Não nos propomos tecer
considerações sobre história de arte ou de civilização nem tão
pouco insistir na relação notória de interdependência dos meios
geográfico, etnográfico e folclórico de cada região natural do
País.
Embora desde há pouco, já muito se
tem dito a tal respeito. Que digam muito mais, para regalo dos
estudiosos interessados, aqueles que sobre o apaixonante problema
se debrucem com ciência, paciência, bom gosto e bom senso.
Que razões complexas impelem a
nossa curiosidade para as regiões profundas das artes populares?
Razões de preferência pelas formas simples? Simplicidade tantas
vezes aparente ou ilusória que reflecte a força criadora da
imaginação, a complexidade da alma humana na sua ânsia eterna de
melhor, mais perfeito, mais belo!
Os instintos de subsistência e de
defesa fizeram o artífice ou artesão; o Amor, a Fé, a admiração
pela obra de Deus criaram o artista.
Exteriorizando o impulso imanente
da sua essência divina, artesão e artista tornaram o lar mais
atraente e confortável; deram à casa de Deus o máximo de beleza e
grandiosidade; alaram o engenho e a imaginação a alturas
imprevisíveis, se recuarmos até às primitivas mãos, já
voluntariosas mas desajeitadas, que toscamente modelaram os
primeiros barros.
Nesta ascensão artística através
dos séculos, qual o papel activo da mulher, além de doce
companheira e inspiradora?
A exposição de Artesanato Regional
realizada no Museu de Ovar em 1965, a admiração dos visitantes
perante a beleza, riqueza e raridade de muitos dos trabalhos
femininos expostos atiçaram a nossa curiosidade, sugeriram-nos a
ideia de rebuscar no passado as origens da arte popular feminina
da região e sobre ela, enquanto é tempo, tentar recolher alguns
elementos.
A mulher vareira, profundamente
crente, de vida modesta e recatada, muito madrugadora, ia à igreja
e regressava a casa, noite ainda, para um longo dia de intensa
actividade repartida entre os deveres religiosos, os trabalhos
domésticos, a criação dos filhos e a sua distracção preferida: –
os trabalhos de mãos.
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Outras distracções – festas,
passeios – eram muito poucas na roda do ano; as solenidades
religiosas do Natal, da Semana Santa, da Páscoa; as majestosas
procissões do Senhor aos Enfermos, dos Santos Terceiros, do Senhor
dos Passos, do Coração de Jesus com a comunhão solene das
crianças, para as quais a mulher envergava o elegantíssimo trajo
regional de gala e ostentava os seus melhores atavios. Vinham
depois os arraiais e procissões de Santo António, S. João, S.
Pedro, S. Miguel, nos Largos das respectivas capelas, e a grande
Festa do Mar, no Furadouro, em honra do Senhor da Piedade, cuja
imagem de pedra o mar engoliu há muitos anos, por incúria dos
responsáveis, juntamente com a sua velha capelinha branca.
Saía pouco, a mulher de Ovar. O
seu lar era o seu mundo. Nos longos serões de inverno, rodeada dos
familiares, acalentada pela fogueira crepitante e cheirosa de
pinhas e podas, à luz suave da candeia de azeite ela reinava,
conversando, rezando, sonhando, e descansava a trabalhar, sempre a
trabalhar, que as suas mãos ligeiras e dextras não podiam perder
tempo!
Dotada de particular habilidade,
dum bom gosto inato, de imaginação fértil, manejava rapidamente o
fuso, os bilros e as agulhas de toda a espécie com que costurava,
bordava, marcava, abria crivos, fazia meia, manta, tapete ou as
mais variadas rendas.
Abençoadas mãos que assim
utilmente entretidas vestiam a família fiando, tecendo, cosendo, e
enfeitavam o bragal que enchia a arca perfumada a rosmaninho e
alfazema.
Do tear manual saía a manta
grosseira de lã para agasalho e a rica coberta de cama dos dias de
festa ou de doença e luto; as grossas estopas e ásperos tomentos
de uso diário; os finos linhos dos guarda-camas
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luxo enfeitados com rendas, folhos de cambraia ou bordados; a bela
toalha de linho rematada com franjas, recortes ou rendas, que
enxugava na pia baptismal a cabecinha do neófito, cobria o peito
do doente para auscultação médica e resguardava da terra negra e
fria o rosto do defunto querido; a toalha de altar trabalhada a
primor para a vinda do Santíssimo a casa na hora angustiosa dos
últimos sacramentos...
Fiada, urdida e tecida com linho
de casa havia a grande toalha de mesa, com desenhos levantados,
destinada às alegres consoadas em família, às bodas, aos
baptizados; às primeiras comunhões.
Os tapetes, as passadeiras, as
cortinas das alcovas, os cortinados dos leitos de bilros, os panos
de renda de cómodas, mesas e mesinhas – tudo que alindasse ou
desse conforto ao lar era obra das mãos diligentes e da
sensibilidade artística das nossas avós, pobres ou ricas,
lavradeiras ou senhoras.
Diz a tradição que, por estas
bandas, só mesmo as «pescadeiras», tão exuberantes no gesto,
tinham mãos pesadas, «mãos de cepo», para os lavores femininos.
Seria repouso compensador da
demasiada actividade das pernas e da língua? É sabido que aquelas,
num passo rápido, leve, cadenciado, elegante, lhes permitiam
calcorrear sem esforço enormes distâncias e que esta, a língua,
sempre pronta e afiada, se permitia os maiores desaforos.
FIAÇÃO E TECELAGEM
A fiação e a tecelagem eram a base
do trabalho feminino das nossas avós. Muito se fiava e muito se
tecia.
Teciam até os homens por seu
principal mister: os cesteiros, os canastreiros, os esteireiros.
Teciam para preencher as horas vagas os que ganhavam o pão arando
a terra ou o mar.
Os vimes tecidos davam o cestinho
da costura, o balaio do pão, o cesto da roupa, das regueifas, das
compras; as correias de madeira, bem encanastradas,
transformavam-se nas canastrinhas rasas e esguias das peixeiras,
nos canastréis das cangalhas dos vendedores de peixe, nas
canastras burriqueiras dos feirantes e almocreves, nos gigos de
diversas formas e tamanhos para o transporte dos estrumes nas
terras, dos cereais nas eiras, dos entulhos e materiais nas obras.
«Andar ao gigo» era expressão corrente.
Uma canastra podia servir de berço
em que os filhos se criavam e eram transportados à cabeça altiva
das mães.
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Vestido de
baptizado |
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Com os juncos e os bunhos das
margens da Ria teciam-se esteiras, esteirinhas e esteirões;
faziam-se ainda as palhoças ou coroças – capas de palha que
abrigavam da chuva. Na cómoda poltrona de bunho sentavam-se os
velhinhos e os doentes. O pescador era, e é, tecelão de redes e de
rapichéis para o peixe e para as pinhas.
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Quarto antigo |
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As mulheres, essas, fiavam e
teciam a lã e o linho, produto agrícola da região. Obtinham assim
as «dinhas» com que cosiam, faziam meias, rendas e crivos; e os
fios de diferentes grossuras que depois teciam.
As maçarocas de lã fiada em casa
convertiam-se, nos teares manuais, em mantas para o inverno ou no
«p'ra tudo», tecido de lã que, como o seu nome indica, tinha as
mais diversas aplicações no vestuário masculino e feminino.
As teias de linho, depois de
primorosamente costuradas à mão, forneciam o bragal: lençóis,
guarda-camas, fronhas de travesseiros, cabeceiras e cabeceirinhas
muitas vezes ornamentados com bordados a crivo e a cheio ou com
rendas de agulha ou de bilros feitas com o fio do mesmo linho;
toalhas de rosto, de mesa, guardanapos; roupas femininas
interiores, camisas de homem, mana ias de pescador, etc....
Muitas das toalhas de mesa e de
rosto saíam já dos teares artisticamente ornamentadas com desenhos
lavrados por meio de fios mais grossos ou levantados. Nos mesmos
teares e pelos mesmos processos se teciam, de linho, as mantas
ricas, verdadeiras obras-primas pela perfeição e variedade dos
motivos ornamentais de grande originalidade: gregas, barras,
motivos geométricos, flores, a cruz de Cristo, o cruzeiro com
flores, a coroa real, o escudo português, brasões de armas,
insígnias de corporações, siglas e até nomes de família.
As chamadas mantas de trapo, os
tapetes e as passadeiras com fios de linho no urdume e tiras de
trapo no tapume, obras mais modestas, tinham quase sempre um cunho
de arte e bom gosto pela combinação de farrapos de várias cores.
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Faziam-se também liteiros brancos em que o relevo artístico era
conseguido deixando mais levantados, em conformidade com o
desenho, os trapos do tapume.
Destes trabalhos existem
exemplares no Museu de Ovar.
COSTURA
Na exposição de Artesanato a que
já nos referimos tivemos o ensejo de observar a admiração das
ovarinas de hoje pelos trabalhos de costura das suas antepassadas.
Eram peitilhos de camisa de homem
completamente guarnecidos de preguinhas milimétricas, distanciadas
com uniformidade pela contagem de fios, cosidas à mão de modo
invisível, mas resistente ao uso, à lavagem, à goma.
Eram vestidos de baptizado,
exuberantemente enfeitados, com milhares de pontinhos seguros, mas
de leveza etérea.
Eram pregamentos de rendas e de
folhas de cambraia finamente embainhados e franzidos com arte
formando centenas de conchinhas uniformes.
Sendo estreitos os linhos saídos
dos teares manuais, havia lençóis de dois, três ou quatro panos.
Uniam-se estes por meio de ponto de luva tão miudinho que mal se
notavam as costuras, graças, também, à perfeição das ourelas do
tecido. Resistiram estes pontos ao uso e ao rodar dos séculos,
sendo ainda quase impossível descosê-los sem cortar o pano. As
bainhas, feitas à mão, a miúdo e escondido ponto de bainha, ou a
posponto de um único fio, são obra de extraordinária paciência.
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Almofadas |
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Aqui observa-se uma curiosa
colcha, muito antiga, feita com dezenas de amostras de chitas
diferentes – pequeninos rectângulos – de desenhos e cores suaves
combinadas com bom gosto e pacientemente cosidas à mão!
Ali, uma outra, mais rica,
confeccionada com tirinhas de seda natural de todas as cores
formando artísticos azulejos!
Na parede, uma cena de caça
colorida, de desenho perfeito – tapeçaria feita com centenas de
minúsculos trapinhos de seda cosidos, um a um, sobre serapiIheira
previamente quadriculada pela tiragem de um fio de 2 em 2 em toda
a superfície, paralelamente aos dois lados rectangulares de 2.80 x
0,85 mts.
Pertence ao Museu de Ovar esta
bela obra de arte e paciência.
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BORDADOS
Bordados antigos, verdadeiras
preciosidades, foram desencantadas de velhos armários e arcas para
serem expostos no Museu de avaro Alguns nele ficaram como generosas
ofertas.
Bordados a branco, a «ponto real» de
inexcedível perfeição, «a canutilho», a «ponto de veludo», a mil
pontos de fantasia em que a variedade e a beleza pedem meças:
uns em relevo bem enchumaçado,
outros baixos; arrendados estes, tapados aqueles; uns de desenho
simples e ingénuo, outros de risco complicado e de grande riqueza
ornamental.
Bordados a retrós, a ponto de cruz,
sobre talagarça, interessantes pelo colorido e variedades de
motivos.
Bordados a matiz de cores tão bem
combinadas e esbatidas que folhas e flores têm naturalidade e a
frescura que lhes dá o brilho dos ténues fios de seda com que foram
executados.
Bordados a lã, a cabelo, a escumilha.
Preciosos bordados a ouro, ouro
velho, brilhante, cada vez mais belo.
Mãos delicadas de senhoras nossas
conterrâneas bordaram a ouro e seda, sobre preciosos tecidos,
bandeiras, pendões, túnicas e mantos de santos e santas, sanefas e
andares, baldaquinos, paramentos que ainda hoje enriquecem as
festividades religiosas ou são guardados como relíquias de família.
RENDAS
Mulheres e rendas sempre foram
inseparáveis. Usavam-nas dos pés à cabeça. As meias arrendadas de
linho branco contrastavam com o negro da chinelinha de bico e a orla
da saia preta, assim como as dos alvos lenços de cambraia e das
pescoceiras das roupinhas sobressaíam nas cabeleiras negras.
Elas gostavam de as usar e também de
as fazer: rendas de duas agulhas e de uma só, rendas finas e rendas
grossas para as mais variadas aplicações.
Como rainhas, as rendas de bilros.
Estes, bem torneados, alguns de marfim, regidos por mãos hábeis,
dançavam sobre os «piques» a toque de castanholas e iam despindo o
fio de linho que os envolvia para criar rendas maravilhosas – espuma
delicada que guarnece
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roupas como as ondas bordam a areia da praia.
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Toalha de mesa |
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FLORES
Ovar sempre foi, e é, terra de
muitas flores.
As mulheres amam-nas e cultivam-nas.
Na falta de jardim há vasos de
barro, que oleiros a dar à roda sempre as houve na nossa terra, e em
qualquer cantinho bate um raio de sol.
Vê-las, sentir-lhes o perfume dá
prazer. Mas fazê-las com as próprias mãos (de seda, de veludo, de
cera, de gaze, de escamas de peixe, ou mesmo de papel), imitar com
arte a obra de Deus é dom de artista que não faltou às nossas avós.
Fizeram-se flores tão belas, tão
naturais, que não houve coragem de as deitar fora. Já velhinhas, são
ciosamente guardadas, razão por que não faltaram na Exposição de
Artesanato.
As flores artificiais eram
indispensáveis nas silvas dos andores, nos palmitos que donzelas e
crianças levavam no caixão, nas jarras das igrejas e oratórios, nos
ramos de noiva, nas coroas funerárias e na ornamentação da casa.
Lógico era, portanto, que houvesse
muitas floristas em Ovar, entre as quais uma se distinguiu e deixou
fama – Rosa Brites.
Já velhinha, teve a alegria de saber
que flores da sua autoria, enviadas sem seu conhecimento à Exposição
de Paris de 1900 por alguém que soubera devidamente apreciá-las,
tinham conquistado, naquele exigente certame, uma Menção Honrosa,
cujo diploma lhe foi enviado.
Interrogada sobre como, onde e com
quem aprendera tais primores, respondeu simplesmente:
– Mas... o meu Mestre é o meu
jardim!
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Que o eco longínquo da voz desta
artista desperte na sensibilidade das mulheres vareiras o interesse
e o zelo pela conservação de tantas preciosidades, julgadas inúteis,
que se vão perdendo e que tão bem ficariam no Museu de Ovar, o seu
Museu!
E calem-se já os pobres e difusos
«ecos de uma exposição de arte vareira» para que, bem alto e bem
longe, possa ressoar este apelo. |