Nasceu a 23 de Julho de 1888, no
lugar do Bonsucesso, a quatro quilómetros de Aveiro.
Filho de Manuel Germano Simões
Ratola e de D. Rufina Amália da Gama Souto, era neto pelo lado
paterno do professor Francisco Simões Ratola, figura que marcou
na sua época por uma arejada actividade pedagógica; e pelo lado
materno, era neto do Dr. António Ferreira Souto, de Angeja,
formado em Direito e condecorado com a cruz de Cristo.
Por morte da mãe, transitou com
3 anos para a casa de sua madrinha, viúva do jurisconsulto Dr.
Agostinho Fernandes Melício, que residia na quinta da Boa-Vista,
nas ladeiras de Verdemilho. A essa senhora, que muito admirava,
ficou a dever o precoce contacto com os bons livros da sua
biblioteca e a educação inicial da sua sensibilidade tão rica.
Foi da janela do seu quarto, na Boa-Vista,
que começou a olhar as serras altaneiras
– Arestal,
Talhadas, Estrela, – e a querer percorrê-las, numa curiosidade
permanente, que o havia de levar mais tarde a escrever sobre
elas algumas das suas mais belas páginas.
Entretanto, entrou para o
Seminário onde fez os preparatórios de 1899 a 1904, com
distinções em Geografia e Filosofia.
Em 1904 frequentou o 1.º ano do
Curso Teológico, onde foi aluno de D. João de Lima Vidal, de
Eugénio de Castro, etc.
Abandonou então a carreira
eclesiástica e passou a cursar o liceu de Aveiro, em 1906, onde
evidenciou a sua propensão para a oratória. Em 1909
matriculou-se na faculdade de Direito, em Coimbra.
Eleito às Constituintes de 1911,
foi deputado pelo círculo de Aveiro de 1911-15, interrompendo
por isso os seus estudos em Coimbra.
Como deputado, tratou da
elevação do liceu de Aveiro a central; do pedido, que obteve,
duma 2.ª época de exames para os pilotos; fez reclamações
intensas sobre algumas das estradas do distrito, que percorrera
e achara intransitáveis; combateu a extinção das escolas
normais; trabalhou pela dotação de uma verba ao Museu de Aveiro,
o que conseguiu; interessou-se pela criação duma estação piscícola; pediu a rede telefónica; tratou o problema da
Biblioteca Pública e apresentou o plano da reforma da Escola
Fernando Caldeira, de que foi também professor; apresentou o
projecto de lei para a aquisição dum rebocador para a barra, e
viveu apaixonadamente em intensa campanha jornalística o
problema das suas obras,
– entre outros de interesse económico e
de fomento.
Volta depois à Universidade de
Coimbra. Cursa em Direito o chamado período transitório, com
algumas distinções e frequenta também cadeiras da Faculdade de
Letras.
Começa a advogar em 4 de
Fevereiro de 1919. Interrompe daí a tempo por motivos de saúde,
e vive em
Davos-Platz na Suíça, horas de saudoso apego aos seus
e à sua Aveiro, que exprime nas «Cartas dum Peregrino», em
páginas de requintada beleza.
Em Janeiro de 1927 volta a
advogar. Da sua passagem pelos tribunais ficou conhecido de
todos a correcção de trato, que foi seu apanágio, a honestidade
dos seus processos e o nome que deixou ligado a causas
defendidas em Setúbal e Aveiro, sendo particularmente falado o
seu triunfo em 1958 na defesa dum inocente condenado em 1939 por
crime grave, conseguindo que se obtivesse a confissão do
verdadeiro culpado, que com o primeiro mantinha impressionante
semelhança.
/ 74 /
Muitos mais processos o
notabilizaram, se bem que não fosse um apaixonado pelo Direito.
Apaixonado foi-o pela sua terra, pelo seu distrito, traçando-lhe
o perfil, quando mostrava aos outros o seu folclore Viana do
Castelo lembra certamente Aveiro dessa época, – desenvolvia os
seus aspectos etnográficos, – organizou na cidade e dirigiu dois
cortejos, – (famoso o de 1949) – que muito disseram das
actividades e costumes da região –, ou ainda quando o percorria
em investigações sistemáticas de arqueólogo e de geólogo,
publicando os seus estudos sobre o espólio encontrado, em
infatigável pesquisa. Conhecedor profundo da História
Universal, apaixonaram-no as campanhas napoleónicas e sobre elas
publicou o seu «Waterloo», depois de uma visita feita ao próprio
local das operações, fazendo também da História local e regional
desenvolvido e profundo relato.
Aveiro e a sua ria foram contudo
o seu maior amor.
Da ria, disse ele algures: «...é
um delírio de velas, de luz, de água, de vida!» De Aveiro,
propriamente, sentiu-lhe o pulsar, quando contactava de perto
com a sua gente, numa popularidade irradiante, que o tornou
Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros, presidente
honorário do Clube dos Galitos, etc.
Tornou conhecida a sua terra,
sempre que pôs em evidência a sua arte e a sua paisagem, ou
mostrando sempre e em toda a parte, pela pena jornalística ou
pela palavra fluente, quanto a achava bela e como deviam
descobri-la.
Foi o fundador do Banco Regional
de Aveiro, com António Máximo, em 1920, e dirigiu-o até 1928;
presidiu à Associação Comercial e Industrial de Aveiro e ao
Senado Municipal; foi o primeiro presidente da Junta Autónoma da
Ria e Barra de Aveiro, (em 1921), e promoveu com o engº Sá Melo,
a criação da Comissão de Turismo da cidade. Sobretudo a partir
de 1930, dedicou-se a estudos geográficos e arqueológicos,
explorando castros como os de Cacia, Cristelo da Branca, Arões,
Cambra, etc., estudando várias estações de arte rupestre da
serra do Arestal, com trabalhos que mereceram citações, entre
outros, aos Drs. José Leite de Vasconcelos, Mendes Correia,
Amorim Girão, P.e Eugénio Jaillaye, Dr. João Corrington da
Costa, que em honrosa homenagem deu o seu nome a uma tartaruga
fóssil do cretácico de Aveiro, Rosacia Soutoi, que se encontra
no Museu de Geologia da Universidade do Porto.
Em 1925, nomeado Director do
Museu Regional, por Augusto Gil, então Director-Geral do Ensino,
após a ocupação do cargo por Marques Gomes e Dr. José Pereira
Tavares, ocupou o lugar durante 23 anos, atingindo o limite da
idade em 27-7-1958, depois de o ter ocupado com o maior esforço de
valorização e pugnado pelas obras da sua condigna instalação, o
que lhe mereceu louvores expressos em carta do Eng. Henrique Gomes da Silva, quando
Director-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Ali foi
condecorado em 1932, com a Ordem de S. Tiago da Espada, grau de
Comendador, pelo Presidente da República General Carmona que
veio a Aveiro inaugurar algumas salas do Museu e por proposta do
Ministro das Obras Públicas, engenheiro Duarte Pacheco,
sendo-lhe depois oferecidas pela cidade em sessão pública, no
Teatro Aveirense, as respectivas insígnias, onde foi
calorosamente aclamado e elogiado por Mendes Correia, Querubim
Guimarães e Magalhães Lima, facto a que a imprensa diária da época
deu grande relevo.
Foi ainda Alberto Souto nomeado,
em 1927, Director da Biblioteca Pública, e nomeado para o
primeiro Conselho Municipal de Aveiro. Mais tarde, Vogal
correspondente do Conselho Superior de Belas-Artes, foi também
delegado concelhio da Junta Nacional de Educação, sócio da
Associação dos Arqueólogos Portugueses, da Sociedade Geológica
de Portugal e da Sociedade Portuguesa de Antropologia e
Etnologia. Foi ainda Membro Correspondente da Universidade de
Cultura Tradicionalista de S. Paulo, Brasil, e membro do
Instituto Internacional de Antropologia.
Foi convidado pela Sociedade «Pro-Monte»
de St.ª Tecla para ali proferir uma conferência sobre Neolítico, Chelense e Asturiense; tomou parte em vários congressos, e fez
conferências que ficaram célebres, como a de Talábriga, na
sociedade de Antropologia, no Porto, a da Festa das Beiras, em
1932 na Sociedade de Geografia, de Lisboa, a do Homem e o Barro,
no cinquentenário das Fábricas Aleluia, etc.
Fundou e dirigiu o jornal «A
Liberdade» e colaborou em várias revistas, como a Pátria, o
Arquivo do Distrito de Aveiro, etc.
É vastíssima a sua colaboração
nos jornais diários e nos periódicos locais, onde versou temas
filosóficos, históricos, científicos, culturais e regionais. Em
1956 redigiu e apresentou à Câmara o parecer da Comissão de Arte
e Arqueologia sobre a razão do Monumento a João Afonso de
Aveiro, que lhe mereceu do então Presidente da Câmara, Dr.
Álvaro Sampaio, a classificação de Aveirense número um. Veio a
ser também presidente da edilidade aveirense, – última das suas
actividades públicas
–, de 1957 a 1961.
Publicou, entre outras, as
seguintes obras:
– As Pescarias da Terra Nova na
Economia Portuguesa
– 1913;
– A Educação de Sparta
–
1921;
– Marmitas Eolianas na Serra da
Estrela
–
1922;
–
Origens da Ria de Aveiro
–1923;
–
O Museu de Aveiro - Notícia Sumaríssima
–1926;
–
Joaquim de Melo Freitas - Despedida Fúnebre
–1924;
/ 75 /
– Etnografia da Região do Vouga;
Sobre a criação de um Instituto de Estudos e de Museu Etnográfico com sede em
Aveiro
– 1929;
–
A História, o Drama e Graça da Água
–
1929;
–
A Estação Arqueológica de Cacia
–
1930;
– A Pelagia Insula de Festus
Avienus
–1933;
– Waterloo!... O epílogo da
epopeia napoleónica
–1935;
–
Arqueologia Pré-histórica do Distrito de Aveiro
–1938;
–
Aveiro na obra de Camilo
–1943;
–
Geologia e Geografia do Distrito de Aveiro
–
Blocos erráticos na mesopotâmia da
Beira-Mar ao Norte de Aveiro e Sul de
Cantanhede
– 1949;
– Aveiro (vol. 16 da Colecção A Arte em
Portugal)
–
1952.
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INÉDITO
A PLÁSTICA DAS SENSAÇÕES
De «Notas íntimas», a
publicar
O espírito e o corpo humanos são
como uma argila maravilhosa, rica e variada de tons, que se pode
moldar ao sabor do génio e da arte de quem como eles lida. São
filões complicados que é preciso procurar, seguir, desvendar, no
segredo e no mistério que os envolve. mas onde se descobrem,
procurando, veios dos mais preciosos metais, nódulos radicativos
brilhando como estrelas, nos recônditos da terra, pepitas de oiro
resplendente, gemas magníficas, diamantes excelsos, maravilhas
desconhecidas cheias de magia.
Modelar o barro dum corpo ou dum
espírito, que belo!
Pôr, sobre a roda do oleiro, a
argila divina, a começo informe, hostil, grosseira e depois
fazê-la crescer, tocá-la com os dedos, apertá-la com as mãos,
engrandecê-la, diminuí-la, dar-lhe forma, arrancar-lhe beleza,
apropriá-la, aos nossos desejos, torná-la escrava da nossa
fantasia, torná-la útil, dar-lhe alma e mudar-lhe o corpo,
conservando a mesma matéria, que belo!
Ir acordar sensações
desconhecidas, tocar toda a gama das impressões, dos gostos, dos
prazeres, das sensações agradáveis que existem num corpo ou numa
alma, que belo!
Mãos grosseiras, almas inferiores
ou fúteis não podem descobrir, nem acordar essas sensações e essas
maravilhas! Só o génio que por vezes incarna em nós, inspirado
pelas paixões, o pode fazer. Como um artista contemplando a sua obra, o homem
sente-se envaidecido quando vê que, sob as suas mãos, ou ao
contacto da sua carne, ou sob o eflúvio da sua palavra, do seu
olhar, do seu amor, o barro esplendoroso do corpo duma mulher, da
alma duma multidão ou do espírito dum público que o escuta, o lê,
o atende, ou o segue, se alegra e anima, sentindo um prazer novo
ou uma emoção desconhecida.
É o prazer de Deus criando, vendo
a luz surgir das trevas à sua voz e vendo dos abismos surgir,
movendo-se, palpitando e cantando, a vida gloriosa.
Criar é a paixão
indomável que Deus pôs dentro de nós!
O homem é um oleiro modelando o
barro das sensações!
Alberto Souto
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INÉDITO
NA PRAIA
Estive examinando com uma lupa a
areia da praia. Que coisa bela! As grutas, as cavernas
maravilhosas que ela forma!
Pedras preciosas - cristais
lapidados, foscos, quebrados, brilhantes; lâminas de espelho,
basaltos, rubis, esmeraldas, ametistas, topázios, cristais de
rocha, toda a gama das cores, dos reflexos, aqui se encontra!
Depois... os cataclismos! Num
momento as montanhas desfazem-se. As rochas desprendem-se. rolam,
tombam. As grutas obstruem-se, desaparecem. Os Alpes tornam-se
Sahará. A aragem ergue e volteia estes colossozinhos tão belos de
forma e de cor. O Sol fá-los cintilar. No seu meio há uma dança
estupenda de luz e de cores.
*
* *
Donde veio isto? Que serranias se
esboroaram para que esta areia aqui seja hoje assim? Que tragédias
e que epopeias se têm passado no decurso dos séculos, para que o
mar aqui hoje se debata neste leito de destroços e de fragmentos
de velhas penedias?
*
* *
O livro único que comigo trouxe,
foram Os Lusíadas. Uma pequenina edição de luxo, de algibeira,
como um livro de orações, que comprei como o melhor livro
/ 76 /
de orações que um português pode deixar à sua descendência.
À beira do mar, Os Lusíadas
têm um sabor mais genuíno e mais português.
Só o mar serve bem de
acompanhamento para a sua divina toada.
Junto ao mar, a alma ajoelha e
reza; ergue-se e voa e canta!
Pequenina como um grão de areia
nesta vastidão, um nada junto do oceano imenso e do Céu infinito, a alma portuguesa
– a minha alma!
– desprende um voo, meditando na nossa epopeia
sublime e ergue-se ao alto, mais alto que as nuvens, tão alto como
o sol e abraça o mundo, por onde o sangue português escreveu
fúlgidas e imorredoiras páginas de História.
Os Lusíadas – canto eterno que
eternamente se há-de erguer das nossas praias
– são o hino da raça
e estas ondas ainda hoje nos embalam com o mesmo sonho e com as
mesmas aventuras!
Julho de 1918
Alberto Souto
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A HISTÓRIA, O DRAMA E A GRAÇA DA
ÁGUA
Excertos da Conferência proferida em 1930
A Água...
Mas a água terá efectivamente
história, drama, graça?
Direi eu, apenas, o pouco que dela
sei, como a olho e a tenho visto, o que dela me rezam as pedras,
as terras, as praias, as veigas; um pouco do que dela a ciência
nos assegura, um exemplo do que a literatura dela nos narra e do
que a poesia a seu respeito nos conta.
E o que é a Água?
Um agregado, um somatório de
moléculas formadas da combinação de dois gases na proporção de O1
e H2 com gases e sais em dissolução e normalmente no estado
líquido, meramente relativo, todos o sabem e particularmente os
nossos pequenos escolares.
– Então é possível extrair-se dela
um drama?
– Sim, é!
Há coisas tão comuns que, em
verdade, largo tempo nos passam despercebidas e que pela sua
vulgaridade nem nelas demoramos, por um instante a nossa atenção.
Ao contrário do que fazemos com
Santa Bárbara quando dão trovões, só a Água, em regra, nos
lembramos quando ela nos falta e quando, então, o interesse vil e
vil egoísmo nos levam a procurá-la nas profundezas, a amealhá-la nas
cisternas, a canalizá-la das goteiras, dos córregos, das levadas,
dos caudais; aproveitá-la nas fontes, dividi-la nas leiras e nas
courelas como herança apetecido e alimento precioso; e implorá-la
à divindade, a invejá-la ao vizinho que dela farta o seu agro, a
disputá-la em pleitos, a comprá-la em almoedas, e conquistá-la em
batalhas sangrentas e guerras demoradas.
Os super-homens perdem a grandeza
diante do seu criado de quarto...
Se o Nilo decorresse em permanente
regime de inundação, talvez o Egipto antigo não festejasse a sua
cheia nem o adorasse como um Deus.
Ora entre nós que demoramos
voltados ao oceano, a Água abunda de tal forma, de tal forma nos
abraça, nos espelho, nos fala a toda a hora, nos aparece a todo o
canto, nos corta o passo a cada Instante, tanto a vemos da
meninice à decrepitude, do berço ao túmulo, que se nos afigura um
elemento sem valor estético, sem história. sem drama, sem graça.
E em vez de a deificarmos,
amando-a, votamos-lhe desprezo, olhamo-la com indiferença,
passamos por ela sem a saudarmos e nem num segundo do relógio da
vida lhe dedicamos uma oração ou um simples, profundo e recolhido
pensamento!
Gabriel d'Annunzio disse da flor,
citando um filósofo grego, que ela devia ser contemplada com os
olhos bem abertos!
Pois eu ouso dizer o mesmo da
Água!
A Água: eis aí uma maravilha que é
preciso meditar e ver com os olhos bem
abertos!
Mas aí começa a dificuldade: o mistério e o tormento!
O mistério que acompanha e nimba
todas as divindades e o tormento que experimenta e sofre todo o que tenta desvendar
os arcanos da divindade!
Se a quisermos ver bem, mal a
descobrimos.
Ela é transparente, incolor,
informe, inconstante.
O seu mistério vai mais longe: se
a tomarmos na mão para bem a vermos, sentirmos,
palparmos, e segurarmos, ela escorre, foge, cai, dispersa-se,
evapora-se!
Toma a forma das fronteiras que a
encerram, dos depósitos em que se armazena, dos receptáculos onde
se recolhe, dos sacrários onde se guarda, dos fundos onde repousa,
mas se lhe não roubarem o ar e o espaço ou não a guardarem
vigilantes, ela daí se põe em fuga, trespassando as paredes,
correndo tormentosa, evadindo-se por um interstício ou
mudando-se... em hálito, fumo, vapor, neblino!
/ 77 /
Desce dos cimos, procurando sempre
os fundos, o caminho que for mais baixo e mais humilde, mas
formando os grandes caudais, chegando às grandes bacias, aos lagos
ou aos mares, torna-se poderosa e dominadora e daí foge logo, como
uma figura alada da mitologia, e voa para os céus, para cima de
todos os montes para mais alto que toda a Terra, formando as
nuvens em que sentam os Deuses!
Depois regressa. Uma paixão eterna
feita de carícias e de brutalidades, de golpes e de beijos, de
imprecações e de meiguices, de ralhos e de carinhos, de proveitos
e de malefícios, de riquezas e de devastações, de noivados e de
divórcios, de punhaladas e de abraços a prende... entre os abismos
da crusta e o vácuo da atmosfera.
Uma lei do equilíbrio do mundo, a
reconduz aos mares, às terras, às montanhas, amassando-a,
misturando-a, casando-a com a Terra; e o seu ciclo volta, num
drama eterno, numa eterna tragédia, numa rotação contínua, como
parece ser, afinal, a rotação dos mundos na curva infinita dos
Universos!
O vai-vem eterno da Água!...
Vai-vem eterno da matéria!..., a
enormidade deste mistério absorve-nos e esmaga-nos tanto, como,
por exemplo, quando ao contemplarmos o nosso Sol, nos lembramos
que ele nada é no universo da Via Láctea e que essa espiral de
poeira luminosa feita de milhões de estrelas, vagueia no turbílhão
dos mundos que enchem uma pequena parcela do espaço etéreo onde
apenas se aventura, em hipóteses ou digressões numéricas, o nosso
mísero pensamento!...
A Água não tem cheiro, não tem
fisionomia e não tem cor, mas toma a expressão dos corpos que a
circundam e muda de parecer a toda a hora, quando rutila o sol,
quando passa a nuvem, quando toca a brisa, quando surge a
tormenta, quando a luz morre, quando a noite cai, quando o luar
lhe bate, e toma a cor dos vasos e dos reflexos das terras, das
rochas, das escarpas e das margens, dos animais e das plantas que
nela se miram e nela se banham.
Verde ou azul nas grandes massas,
é amarela num mar, vermelha noutro, glauca nas nuvens, branca na
espuma e na neve, rubra no sangue, verde na clorofila!
Se o não verificássemos,
poderíamos acreditá-lo? Revolta, turva, límpida, cristalina,
gelada, tépida, vaporosa, fosforescente, orvalho ou choro,
glaciar, iceberg ou oceano, hulha branca, hulha verde, hulha azul
quando produz força e movimento, é a mesma numa molécula ou numa
quantidade imensa, no sangue ou na seiva, na lágrima ou na onda...
– sempre – a Água!
Que outro ser existe na Terra com
tais qualidades? Nossa irmã Água, lhe chamou S. Francisco de
Assis, o cantor admirável desse adorável poema dos Laudes.
Talvez seja mais que irmã, talvez
seja mãe de toda a Vida, nossa Mãe portanto!
Tão boa, tão útil, tão precisa,
tão desejada, tão prestimosa... e sem nunca pensarmos na sua
origem, na sua história, no seu drama e na sua graça!
Fluida, é incomparável, mas é mais
fofa que as penas e tão dura como a rocha; se a resfriamos,
congela-se; se a aquecemos, vaporiza-se; e em ambas as crises
experimenta mudanças de volume e adquire forças de expansão que a
igualam aos mais poderosos explosivos.
Elemento do orbe em alguma
filosofia antiga e na concepção dos alquimistas, a mitologia pagã
só a divinizou na figura de Neptuno e nós modernamente fazemos
dela força, movimento, calor, electricidade escravizando-a!
Deu ninfas às fontes e aos rios,
fez o deus do mar, mas ninguém a adorou como alguns povos adoraram
o sol e o fogo e no entanto bem merecia ela ser entronizada e
adorada como uma grande deusa ao mesmo tempo prudente e louca,
fecunda e terrível, mansa e implacável, mas de cujo ventre a Vida
tivesse brotado e a cujo seio a Vida se alimentasse no decurso
tormentoso e obscuro dos incontáveis tempos que vêm até nós desde a
época azóica!
Não quer cárcere, ama a liberdade
e a vida, suspira pela luz.
Se no âmago da terra se cavar um
poço, ela resuma, borbulha e surge e vem respirar o
ar e vem olhar o céu.
Desenvolveu-se a civilização à sua
vista e os povos andaram à sua volta como, no dizer do velho
escritor, as rãs à volta do
charco...
Tanto lhe devemos!...
Pois esta palestra é uma oração à
Água!
E em nome da Humanidade – mau
sacerdote que eu sou! – venho hoje aqui pedir-lhe,
simplesmente, o perdão do nosso esquecimento!
... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
...
Pode não ter existido a Atlântida,
mas o que é facto, é que o Atlântico não foi sempre o grande
oceano que hoje é.
Aí se travou tremenda batalha
entre a Terra e a Água, em que a Água venceu, afundando-se terras
de vastíssima extensão nos fins do Terciário.
Nem isto deve admirar. A
fisionomia do globo, a distribuição das terras e das águas, a sua
posição relativa, não foi sempre aquela que pelos mapas hoje se
nos afigura.
Mas nos sítios dos continentes,
continentes no lugar dos mares, lagos profundos onde hoje se
erguem serras, montanhas onde hoje se vêem depressões, emersões e
imersões, regressões e transgressões marinhas,
/ 78 / têm sido
através da história da terra as cenas continuamente repetidas que
hoje a geologia nos revela.
Construção da Água são todos os
terrenos estratificados, todas essas assentadas de calcário, de
argilas, de grés, que a vegetação recobre, que se levantam em
colinas e cordilheiras, que o homem abre, rasga e explora.
Construção da Água essas vastidões
de areias dos desertos, das dunas, do subsolo.
Construção da Água os amontoados
incríveis de calhau rolado que a cada passo se
topam.
Construção das Águas,
o alto do Buçaco e os picos dos Alpes!
Que dramas tudo isso
traduz e aos geólogos relembra e rememora!
Das encostas que bordam o parque
da elegante Curia, é fácil arrancar conchas de ostras e de
moluscos vários que noutros tempos antes de aparecer o homem sobre
a terra, ali viveram no seio de águas marinhas em cujos fundos se
formaram os seus calcários.
Mas por outro lado também a Água é
implacável na sua fúria destruidora.
Para fazer as suas construções
sedimentares ela precisa de destruir e então usa da erosão no
relevo e do embate ciclópico nas penedias das costas, infiltra-se
nas rochas mais duras da crusta e estala-as e corrói-as e
pulveriza-as e decompõe-as.
Tenaz e persistente é a água
mole que tanto dá na pedra dura até que a
fura!
Parte os granitos,
esfolia-os, desfá-los.
Desgasta as rochas mais
resistentes, arredondando-as, brune-as, pule-as, redu-las a areia
e a pó, a limo e a vasa.
Quando o não pode fazer apenas com
a sua acção mecânica directa, ataca-os com o seu oxigénio e
envenena-as, deixando-as.
Espera o momento da descida da
temperatura e congelando-se nos seus interstícios, rompe-os e
esmigalha-os.
O seu trabalho de erosão de que
resulta o modelado do relevo, como o arranque das falésias e o
desgaste das costas, é formidável.
Lá no alto dos montes é neve que
cai leve e mansa ou chuva apenas, que inocentemente escorre em fio
pelo declive.
E num instante já é avalanche que
tumultua e ressoa no vale como um trovão e tudo subverte e tudo
abismo; e é regueiro e torrente, cascata e catadupa, rio ou lago
ou golfo ou mar!
Ser nuvem do céu ou vaga do
oceano, dominar no firmamento roubando à Terra a primazia da luz
do sol e olhando-a sobranceira, ou juntar-se numa massa infinda
que a avassale e submeta, parece serem, entretanto, os seus desejos
supremos, as suas supremas e insaciáveis ambições.
É no mar onde ela mais repousa e
mais permanece, e aí, que correntes, que vagas, que marés, que
grandezas e que tragédias!
A riqueza do seu seio, então, onde
miríades de seres vivos, desde a minúscula alga ou microrganismo
da fosforescência e do plâncton de que se alimentam os peixes, até
ao enorme cetáceo que espadana nas ondas, desde a concha das
pérolas aos recifes de madrepérolas e corais, desde o pequenino
búzio das praias aos colossais e disformes peixes da fauna
abissal, desde os limos das rochas aos mares dos sargaços, a sua
riqueza é incalculável e imensa.
Faz rendas de espuma nas praias
fulvas, douradas pela areia, e ondeia em cumeadas medonhas nos
vagalhões do alto.
Estrada da civilização, o mar é
hoje o laço que une os continentes e confraterniza os povos.
Factor essencial de progresso,
aspiram por ele todas as nações, e assim Mahan e Bonamico
construíram a teoria célebre do domínio do mar como condição
essencial da vitória.
E no entanto, que tragédias se têm
desenrolado, que lágrimas por causa do mar se
têm chorado!
A história trágico-marítima está
cheia de lutos, de angústias, de desesperos, de
mortes, de horrores!
É um campo de epopeia
e um cemitério de náufragos, o mar!
Salamina e Lepanto, o caminho das
índias e a descoberta das Américas, Trafalgar nas lutas
napoleónicas, as Falckland na última guerra, páginas de vitórias
brilhantes e hecatombes terríveis, tendo por campo a água e por
cenário o mar!
E então o poema de trabalho, de
arrojo, de coragem e heroísmo e o drama intenso, a confrangente
tragédia, que todos os dias se desenrolam nessas águas inquietas,
onde os humildes, os anónimos, os ignorados – os marinheiros e os
pescadores
– passam a vida, embalados pela onda, batidos pela
tempestade, vencidos pela morte, tragados pelo mar?
O naufrágio do «Sepúlveda», a
catástrofe do «Titanic», a tragédia misteriosa do
lugre «Aveiro» , a angústia dos poveiros, a morte dolorosa dos
pescadorzinhos do mexoalho, o luto constante das famílias dos
marítimos de Ílhavo, o dantesco desastre do «Deister», os
desgraçados do «Pensativo», para não mais relembrar,
– meu Deus!
se não há palavras que descrevam tais lances, nem voz que as
conte, para que hei-de eu pretender revivê-las?
... ...
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A graça da pérola gerada no fundo
dos mares na valva das conchas, tem sido assunto muitas vezes
tratado em literatura.
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A graça das pérolas, tão finas,
tão mimosas e tão cobiçadas pelo colo das mulheres, anda ligada à
graça da água que as abriga e esconde.
Os poetas e o povo dizem que os
aljôfares e as pérolas ou são feitos de lágrimas ou de orvalho,
que tudo é – Água!
A água meteórica caindo em chuva,
pode produzir alegria pela sua utilidade mas não tem beleza, nem
nos causa a impressão delicada e a admiração do orvalho, da
neblina, da neve, da água das fontes, dos rios e do mar.
Bastas vezes, pois, a chuva, aliás
tão útil e solicitada até em preces à Divindade, nos aborrece e
deprime. Mas já a névoa nos longes dá graciosidade e doçura à
paisagem, como um véu ténue que tudo anima
– o escalvado dos
montes, a aspereza dos cerros, a sensaboria dos plainos.
Erguendo-se e juntando-se nas
regiões mais altas da atmosfera, o vapor de água forma as nuvens,
de formas tão várias e tão bizarros aspectos. Tanta graça dão as
nuvens ao horizonte que a arte da fotografia tem de recorrer ao
artifício para compor com falsas nuvens a paisagem a que elas
faltam.
Mais sugestiva, ainda, é a neve,
água meteórica também, congelada e cristalizada em
caprichosíssimas formas geométricas, depois
reunidas e aglomeradas em pequenas folhas e farrapos que tombam do
Céu, constituindo um espectáculo singular e verdadeiramente
encantador.
Para nós, da beira-mar e da
planície, a neve é uma coisa quase lendário e misteriosa e como
tudo o que é lendário e misterioso, o espectáculo da neve torna-se
apetecível como o de uma paisagem afamada, dum fenómeno raro, de
um géiser ou de um vulcão, duma Gruta Azul ou do Sol da Meia
Noite.
Em toda a minha vida, uma só vez
em 1918, eu vi a neve cair sobre a terra da Beira Mar, em
farrapinhos brancos que uma aragem desfez de pronto, deixando em
todos nós uma impressão de espanto e maravilha, como a surpresa de
um aerólito, de um eclipse ou de um cometa.
Porque aquilo que aqui chamamos
neve, não é mais que uma ligeira geada, simples congelação da
humidade atmosférica à superfície das coisas nas noites calmas,
sem vento e sem nuvens, que impeçam a irradiação.
Nas estações climatéricas e de
altitude, a neve é benfazeja e desejada. Sem ela, o frio e
insuportável e não haveria sports de Inverno, nem descidas
vertiginosas em bob, trenó ou luge, nem passeios e saltos em
skis,
nem jogos de hóquei, nem festas de patinagem.
Quando ela cai nos altos, que
lindas se tornam as nossas serras, vestidas de branco, tocadas no
cimo dos cabeços e alargando pelos ombros das lombadas o seu manto
de arminho e o seu véu de gaze, como se fossem noivar ou comungar.
Branca, alvíssima, fofa, leve como
penugem, quando cai, parece que nos sacodem das nuvens enormes
arregaçadas de penas de anjo.
A Água parada, a Água morta, a
Água encarcerada, causa-me sempre tristeza e compaixão, ou mágoa
ou dor.
É a Água dos charcos e dos canais
impuros e imóveis, dos tanques pútridos, dos lagos miasmáticos,
onde a prenderam, coitadinha, deixando-a morrer!
A Água dos canais precisa de
movimento, maré ou corrente, agitação da brisa ou impulso do remo,
ondulação, barcos, velas para expulsar a tristeza que nos causa
sempre ver essa Água, silenciosa, inerte, turva e melancólica, ao
contrário da Água que flui e canta ou sussurra ou ruge, seja mar
revolto, rio caudaloso, torrente ou regato, jogo de água ou fonte
obscura.
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Como poderia eu, filho de uma
terra, que tanto quero, adoro e amo, exactamente por causa da sua
ria, do seu mar, da sua água, que me encanta e me seduz, me
inebria e me alucina, como poderia eu esquecer a Água e não sentir
a sua beleza e não cantar a sua graça e não agradecer os seus dons
e não impetrar os seus benefícios e não desejar os seus tesouros e
não chamar ao seu culto todo o Povo meu irmão?!
E eis o motivo porque eu quase me
ia perdendo na vida e porque, insensivelmente, ia também, sem querer ser poeta, quase que
fazendo poesia, – por mero milagre da Água!
Desta água, fada de tanta magia e
deusa de tantos milagres, que nos gerou, nos dessedenta, nos
alegra e nos purifica.
Alberto Souto