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N.º 22

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1976 

Saudação a Jaime Cortesão

Por Mário Sacramento

Minhas Senhoras e meus Senhores:

Chegou enfim o ensejo, há tanto aguardado pelos democratas do Distrito de Aveiro, de festejar, com jubiloso carinho, o regresso do filho pródigo. Depositários de uma herança de estrénua fidelidade aos interesses do povo, legada pelos precursores e mártires cuja memória e exemplo estão celebrando, eles sentem-se investidos em sua pessoa colectiva, no mandato já centenário de pais e de filhos, que lidimamente se orgulham de haverem nascido nas orlas da laguna, junto à qual se ergue a cidade que Marques Gomes baptizou de berço da liberdade.

E é esse mandato que hoje vêm cumprir, uma vez mais, deixando trans­bordar de um coração represo, estas comovidas palavras:

Bem-vindo, Jaime Cortesão! Bem vindo ao seio ardente do povo a que pertence e que tão orgulhosamente se revê em si e na sua obra.

Filho pródigo, digo e repito. Mas pródigo não está porque dotado da férvida generosidade que o levou, como voluntário, aos campos de batalha no cumprimento do imperativo moral e que mais alto expõe na sua obra de poeta e de dramaturgo. Assim, com singular destino, que enforma a sua carreira de homem público, revestindo-a do simbolismo estranho que nimba as grandes figuras da humanidade e que sedimenta nos mitos.

Na verdade, para nós, democratas portugueses que nascemos a tempo de ler as suas «Cartas à Juventude» na idade utópica, a biografia de Jaime Cortesão não só restitui ao presente a túrgida seiva tão repassada de dor que manou do exílio pelas penas de Verney, Filinto e de Garrett, mas reveste o próprio exílio de uma profundidade histórica em que se reflecte, em toda a sua crueza, a crónica tétrica dos nossos dias.

Ele pode dizer, por isso, o mesmo que sentidamente escreveu na pequena jóia literária que é o seu «Remorso pela morte de Antero».

Há homens que sofrem e choram por gerações inteiras. Dir-se-ia que a certas horas há, pois, num mundo moral que eles hoje carregam sobre os ombros, todo o mal da vida.

Forçado a abandonar a Pátria no início do ano de 1927, encontra-se em Madrid no momento em que deflagra a guerra civil espanhola, abandonando Barcelona quando nela entram os tércios da Falange. Rompendo através da neve, galga os Pirinéus, carregando sobre si próprio os seus manuscritos e apontamentos literários. Está em França na altura em que as hordas de Hitler invadem a pátria de Diderot. E seguindo, enfim, para o Brasil, o proscrito miserando torna-se o Embaixador incredenciado da inteligência e da cultura pátria, dando o corpo e a vida a tudo o que ficou a unir os dois povos para lá da separação política.

Relanceados como ficam os momentos culminantes que entreabrem a Jaime Cortesão as fecundas perspectivas do simbolismo ético-histórico a que aludi, como estranhar que seja o seu nome que apareça, espécie de génio tutelar, no lugar de honra das comemorações com que os democratas do Distrito de Aveiro reatam este ano uma tradição mais que nenhuma cara aos seus corações de homens livres?

Pois que outro escritor português mais indicado para invocar a revolução que / 48 / deu origem à maior corrente migratória de exílio do nosso século XIX do que o protótipo do exilado do nosso século XX?

Para além, todavia, das razões de ordem moral, acresce esta outra para a vinda aqui de Jaime Cortesão, a qual, sendo de menor porte, não é de menor importância.

Jaime Cortesão é hoje o historiador português cuja obra podemos alinhar, sem uma sombra de reserva, na mesma estante em que guardamos Fernão Lopes, Damião de Góis, Herculano e Martins. E sendo-o, acresce nela uma particular autoridade para versar o tema de hoje. É que, para o autor de «Os factores democráticos na formação de Portugal», o argumento histórico do Grupo Social que em 1820 se lançou à conquista do poder político tem um tão largo e decisivo alcance que, segundo ele, a própria fisionomia da Pátria só veio a definir-se cabalmente no momento em que, emergindo no panorama económico-social, começou a intervir nos destinos da Nação, ou seja, em 1383. Preciso esclarecer, contudo, que ao referir-me deste modo ao historiador que é Jaime Cortesão eu estou apenas a destacar um aspecto da actividade de um homem que é um todo, ou seja, a vertente de uma personalidade una e mono­lítica. Na verdade, ao contrário do que tem acontecido a muitos outros altos espíritos que transitam para o pélago obscuro da missão histórica, o desperto humanismo de Jaime Cortesão não o abandona nunca e assim, em plena crise geral do idealismo filosófico, o racionalismo idealista de Jaime Cortesão resiste e como que sobrevive a si próprio.

E porquê?

Porque um democrata coerente, como é Jaime Cortesão, mergulha as raízes do seu ideário no mais profundo seio do povo.

O autor do «Cancioneiro Popular», das «Cantigas do povo para as Escolas» e de «O que o povo canta em Portugal» está presente em tudo o que o histo­riador escreve, e por isso ele declara, sentido: «Toda a história escrita tende a tornar-se uma interpretação actual do passado!»

Assim é, assim deve ser. Assim deve ser, sublinho, e, sublinhando-o, sinto-me feliz por reconhecer que a chama viva que tão fortemente ilumina o labor intelectual deste homem é a mesma que aquece os nossos corações de democratas de várias correntes, sim, mas de uma só atitude: a da mais indefectível confiança nos destinos do nosso povo e na sua jamais desmentida capacidade para se tornar senhor dos seus destinos.

Os homens que nasceram como eu na mais bela e trágica hora da vida da Humanidade (assim se lê nas «Cartas à Mocidade») e os que connosco têm partilhado um mundo de catástrofes, incêndios, ruínas, incertezas, que o clarão de Hiroshima não cessou ainda de alucinar, seguimos irmanados pelo caminho que o mentor ilustre da juventude mostrou existir ao lado dele.

Um coro de esperança se ergue do coração dos homens e de nós depende que essa esperança se volva em realidade e que outro canto mais ansioso e alevantado se erga sobre a terra. O vibrante e ardente hino de paz do heróico autor das «Memórias da Grande Guerra» bem merece de todos, porque ele o diz: «Já me sacrifiquei pelos homens todos, pela beleza da vida, posso falar» – e é isso que vai fazer.

 

páginas 47 e 48

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