I – PREPARATIVOS
– Está manso ou está bravo?
Dispensava sujeito, esta
interrogação quotidiana, para se tornar acessível ao entendimento
do interpelado, que era um filho do Sr. Custódio, o mais sardento
de todos eles, e que, de harmonia com as marés, vinha bater ao
nosso palheiro e chamar estridentemente para o banho.
Umas vezes respondia:
– Está como azeite!
Outras vezes, pelo contrário: – Ei!
Está danado!
Ainda outras, meio termo:
– Picadito! Ou então – Picadote!
Dava motivo a esta curiosidade que
me fazia acordar antes d'horas o grande desejo de que os homens
fossem ao mar!
Todas aquelas operações me
interessavam e me divertiam, desde o aparelhar dos barcos, que se
fazia de véspera, até ao leilão da pescaria na presença do
infalível fisco.
Os pescadores começavam a sair da
arrecadação, com a corda enrolada aos ombros, formando como que
uma extensa bicha que caminhava na areia.
O arrais de mar ia recolhendo
sucessivamente as molhadas, espalhava-as com mão de mestre, tendo
sobretudo em vista o equilíbrio do barco e o espaço que havia de
ficar livre para a manobra dos remos.
Cada vez com mais calabre debaixo
dos pés, é claro que o arrais ia subindo a pouco e pouco dos
tampos da nau, até que a sua figura se desenhava inteira e
perfeita no fundo do horizonte!
Depois principiava a chegar a
rede, trazida numa espécie de sistema ou jangada de trancas de
pinho, segurando cada qual à sua ponta.
Com a rede ainda havia mais
cuidado por causa de se não prenderem as malhas umas nas outras e
se não enrodilhar tudo de uma tal maneira que depois, no alto mar,
fosse uma verdadeira seca para a deitarem às ondas!
Para o final, quando faltava pouco
para vir o saco, Gabriel Ançã – era assim que se chamava o arrais
– passava a rede pelo bico da ré à maneira de uma gravata.
Finalmente entrava no barco a grande bolsa, o alçapão dos peixes!
As malhas eram tão apertadas que, nem que fosse petinga, se
tentasse passar para fora, ficava esganada!
Deixavam-se ali ao pé os rolos, os
tabuleiros de escape, a forquilha, e no dia seguinte o mar é que
havia de dar as suas ordens!
II – A IDA
Eu não podia compreender a que
propósito vinha aquele praguedo rotíssimo no momento de lançarem o
barco ao mar! em vez de cada um se encomendar com todos os seus
fervores à Senhora das Areias ou ao Senhor Jesus dos Navegantes,
como deve fazer quem
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de se meter ao risco das ondas, não senhor, estoiravam mas é as
pragas, como milho na laje quente de um forno!
Primeiro que apanhasse fundo
suficiente debaixo do casco, ainda o barco dava ali duas ou três
cabeçadas à beira do mar.
Finalmente vinha a onda que o
levava.
Então os pescadores saltavam para
dentro com a agilidade de um verdadeiro macaco, e num instante
apareciam cheios os dois castelos – o castelo da proa e o castelo
da ré; ao mesmo tempo os quatro remos começavam as suas primeiras,
incertas e lentas manobras.
Era raro que na praia não ficassem
as mulheres em gritaria medonha.
Umas vezes, quando alguma vaga
mais forte estalava nos peitos do barco, elas erguiam os braços no
ar, batiam as palmas com desespero, e gritavam que até parecia
coisa má:
– Ah! mê rico homem! Ah! mê Luís,
que não tornas cá mais a vir!
Outras vezes tapavam o rosto, mas
sempre a bradar, é claro!
Outras vezes deitavam-se de
barriga no chão e davam sapatadas na areia, como se a areia
tivesse culpa de alguma coisa!
Lágrimas, então, era um dilúvio
delas, era a fartura que se quisesse! Nem eu sei onde as criaturas
iam buscar tanta lágrima!
Também o que valia era que esta
crise de consternação não durava senão enquanto o barco lutava com
a pancada do mar; depois enxugava-se imediatamente o pranto e
começavam os cálculos sobre a sardinha ou quaisquer outras
conversas.
Entretanto um homem, em pé, ia
deitando a corda ao mar à medida que o barco avançava. Ele colhia
rosca a rosca do monte, passava-as da mão esquerda para a mão
direita, ostentava-as um momento no ar, e depois, com um leve
arremesso, deitava-as às ondas onde a curva se desfazia
ràpidamente e se ia assim alongando o cabo.
Às vezes o barco ia tão longe dei
tal' as redes que se perdia de vista! Ou então não era mais que um
lenço branco, a subir e a descer no movediço das águas, como uma
bóia!
III – A VOLTA
Lá quando que era tempo de parar o
barco, o arrais mandava-o virar de través, para o que se fazia o
que se chama entre eles – a ciavoga.
Então findava ou, pelo menos,
amansava muito o praguedo. A tripulação descobria-se devotamente,
como quem diz:
– Agora é com Deus!
E apareciam magníficas cabeças de
lobos de mar, tanto os velhos como a novidade!
Depois, caído o saco nas ondas,
tratava-se de carregar uma fumaça.
À falta de bolso, vinham as coisas
próprias na ponta da carapuça: o livro das mortalhas, o célebre
papel Duc que se ia comprar ao estanque do Sr. Norberto,
com o retrato de Napoleão lII, com uma capa amarela muito ensebada
dos dedos; o charuto de picar, rascantíssimo para outras guelas
que não estivessem, como as deles, habituadas aos mais fortes
chamuscos; a navalha, a isca, o cachimbo, etc.
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Enquanto uma mortalha tremulava, colada ao beiço pela pontinha, o
canivete ia cortando no charuto, como quem corta salame, as fatias
de tabaco que se consideravam precisas.
Depois seguia-se um trabalho de
esmagamento entre as mãos; e como eram mãos calejadas, mãos de
granito, não se requeria nem grande esforço nem grande tempo para
se obter a mais perfeita pulverização da folha.
Entretanto o saco abria a sua boca
formidável no seio das águas. A mandíbula inferior, se me
deixassem assim dizer, mergulhava para o fundo em virtude dos
pesos e das chumbeiras que a arrastavam; a outra, a superior,
mantinha-se à superfície por causa das bóias, das cortiças, dos
odres de vento.
Já se começava a avistar o barco
da areia.
Os remos erguiam-se e abaixavam-se
com o sincronismo de um pêndulo.
Que lindo, quando eles saíam da
onda, a luzir como espelhos, a pingar água!
Ai que lá vem ele, o meu Luís!
Aproximam-se os homens e os boizinhos destinados a puxar o barco
para a lomba e a principiar a faina das redes.
À frente desse cortejo de espera
vêm dois pescadores dos mais destemidos com uma corda na mão
terminada por um gancho de ferro. Eles bem sabem que, deitado o
gancho às orelhas do barco está tudo salvo! Por isso quando calha,
não põem dúvidas nenhumas em se meter à maré e prender o monstro
antes mesmo dele arribar!
A descida faz-se com a mesma
ligeireza com que se fez a entrada.
O trabalho fica agora noutras mãos
mais frescas, e eles, os operários que chegaram do mar, vão beber
a caneca de vinho a casa do Sr. Manes e dormir um sono profundo,
de barriga para o sol, deitados na areia!
IV – A SAÍDA DAS REDES
Ao principiar da faina as duas
cordas andavam sempre muito distantes uma a outra.
Era uma dor de coração ver a força
que fazia o gado para puxar aquele engenho. Os pobres animais
abaixavam a cabeça até quase que tocarem com a tromba no chão; os
fios da baba iam ficando lentamente na areia! arqueava-se o corpo
como uma bola; as patas enterravam-se a procurar duro para fincapé!
Assim tiravam, assim gemiam, até
ao sítio onde estava o homem com a função especial de recolher,
enroscar e em pilhar o cordame que ia saindo da água.
Estes velhotes – pois que tais
funções eram funções para aqueles que se começavam já a reconhecer
cansados – tinham um prazer inegável em sentir passar pelas suas
palmas de bronze o calabre ainda todo molhado e gotejante das
ondas e das espumas do mar. As mais das vezes nem sacudiam a água
das mãos quando tinham que coçar a cabeça, as orelhas ou o nariz.
Então o rapaz desatava o nó que
prendia os bois; sentindo-se livres por aquela vez, os
pacientíssimos animais erguiam as pontas e por si próprios
voltavam-se de novo à face do oceano.
Agora para descer era sempre às
carreiras; eu não sei se aquilo seria
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recomendação dos patrões, com o fim de apressar a tiragem da rede,
se seria luxo dos moços para fazer figura diante das pescadeiras
que começavam a afluir à praia. Entusiasmo dos bois estou que não
era!
Que interessante quando eles
estacavam à borda e as ondinhas batiam nos seus joelhos!
Depois reatava-se o nó e começava
outra vez a ascensão horrível.
Entretanto o saco vinha avançando
com a boca aberta debaixo das águas. Peixe que passasse à feição,
está bem de ver, caía logo naquele estômago!
Assim se iam ajuntando os
infelizes dentro do mesmo cárcere; a cada instante eram colhidas
novas vítimas infortunadas, a cada instante desciam companheiros
de morte àquele buxo abominável!
Longe de mim a pretensão de dar
aqui a nomenclatura inteira e clássica das espécies predominantes
que se apanhavam naquelas águas; a este respeito só direi que se
via lá algumas vezes muito rica pescaria: sardinha, chicharro,
faneca, savelha, cavala, besugo, ruivo, tainha, robalo, solha,
arraia, linguado, tramelga, cação, lula, corvina, caranguejo,
capatão, doirada, peixe-galo, e mesmo em certas luas, toninhas!
Finalmente começava a sair a rede.
A toirada então tornava-se perigosa para a gente profana: nada
mais fácil do que ficar um cristão de barriga para o ar sob as
patas de um boi!
Ao mesmo tempo a vozearia dos
pescadores tomava proporções de ensurdecer! O praguedo era
medonho!
Nisto arribava o saco que era
arrastado imediatamente para fora do alcance das águas.
Então o arrais de terra abria
caminho com os cotovelos no meio da multidão, sacava de uma grande
navalha, e com um golpe só, de cima a baixo, abria aquele ventre
enorme atulhado de peixe!
V – A VENDA
A sardinha, no saco, é um peixe
inquieto e protestante. Sempre a saltar, vivinha, a saltar! e
quando não salta mais, então é sinal de que vai começar a morrer!
Às vezes o ruído sente-se ao
longe, como o cantar de uma cigarra ou como a fervura de uma
panela que está posta ao lume! anda no ar um tiroteio de escamas!
Outros peixes, pelo contrário,
tome-se para o exemplo o capatão, conservam-se até ao fim numa
calma e magnânima imobilidade; só de tempos a tempos arrumam com a
cauda um golpe tão bem puxado, tão formidável, que fica o campo
inteiramente varrido em volta deles!
Já se abaixam os enxalavares para
recolher a pescaria; já se formam os diferentes lotes na areia
para a arrematação em hasta pública!
Os mercantéis, chamados de Aveiro
pela tradicional bandeirinha içada no topo de um grande mastro,
andam todos por ali em volta, observando e fazendo cálculos,
dispostos a entrar em combate!
Deixem-me dizer entre parêntesis
que, quando era vivo José da Caetana, o rei da beira-mar, nunca
ninguém se atreveu a bater-se com ele às bordas de qualquer monte
em leilão.
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Entretanto as mulheres iam roubando sardinhas da seguinte maneira:
Com os dedos sorrateiros dos pés minavam o terreno debaixo do peixe.
É claro que, num dado momento, desmanchava-se o equilíbrio, e uma ou
mais sardinhas, escorregando por cima do lombo das outras...
chegavam-se mais para cá! Então os mesmos dedos dos pés, agora
desempenhando as funções de tenazes, prendiam-nas pelas guelras
ainda vermelhas e ofegantes. Em seguida dobrava-se a perna em ângulo
recto. Depois a mão, debaixo do xaile, recolhia o roubo do pé.
Nestas alturas restava apenas a operação facílima de deitar a presa
para dentro da giga que cada uma trazia à cabeça.
– Oito mél réis... oito mél réis...
oito mél réis...
O pregoeiro passava os olhos em
volta, à espera de algum sinal.
– Oito e quinhentos... oito e
quinhentos... nove mél réis... nove e quinhentos... Ninguém lança
mais? Está entregue!
Então o fisco tomava nota». |