A história da nossa vila é uma
história muito caseira, uma verdadeira história de lareira, sem
grandes feitos heróicos. Na verdade, pecamos por não havermos
heróis, frases lapidares que as mocidades gravem na memória,
assaltos a praças fortes, assédios violentos, cargas épicas de
ginetes, e tantas outras imagens maravilhosas que as nossas
recordações, de vez em quando, vão desfiando.
Alevantados castelos, nem um único
houve na nossa história de pobres. E apesar do desejo de alguns, só
foi encontrado o lugar do Castelo, nome poético, inverdadeiro, e que
mais tarde se transformou em modesta escola primária.
Mas, para nosso orgulho, podemos
apontar um pequeno e modesto fortim, perdido, plantado nas
proximidades do Carregal. O General João de Almeida elucida-nos de
que se tratava duma construção castrense, cujos vestígios ainda
existiam em meados do século passado. Devia ser uma atalaia,
composta de uma única torre, circundada por um pequeno recinto
amuralhado, destinada a servir de vigia e a defender a costa dos
ataques dos piratas normandos.
E são estes os únicos vestígios
históricos que parecem provar o nosso pouco zelo guerreiro.
Mas, se os monumentos primitivos
escasseiam na história de Ovar, tem lugar preponderante a «gente
pequena», os «povos miúdos», no dizer clássico do cronista Fernão
Lopes, onde todos os heróis se mesclam e nivelam.
E em todos os passos andados da
nossa história sempre encontramos o apagado vareiro, ora agarrado à
sua enxada, ora a mercadejar pelas povoações próximas, ora na faina
da pesca.
A génese da povoação vareira está
intimamente ligada a dois grandes factores geográficos, que
condicionam toda a nossa história local: – a ria e o mar.
Na verdade, foi o meio geográfico
que moldou o tipo étnico do vareiro e lhe emprestou o fatalismo que
lhe corre no sangue.
O vareiro assistiu à formação da ria
e deve ter sido ele o primeiro entre os primeiros que a conquistou.
De facto, a formação do notável
acidente geográfico, que é a nossa ria, é relativamente recente e
deve situar-se nos primórdios da nossa nacionalidade.
Um pouco antes do século XII,
podemos considerar quase toda a zona baixa da vila como uma região
pantanosa, sulcada de inúmeros esteiros e de caniços. A ria
prolongava-se até próximo de Cabanões pelas várzeas dos rios da
Graça e Luzes e, pelo lado sul e leste desta futura povoação,
estendiam-se as hortas e mais terras que, mais tarde, dariam lugar
às da Granja e Assões, com a designação de Ovar de Cima.
O próprio e actual jardim dos Campos
era, por volta ainda do ano da graça de 1850, conhecido pela Lagoa
dos Campos.
Este acidente geográfico, que se
estende desde o Carregal ao Poço da Cruz, em Mira, numa distância de
47 km, não é mais do que um esteiro de reduzida profundidade e que
tem sido comparável, com os seus inúmeros canais que formam as Rias
de Ovar e Murtosa, ao Norte, e de Vagos e Mira, ao Sul, a um enorme
polvo de grossos tentáculos.
Normalmente, as rias formam-se
devido a movimentos radiais das costas originando-se, assim,
invasões dos vales pelas águas dos mares.
Alguns autores, contudo, têm
preferido a palavra haff à designação de ria, pois que,
sustentam com pesados argumentos, se verifica uma identidade
profunda com os acidentes geográficos da costa do Báltico, onde
desaguam os grandes rios alemães, sempre limitados por um extenso
cordão de dunas a cercar as embocaduras dos rios.
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O portulano de Petrus Visconti
apresenta a região lagunar sem o cordão de areias e, apesar de
datado de 1318, tem sido considerado, aquele precioso documento,
como decalcado de outros mapas de séculos anteriores.
A costa primitiva do distrito de
Aveiro não era mais do que uma reentrância acentuada que tocava em
Esmoriz, Estarreja, Eirol, Cacia, Esgueira, Aveiro, Ílhavo, Vagos e
Mira, indo morrer no Cabo Mondego. Os rios Vouga, Águeda e Cértima
apresentavam as suas fozes completamente independentes.
À entrada desta grande reentrância,
de águas quase paradas, efectuou-se intensa sedimentação, resultando
a formação de dois cordões aluviais, no sentido um do outro.
Esta transformação operou-se, não
somente com as aluviões marítimas, mas também com as aluviões
fluviais, desempenhando grande importância as do Rio Douro. Com o
auxílio dos ventos predominantes do norte, as areias tendem a
deslocar-se ao longo da Costa, na direcção sul, e vão alinhando a
reentrância entre Esmoriz e o Cabo Mondego, num trabalho moroso,
lento, mas constante de vários séculos.
Acresce a este fenómeno a acção das
marés e das vagas que vão alastrando as areias cada vez mais para o
interior.
Também os ventos concorreram para a
fixação do cordão litoral. As areias e demais detritos transportados
pelos ventos, com relevo para o «mareiro», acumulam-se quando
encontram qualquer obstáculo, resultando desta acumulação o
aparecimento de dunas que, submetidas por sua vez à acção eólica,
vão as suas areias sendo transportadas para novos lugares.
Por outro lado, os rios Vouga,
Águeda e Cértima realizaram uma sedimentação intensa junto às suas
fozes com as aluviões, transportadas pelas suas águas, que se foram
acumulando sobre o cordão de areias em vias de formação.
Este cordão tem uma largura de cerca
de 2 km. A comunicação com o mar faz-se pela Barra Nova e a
simbologia deste nome sugere-nos a existência, em tempos recuados,
de barras velhas: – Torreira, Vagos, Barrinha de Esmoriz e Mira,
pois que, segundo o Prof. Amorim Girão «por grandes vicissitudes tem
passado a zona lagunar, mesmo dentro dos tempos históricos, diversas
devendo ter sido as soluções de continuidade no cordão que marginava
a Ria, e diversos também os pontos onde nela desembocava o Rio
Vouga».
Entretanto vai-se processando a
estrutura social da futura vila, numa forma bastante rudimentar e,
para a bem compreendermos, não podemos olvidar os trabalhos do
notável estudioso, que foi Alberto Sampaio, o admirável historiador
das instituições rurais, bem como o manancial de informações que nos
foram legadas por Herculano.
Nesse recuado século X, a vida em
sociedade, em todo o litoral norte, fazia-se nos castros, onde
habitavam vários povos, distinguindo-se, em especial, os túrdulos
antigos, estabelecidos na região compreendida entre os Rios Douro e
Vouga. Mas, com a dominação romana, os castros foram devassados e
toda a precária estrutura social sofreu enorme transformação. A
romanização criou uma sociedade rural e os hábitos das populações
suportaram o forte influxo da civilização latina.
Dá-se então o aparecimento da
villa, unidade puramente agrária e fiscal, e procede-se à sua
demarcação administrativa, com padrões. Criada a villa,
recebe esta um nome romano, geralmente o do seu senhor e
proprietário. Mas, na Península Ibérica, palco de inúmeras invasões
de diferentes povos, não foi possível eliminar grande parte dos
legados romanos, permanecendo nas sociedades dos povos as
influências duma romanização sólida.
Apesar de tudo, a simbiose das
diferentes populações invasoras implicou um retalhamento nas
sociedades primitivas; às antigas villas sucedem-se novas
agremiações: – as freguesias. E se aquelas foram
principalmente simples propriedades, as freguesias não são mais do
que comunas, erigidas em volta de uma igreja. A Igreja passa a ser,
então, o ponto de convergência de toda a freguesia.
As freguesias também resultaram da
fusão de villas. Muitas das vezes, o nome da villa
mais importante ficava a designar a nova freguesia.
No moldamento do lugarejo vareiro, o
processamento histórico da povoação operou-se em termos semelhantes.
Uma pergunta desde já se impõe: -.
Qual o primitivo nome da freguesia: Ovar ou Cabanões?
Não há, entre os estudiosos,
unanimidade de pontos de vista. E, se a grande maioria opta pela
vila de Cabanões, como mater da nossa vila, o que parece não
oferecer dúvidas é que Ovar resultou da fusão de várias vilas
próximas, sendo, entre as mais importantes a de Ovar e a de
Cabanões.
Mas, qual destas vilas a primeira no
tempo?
Monsenhor Miguel de Oliveira,
erudita Autoridade nestes assuntos, manifestava a opinião que a vila
de Ovar é mais antiga que a vila de Cabanões, não perfilhando, deste
modo, da tese do autor das «Memórias e Datas». Chega mesma a
afirmar, o notável historiador, que carece de fundamento a hipótese
de João Frederico, «que os primeiras habitantes dos antiquíssimos
lugarejos de Cabanões e S. Donato foram cristãos-godos tresmalhados,
depois da funesta batalha» de Guadalete, na Península.
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Efectivamente, a designação de Ovar
remonta ao século X, pois já nesse período, em documento avoengo se
fala no Porto de Ovar.
E esta palavra porto de Ovar deve
ser tomada no sentido genérico de, não só, de passagem de pessoas e
coisas, como também de embarque na beira-mar. Qualquer destes dois
significados podia o termo abranger, no caso estrito de Ovar: –
porto de mar – o que nos parece o mais curial, dado o facto de,
nessa época afastada, a Ria se encontrar em estado de gestação – e
também de passagem entre o norte e o sul.
Contudo, no último quartel do século
X, o nome de Cabanões veio a ter uma notoriedade mais saliente que o
de Ovar.
A que se deve atribuir este facto?
Naqueles conturbados tempos, esta
faixa do litoral sofreu enormes devastações com a invasão árabe,
capitaneada pelo temível Almançor.
As pobres populações dos indefesos
povoados só na fuga conquistam a salvação e tudo abandonavam à sanha
mourisca de extermínio. Mas, passados os primeiros dias de terror,
voltavam as gentes às suas antigas povoações a tentar refazer as
suas vidas e os seus lares destruídos.
E vão de construir as suas aldeias
com choupanas ou de «cabaneiras», como eram conhecidas. E desta
simbologia apareceu a origem de Cabanões.
O documento mais antigo que se
refere a esta vila aparece um século após o aparecimento do de Ovar.
Referia-se à pirataria praticada em larga escala nesta parte da
costa pelos temíveis normandos, que durante duas longas centenas de
anos cruzaram este litoral e chegaram a fundar uma colónia normanda,
na Murtosa.
Mas as dúvidas acumulam-se, bem como
o campo das hipóteses, quando se estuda a instituição da paróquia.
Qual a primeira igreja no tempo?
S. João, em Cabanões, S. Donato ou
S. Cristóvão, em Ovar?
É tradição corrente que o primeiro
templo paroquial seria o da capela de S. João, situado no local que
actualmente ocupa, na aldeia de Cabanões, então freguesia.
Reza a tradição que o primitivo
templo existia no século VIII. Ali esteve o cemitério, no pequeno
adro da igreja, de que há ainda vestígios, no túmulo de pedra que
naquele lugar se admira, pertencente a D. Paio de Carvalho, denodado
cavaIeiro de D. Afonso V, e nas inúmeras ossadas encontradas, por
ocasião da abertura da actual estrada.
No que se refere à capela de S.
Donato, já no ano longínquo de 922, temos notícias da sua
existência, pois em documento dessa época se fala da doação da
capela que existia no lugar de Guilhovai (Guilmar), ao mosteiro de
Crestuma.
Apesar das notícias que se lhe
referem, nada consta que S. Donato chegasse a ser freguesia
independente.
Segundo o padre Lírio, o nome de S.
Donato deriva do facto daquele lugar ter sido doado ou donato ao
mosteiro de Crestuma; no entanto, Monsenhor Miguel de Oliveira
admite a viabilidade da tradição, segundo a qual o topónimo vem de
ali jazer o bem aventurado Donato, discípulo do apóstolo S. Tiago
das Espanhas.
Da primitiva capelinha erigida no
local do martírio do santo, que devia datar dos primeiros tempos da
cristianização da Península, nada resta, pois foi demolida em 1906,
pela simples vontade dos homens.
Mas, o que parece não oferecer
dúvidas é que todos os documentos da época relativos à paróquia lhe
dão como orago S. Cristóvão de Cabanões.
E onde se situava esta igreja?
Já dissemos que o nome de Cabanões
chegou a ter uma maior projecção que o próprio nome de Ovar,
designando toda a freguesia.
Ora, nos fins do século XIII, o
núcleo urbano da vila localizava-se em Ovar e não em Cabanões. Para
comodidade da população, a sede da paróquia erigia-se quase sempre
na parte central do aglomerado, aproveitando-se grande parte das
vezes da proximidade dos cursos de água.
Na actual situação da nossa igreja
concorrem estas circunstâncias. Será, pois, mais fácil admitir que
se operou a mudança do nome à freguesia do que terem os vareiros
mudado de casa, por vota de 1600, como assevera Monsenhor Miguel de
Oliveira.
Uma pergunta agora se impõe: – Como
surgiu o topónimo Ovar?
Podemos considerar dois tipos de
explicações para a formação do nome da nossa vila:
a) As de tipo meramente fantasista e
b) As com uma dada base lógica.
No primeiro grupo, que,
infelizmente, tem maior audiência, o nome de Ovar é devido:
1.º – Às grandes multidões de aves
palustres, que nesta boa terra faziam os seus ninhos e aqui vinham
«ovar», isto é, pôr ovos.
Esta é a explicação apresentada pelo
Dr. João Frederico, nas suas «Memórias e Datas» que, contudo, não
chega a terçar as suas armas por ela.
2.º – O nome de Ovar deve-se a uma
corruptela das gentes de Cabanões que quando se deslocavam à vila,
localizada num vale ou vai, trocavam o I pelo r pronunciando
que iam óvar.
3.º – Pinho Leal afirma a origem
francesa no sugestivo nome da nossa Grei.
Na verdade, em Franca, corre o rio
Var, que desagua no Mediterrâneo, na província de Provença e alguns
marinheiros dessa linda região teriam fundado neste litoral norte
uma povoação a que teriam denominado de Var, em honra do rio
da sua distante terra.
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4.º – Strecht de Vasconcelos, em
artigo publicado no interessante e antigo almanaque de Ovar,
sustenta que BAR, do grego, deriva de BALT, palavra que significa
massa de águas tranquilas.
Desta forma, Ovar é o substantivo de
O BAR, o mesmo que povoação situada à borda do mar e lugar
apropriado para a entrada e saída de embarcações.
São estas as explicações fantasistas
e que, apesar de tudo, são seguidas por numerosa corte de
prosélitos.
Seguem-se, agora, as lógicas.
Comecemos pelo eminente filólogo,
Dr. Leite de Vasconcelos, segundo o qual o nome de Ovar é derivado
de Odvari, forma genitiva do nome de um proprietário
medieval.
Aproveitamos a ocasião que se nos
oferece para confessarmos que nos parece ser esta a explicação mais
plausível, pois como já tivemos ocasião de mencionar, o nome das
vilas deriva do apelido do respectivo senhorio. Acresce a
circunstância que todos os elementos germânicos da toponímia
peninsular são primitivamente nomes de pessoas.
Em Ovar temos o genitivo do nome
medieval Odvarius, que é a forma latinizada dum nome germânico.
Sendo assim, é lógico que se
pergunte: – Em que época viveu Odvárius, antigo senhor desta nossa
Santa Terra?
A opinião mais correntemente aceite
é que os elementos onomásticos das povoações tiveram lugar no antigo
período visigótico. Abundavam nessa época os nomes de origem
germânica.
Mas as inúmeras explicações não
param aqui. Para o falecido Dr. José de Almeida a palavra Ovar tem
origem no sânscrito e a sua raiz é Vari, o mesmo que região
de águas, que bem pode aplicar-se à nossa região.
O saudoso Dr. Zagalo dos Santos
escreveu que ulva significa género de algas, que nascem nos pauis e
à beira de águas estagnadas. Ulvar não é mais do que apanha das
algas, do conhecido moliço.
Concluía, pois, o erudito vereido,
que Ovar, forma actual do verbo ulvar, «significa a terra ou região
onde se procurava as algas, hoje moliço, alimento da duna, berço,
calvário e coval de todos quantos nos vêm legando a Igreja, a rua, a
ponte, o pinhaI, o casario, a sede de interesse, a poesia da
tradição e a poderosa grilheta dos costumes, que fizeram a nossa
personalidade.
E já agora, para finalizarmos esta
despretensiosa conversa, detenhamo-nos um pouco na paisagem humana.
Como será o tipo vareiro?
Ora, já relatámos, se bem que
apressadamente, que esta faixa do litoral assistiu a numerosas
fixações de diferentes povos, que foram acrescentando à sociedade
humana, que então se criava, as suas características próprias, mais
predominantes.
Magalhães Lima defendia a tese da
existência duma colónia de normandos, na vizinha Murtosa, o que não
nos deve causar espanto, sabido que as nossas costas foram visitadas
durante duas centenas de anos por esses intemeratos piratas do mar.
Em Ílhavo não oferece contestação de
qualquer espécie o estabelecimento duma colónia fenícia.
Assim, os altivos celtas, os
bárbaros visigóticos, os aguerridos godos, os cultos romanos, os
morenos árabes e tantos outros povos caminharam e estabeleceram-se
por vezes, por toda esta zona. Fixação longa, breve, meteórica,
talvez um pouco de tudo, mas fixação e com ela a resultante dum
caldeamento de sangues de várias raças e tipos.
Com esta mescla de povos se terá por
consequência operado, no cadinho misterioso da vida, a origem étnica
da população presente.
Que em todos nós se assomam por
vezes resquícios de todos estes povos, é uma verdade que não devemos
pôr em suspeita.
Correram os anos, os séculos
sucedem-se, e os tipos somáticos de cada raça foram-se
uniformizando, descaracterizando-se cada vez mais e com maior
intensidade, à medida que o tempo decorria, até se chegar ao actual
tipo do vareiro.
É inegável que o vareiro – que somos
quase todos nós – conserva ainda nestes nossos dias, e em alguns
casos mais frisantes, diferenciações nítidas: louros, altos, como os
normandos e visigóticos, ou baixos de tez pálida, de grande e
desenvolvido tronco, com pernas curtas, como os celtas, ou ainda
morenos, de olhos negros, de características acentuadamente árabes.
Tudo isto se depara, com grande grau de pluriformidade no homem de
Ovar.
Mas, se a passagem, por vezes
apressada, destes povos marcou para sempre o corpo do vareiro com os
estigmas mais caracterizantes, as suas influências de cultura, de
costumes, topónimos e tudo o mais relativo ao viver em sociedade,
foi transmitido e assimilado, um pouco, pelos nossos avós.
E, já agora, seja-nos permitido
lembrar que o lugar da bela Pousada da Ria, o conhecido Muranzel, é
de origem árabe.
No próprio traje, que
indubitavelmente sofreu a influência padronizada do tempo presente,
ainda se encontram influências muitíssimo atenuadas, é certo, do que
acabamos de afirmar: – o gabão vareiro, o barrete do pescador, e
tantos outros trajes já completamente desaparecidos, não são mais do
que recordações verdadeiras do vestir das épocas recuadas da nossa
história, e por razões, a que não pode ser estranho o imobilismo
congénito da nossa gente, conseguiu chegar a este século da energia
atómica.
/ 9 /
Do viver dos vareiros, todos os
estudiosos são concordes. Foi um viver difícil, eriçado de tremendas
dificuldades, uns a cavar penosamente o solo agro, que transformavam
em férteis hortas; outros estenderam-se ao longo da corda marítima,
a lutar com o mar; outros, exercício da indústria da pesca da
xávega; outros ainda dedicaram-se à indústria do sal, estabelecendo
as primeiras salinas neste «Portugal à Beira Mar Plantado» e somente
mais tarde é que Aveiro e Vila do Conde se dedicaram a esta
actividade.
As salinas localizavam-se em Válega,
e julga-se que tenham desaparecido há cerca de 500 anos, sem terem
deixado continuadores.
Conjuntamente com esta indústria do
sal, que atingiu uma importância relativa, desenvolveu-se a
indústria da pesca, que chegou até aos nossos dias sem quase
usufruir de qualquer progresso.
A pesca exercia-se, e ainda se
exerce, em companhas de xávega, e invariavelmente, em todos os
inícios da semana, os pescadores de farnel e saca aviada de roupa,
deslocavam-se de Ovar ao longo da costa, na procura dos melhores
pesqueiros de, aproximadamente, Espinho a Mira.
E como a jornada diária para a vila
não era viável, vão de erguer toscamente os seus casebres de
madeiros, junto do mar, e aí permaneciam isolados dos seus
familiares, durante toda a semana, a curtir dilatadas nostalgias, na
safra diária da pesca, se o mar o permitia.
Neste mister chegaram a andar para
cima de 3000 almas, repartidas por várias companhas.
Depois do Natal acabavam os
trabalhos marítimos e muitos pescadores procuravam canseiras no Rio
Douro, Vila do Conde e Póvoa.
A pesca, em Ovar, começou por
exercer-se na Ria. E só depois do vareiro ter sentido no seu sangue
e na sua carne os desejos de continuar pescador, é que se afoitou ao
mar.
Chegado o entardecer de sábado,
regressavam a penates a matar saudades e a levar o modesto pecúlio
do seu trabalho à família.
Quando o fim da safra vinha
recolhiam a suas casas, juntamente com as redes.
Desde tempos imemoriais habitavam a
Ruela, e a pouco e pouco foram-se deslocando para ocidente,
conjuntamente com algumas famílias, dilatando-se a povoação pela
margem direita do Rio da Senhora da Graça. Depois, para maior
comodidade, foram-se aproximando da costa, instalando-se
definitivamente nesta terra de S. Cristóvão à medida que ela
distendia o seu domínio à custa da Ria e do Mar.
Quanto aos que se fizeram
lavradores, o trabalho não foi menos pesado, no trabalhar desta
terra árida, abandonada pelas águas e sofrendo constante erosão
eólica.
Os que residiam perto do mar ou da
ria puderam utilizar as ricas pastagens desta faixa de areia que
corre paralelamente ao acidente geográfico.
Era a gelfa. E a gelfa, segundo a
circunspecta Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, não é mais do que
«um campo de pastagens de gado». A gelfa, que se estendia por todo
aquele cordão, ao norte do rio Vouga, pertencia a Ovar.
À medida que se verificou o
deslocamento progressivo da barra e da foz do Vouga, a caminho do
sul, assistiu-se ao crescimento da vila e o seu enteste com Mira.
Houve o cuidado de, em documento
público, firmado pelos maiorais, que o limite de Ovar ia até 3
léguas mais ao sul e a consignar este direito alçou-se um marco de
esquadria, com o limite do concelho.
No mesmo documento exarou-se o
direito dos lavradores vareiros usufruírem dos pastos da gelfa para
os seus gados.
Mas o «homem põe e Deus dispõe», e
não tardou que o padrão, título da nossa soberania, fosse arrancado
e desprezados os direitos das nossas gentes, só lhes permitindo
trazer o gado até ao lugar da Senhora do Bom Sucesso, da Torreira.
Depois a gelfa passou de
arrendamento ao mosteiro de Grijó por cinco libras anuais, que lá
trazia numerosas cabeças de gado.
Mas o mosteiro encontrava-se longe,
e o lavrador astuto e pegado à terra, fazia vista grossa e algumas
vezes à sorrelfa, outras vezes impante de sobrançaria, mandava para
as pastagens da gelfa o seu gado, convertendo esta em logradouro
comum.
E são estas as características que
condicionaram as vivências do vareiro.
No homem de Ovar, compósito híbrido
de vários sangues de diferentes povos, sobressai uma personalidade
fortemente individualista, quase egoísta, introvertida.
Suporta nos ombros uma indolência
congénita, um espírito sonhador, herdado dos seus avoengos árabes.
As dificuldades do próprio meio
agreste, a luta constante com os elementos naturais que o cercavam,
as tremendas dificuldades criadas com invasões sucessivas, moldaram
no vareiro uma alma submissa, temente a Deus e por vezes
desconfiada.
E, se em alguns, não é difícil
encontrar o homem combativo, enérgico, a ressumar por todos os poros
da pele ideais sem conta, podemos quase augurar-lhe que nas suas
veias borbota sangue latino.
Tipo bem definido, o homem de Ovar?
Não. Longe disso. Cadinho de várias
progénies, de várias raças, pesa-lhe sempre na sua psique um
atavismo de dez séculos de que não pode afoitamente libertar-se. |