinada à procissão.
DOMINGO DE RAMOS
Esta procissão ainda subsiste,
embora alterada, quer com os usos, quer com outras circunstâncias.
Na freguesia da Glória, nos últimos anos, alongou-se o itinerário:
sai da igreja das Carmelitas e dirige-se à Sé. Na da Vera-Cruz,
como naquela sucedia até data recente, não vai além do adro do
templo paroquial. Há oitenta e um anos, a devoção dos Ramos
celebrou-se, não sabemos por que motivo, na igreja da Misericórdia,
e ali se organizou a procissão, também apenas nas imediações da
igreja. Grande número de crianças «sobraçava enormes feixes de
alecrim e outros arbustos – imitando, assim, os filhos de
Jerusalém que. para honrarem a entrada de Jesus Cristo na sua
cidade despojaram as árvores das suas verduras, e de palmas e
ramos de oliveira juncaram o caminho»
– diz um relato da ocasião.
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