ACTO II
A cena representa o Largo Municipal.
Ao fundo, o edifício da Câmara e, em plano anterior, a estátua de
José Estêvão. Bancos de jardim.
Zé, sentado num banco, dorme profundamente. Sujeitos que vão passando
avançam quase até ao proscénio e cantam.
Um deles –
Neste «largo dos Pacatos»,
de dia – ninguém vê isto! –,
passeia, de mãos atrás,
| bis com o coro
o nosso bom Manel
Cristo
| “ “ “
Um deles –
De verão, em noites claras
– isto até vai pro jornal! –,
aqui guia a caravana.
|
bis com o coro
o Dr. Luís do Vale.
|
“ “
“
Um deles –
Em noites de lua cheia,
vem o Rebocho Agapito,
o Paixão, o Silva Pereira
| bis
com o coro
outro Rebocho bonito.
|
“ “ “
Um deles –
Digam agora, Senhores,
digam todos, mas à fé,
se este nosso larguinho
| bis
com o coro
dos bons pacatos não é!
| “
“ “
(Saem. Entra Má-Língua)
MÁ LÍNGUA (Mãos atrás das costas,
vem na peugada dos populares. Olha a estátua e dirige-se ao Zé).
– Ó cavalheiro! (Zé continua dormindo) Ó amigo!
ZÉ – Que é lá? (mal humorado)
Que é que quer?
MÁ LÍNGUA – Diga-me cá. Porque é que
engraxaram as botas ao José Estêvão?
ZÉ – Ora essa! Então não sabe? Como
no domingo chegam excursionistas de Viana, Aveiro lavou a cara,
cortou as unhas, pôs pó de arroz e fez «toilette».
MÁ LÍNGUA – Muito me diz. (Muito
baixo) Olhe lá. E de novidades? Como vamos?
ZÉ – Não sei tanto como isto (indica
a ponta de um dedo).
MÁ LÍNGUA – Sabe-me dizer onde está
esse Dr. Pangloss?
ZÉ – Conhece-o?
MÁ LÍNGUA – Conheço. Quer dizer: já
o vi, mas ainda não lhe falei.
ZÉ – Estou à espera dele. É um
filósofo. Para ele, tudo está good, tudo bonne. Não deve tardar.
MÁ LÍNGUA – Pois eu também sou
filósofo.
ZÉ – Com essa cara?!
MÁ LÍNGUA – Sim ,senhor. E tenho a
certeza de que o meu sistema filosófico tem mais adeptos e é o mais
racionalmente menos disparatado.
ZÉ – Em que se funda o seu sistema?
MÁ LÍNGUA – Eu lhe digo. Eu não sou
positivamente um epicurista. Está a compreender, não é verdade? Não
sou. Mas considero a Terra um enorme tonel, cheio de vinho branco,
onde vão beber, num ansioso desejo de progresso, os filósofos como
eu. A torneira são as bocas do mundo! (Solene) No mundo
/ 27 / só há uma
verdade: a do vinho! Ando a escrever uma obra em 73 volumes,
intitulada «Elogio do Vinho», com um sugestivo subtítulo: «In vino
veritas». Essa obra descomunal vai ser traduzida em inglês ali pelo
Dr. Coimbra, do Liceu; em Hebraico, pelo P.e Vieira; em
francês, pelo Dr. Queirós e em esperanto pelo Faria, do Ultramarino.
ZÉ – Faria?!
MÁ LÍNGUA – Sim Pelo Director da
Creche Aveirense.
ZÉ – Ah! Já sei.
MÁ LÍNGUA – É pra isso que eu queria
encontrar-me com o meu colega Pangloss, estar com ele umas horas,
discutir, filosofar, criticar, esmerilhar, esquadrinhar, porque da
discussão nasce a luz do progresso regional.
ZÉ (Aparte) – Irra! Que
maçador!
MÁ LÍNGUA – Compreendeu?
ZÉ – Compreendi, sim, mas olhe que
hoje não é ocasião de lhe falar, porque ele vem aqui, propositada e
exclusivamente para contemplar este Largo e as suas belezas.
MÁ LÍNGUA – Nesse caso, vou-me à
vida. Muita saúde Tenho muito que fazer: daqui, dirijo-me à casa do
António de Pinho, à Praça do Peixe, para provar uma bela pinga de
verdasco, tipo de Amarante, que lhe chegou hoje às 10 e meia da
manhã; depois, sigo para a rua de S. Bartolomeu, saber coisas acerca
daquele escândalo da filha da tia do Bernardino Escacha... Porque –
sabe? – eu sou muito curioso. Quer ouvir? (Canta)
Eu sou o curioso
que de todos maldigo;
de ninguém sou amigo;
sou um ser invejoso.
Sou o «eterno perguntas»,
o que passa pelas portas,
de noite, a horas mortas,
e espreita pelas portas.
Nas horas vagas,
sou filósofo barato;
com tino e com tacto
a S. Martinho vou.
ZÉ (Cantando)
Curioso,
Invejoso,
a ninguém
| Bis
queres bem
|
"
É serpente
que na gente
mansamente | Bis
metes dente!
|
"
(Declamando) – Muito gosto em
conhecê-lo, de longe. Vá para o Diabo, mais a sua filosofia!
MÁ LÍNGUA – Olhe lá Quem é aquela
máscara?
ZÉ – Vejamos. (Entra uma mulher
mascarada).
*
MÁSCARA (com dominó de fantasia,
atravessando a cena) – Adeus, peludos!
ZÉ – Peluda... Será ela.
MÁ LÍNGUA – Veja se a conhece.
ZÉ – Espera! (A máscara pára)
Deixa ver quem és. (A máscara consente, sem que o Má-Língua
perceba) Já sei Já sei! Podes ir. (Para Má-Língua) Sabe
quem é?
MÁ LÍNGUA – Não. (Com curiosidade)
Quem é? Quem é? (A máscara sai).
*
ZÉ (Cantando)
É segredo que não digo;
ficará sempre comigo;
cá no peito morrerá!
Podemos, porém, contar
Vê-lo aqui atravessar
| Bis
pro Teatro, acolá.
|
"
No Teatro cá de Aveiro,
logo depois de Fevereiro,
a toda a gente pasmada,
hão-de os seus autores um dia,
ambos eles, à porfia!,
| Bis
dar a bela «Caldeirada».
|
"
MÁ LÍNGUA – Nesse caso, até mais
ver!
ZÉ – Até sempre, seu Má Língua. Está
a compreender?
MÁ LÍNGUA – Perfeitamente. A bom
filósofo meia filosofia basta. Adeus! (Solene) O meu
sistema...
ZÉ (Imitando-o) – ...É como o
de S. Martinho: reside num copo de vinho
MÁ LÍNGUA – Nem mais, nem menos. (Sai)
*
ZÉ – Isto é que é um ponto! Ele há
cada um!... (Senta-se. Ao fundo, passam duas criadas de servir,
cantando).
/
28 /
Ó bonequinha,
agora, agora;
ó bonequinha,
agora, já...
*
PANGLOSS – Good evening!
ZÉ (Erguendo-se) – Good
evening, Sr. Doutor. Bem disposto, como parece, para observar o
Largo dos Pacatos?
PANGLOSS – Yes! Thank you! Muita bem
disposta. É este?
ZÉ – É este. Vou descrevê-lo a V.
Ex.ª. O Largo dos pacatos é um recinto arborizado, aveirense de lei,
que vê: a leste, a farmácia com os seus remédios; a D. Célia com a
sua cirurgia; o Soares com a sua dentadura, o Manuel Moreira com os
seus panos e vidros; a Misericórdia com os azulejos e o Colégio
Português com a sua tabuleta escrita em pretuguês; ao Norte, o
Correio com a sua inebriante água de colónia; ao Sul, a Câmara, a
Domus Municipalis, com as suas eternas, mas encantadoras ruínas e
higiénicas prisões, e ao Poente, o Liceu, de gloriosa memória e
académica tradição.
PANGLOSS – De quem é a farmácia?
ZÉ – É do Brito. É o clube dos
Papos-Secos cá do burgo. Olhe! Eles aí vêm! (Entram os três
Papos-Secos)
*
DR. BISMUTO – Sou o Dr. Bismuto.
DR. DEPRECADA – Dr. Deprecada.
DR. SARDINHA – Dr. Sardinha.
TODOS –
Sem eira nem beira,
sem chelpa, sem nada!
Somos os três janotinhas,
Papos-Secos trics, trics;
cá na cidade não há
figurinos assim chics.
Se no Brito, à Costeira,
passa cachopa com graça,
vamos todos na esteira,
como faz o cão de caça.
Se alguém passa
ali, no Brito,
ouve chalaça
| Bis
de ficar aflito,
|
"
ZÉ (Para Pangloss) – Repare
bem para estes mancebos! (Para Dr. Bismuto) – Ó Sr. Dr.
Bismuto, dá-me uma calcinha branca?
DR. BISMUTO – Pois não! (Dá-lhe
um cigarro.)
ZÉ – Quem dá um cigarro dá um
fósforo. (Bismuto tira uma caixa de fósforos, mas esta está
vazia.)
DR. BISMUTO – Não há. Recolheram à
Companhia para levarem nova sobrecarga. Mas tenho isqueiro. Tome lá!
(Acende-o. Entram dois fiscais)
*
FISCAIS (Cantando) –
Nós fomos chamados
aqui, à porfia,
pra serem pilhados
quem selo não queria.
Denúncia foi, certa:
a tal gente é esta.
Ficarão filados,
e catrafilados!
PANGLOSS – Quem serem vocês?
FISCAIS (Cantando)
Fieis empregados
nós somos do selo;
de rijo trabalho
nós somos modelo.
Selamos isqueiros,
selamos recibos,
selamos padeiros,
selamos os chibos;
selamos quem casa,
selamos quem morre,
selamos quem pára,
selamos quem corre.
PANGLOSS –
Ser capazes, ser
de selar a night!
Que cousa tão feia! | Bis
Yes! Ali right!
|
"
FISCAIS –
Fieis empregados
nós somos do selo;
de rijo trabalho
nós somos modelo.
Selamos o vinho,
selamos a isca,
selamos as cartas
/ 29 /
pró jogo da bisca.
Selamos contratos,
selamos bilhetes,
selamos as bombas,
selamos foguetes.
PANGLOSS –
Ser capazes, ser
de selar a night!
Que cousa tão feia! | Bis
Yes! Ali right!
|
"
1.º FISCAL – Qual dos senhores é que
fez uso dum acendedor automático?
DR. BISMUTO – V. Ex.as
decerto, estão equivocadas. Nós somos respeitadores da lei. Não há
fósforos, mas prescindimos deles.
2.º FISCAL – Os cavalheiros façam o
favor de nos acompanhar.
PANGLOSS – Peço reverencia
para estes senhores. Eu ser Pangloss.
1.º FISCAL – Sinto muito que V. Ex.ª
seja o Sr. Pão de Ló... Mas são ordes! Venham daí. E é já!
FISCAIS (Cantando)
A galope, é já partir,
é já, é já, é já!
Sem a menor detenção,
Olé, olé, olá!
Fica sem ter que vestir,
é já, é já, é já!
quem cair na nossa mão,
Olé, olé, olá!
TODOS –
A galope, é já partir,
sem a menor detenção;
Fica sem ter que vestir
quem cair na nossa (ou vossa)
mão.
(Saem. Ouve-se fora da cena –
Hip! Hip! Hip! Hurrah! – e entram dois bolistas, cada um com sua
bola. Calção e camisola de futebol)
*
ZÉ – Vamos apreciar este par de
galhetas.
1.º BOLISTA – És bruto, homem! És
uma cavalgadura!
ZÉ – Como vê, Sr. Doutor, estes
entendem-se bem.
2.º BOLISTA – Cavalgadura, porquê?
1.º BOLlSTA – Nunca tu poderás
convencer-me de que a natação é superior ao futebol.
2.º BOLlSTA – Cavalgadura és tu,
porque eu nunca disse isso. Sei muito bem que é no futebol que está
a salvação do país.
ZÉ – Vê, Dr. Pangloss? A salvação de
Portugal está na bola! Anda tudo fora dos eixos.
1.º BOLlSTA – Pois claro!
2.º BOLlSTA – As estatísticas é que
falam, alto e bom som! Antes de haver futebol no nosso país, a
densidade de tuberculosos era de 75 centésimos por km2;
depois do futebol, essa densidade subiu, quero dizer, desceu para
uma milésima. Não venhas para cá com as tuas teorias, que são
falsas.
ZÉ – Vivam! Então? Temos hoje
desafio?
1.º BOLlSTA – Três: um no Rossio,
entre os negros de Coimbra e os amarelos da S. P. T., da Forca; o
segundo, no Largo do Governo Civil: bater-se-ão como leões dos
grupos fixes – os onze de Portimão e outros tantos do Social
Sport da Praça do Peixe; finalmente, no Cojo, lutaram como feras
Os Galitos, com o Pompeu e o Natividade à frente, e os do
Beira-Mar, que são os futuros campeões de Portugal.
ZÉ – Bravíssimo!
2.º BOLlSTA – Isto, é claro, não
falando dos desafios parciais que vossências estão habituados a ver:
nas Cinco. Ruas, em S. Gonçalo, em S. Domingos, na Rua Larga, em
todos os becos, em cima da Esquadra, etc., etc.
PANGLOSS – Yes! E acreditar V. Ex.as
na eficácia do futebol?
BOLlSTAS (Cantando) –
Sem dúvida nenhuma!
É esta a salvação.
dum país moribundo,
dum país sem acção.
Com bola ou sem ela,
a correr, a remar,
a rasgar a farpela,
| Bis
tudo é avançar!
| "
Se cá neste país
houvesse uma bola,
não estávamos hoje
a pedir uma esmola.
Já vêem, pois, senhores,
sem que eu seja carola,
que todo o progresso
| Bis
dimana da bola!
|
"
PANGLOSS – Mim ficar sabendo tudo
isso, yes!
BOLISTAS – E agora, meus senhores, saúde
e futebolismo! (Cada um deles dá um pontapé no Zé)
ZÉ – Irra! Sempre há cada bruto! (Saem
os bolistas)
/
29 /
ZÉ (Olhando-os ainda) –
Tendes razão! Se não fosse a vossa bola; se não fossem os vossos
desafios, dentro de pouco tempo não cabíamos neste apertadíssimo
globo. Muito bem! É preciso diminuir a população. É o progresso. (Para
Pangloss) Não acha?
PANGLOSS – Yes! (Apontando a
Câmara) Então, ali ser os Paças do Concelho?
ZÉ – Saiba V. Ex.ª que sim. Anda em
reparação desde que me conheço. Aquilo são as obras de Santa
Engrácia cá da terra. Depois, é também um depósito de perfumes dos
mais notáveis do mundo, O chiquismo aveirense não se fornece do
Martins nem do Pompeu: vem ali.
PANGLOSS – Onde?
ZÉ – À esquina da Rua da Revolução.
PANGLOSS – Da Revolução? Qual delas?
ZÉ – Sei lá! Talvez a primeira!
Talvez a última. Já por lá passou?
PANGLOSS – Nada. Ainda não passar.
ZÉ – Pois não perde pela demora, É
um cheirinho que consola! É uma das coisas que mais honram a nossa
terra. – Esta estátua é do grande José Estêvão. Descobriram, não sei
como, que foi sindicalista, e todos os anos aqui vêm os anarquistas
oferecer-lhe um livro... de pedra! É uma biblioteca!
PANGLOSS – Ser muito curioso! Ali, o
correio.
ZÉ – Exactamente.
PANGLOSS – E ali... o Liceu.
ZÉ – Olhe! Repare! Quer ver? O
Ferreira Neves. É o nosso Fersícore.
PANGLOSS – Tem grace!
ZÉ – Agora saiu o Reitor. Que
barulho que vem a fazer! Vai comprar doces ali à Lucianinha. Olhe!
Conhece aquele que vem a descer os degraus?
PANGLOSS – Nô conhecer.
ZÉ – Ih, cos diabos! Lá sai um
regimento de oficiais. Parece um quartel. Apre, que se os rapazes
escapam das feras não se gabarão de escapar das espadas. Ele é o
Vaz, ele é o Pires, ele é o Barão, ele é o Tavares... Eu sei lá! É
um mundo deles!
PANGLOSS – E os estudantes?
ZÉ – Estão em férias e em festas.
Não se lhes põe hoje a vista em cima. Nem no Clube!
PANGLOSS – Clube de estudantes?!
ZÉ – Sim. Ali nos Arcos, em casa do
Reis & Comp.ª Lda, com águas, papéis, drogas e livros na loja e aos
domicílios. Ali é que eles matam as agruras di a vida... Mas
isto aqui não dá mais nada. Vamos. Quero levá-lo ao «Jardim das
Delícias» Espere! Espere! Alguém se aproxima. Ah! É a Furta-Cores. É
a D. Política.
PANGLOSS – Mim nô conhecer a
Política portuguesa.
ZÉ – A Política portuguesa, Sr. Dr.,
é um símbolo. O nosso saudoso Rafael Bordalo Pinheiro eternizou-a
numa admirável caricatura. A política é a Grande Forca. E
ontem, e hoje e amanhã, será sempre a mesma. (Falando para fora)
Podes entrar, esbelta criatura! O Sr. Dr. Pangloss já sabe quem és!
(Entra D. Política)
*
D. POLÍTICA – Dr. Pangloss, seja
bem-vindo; pode prestar-me relevantes serviços. Se você quisesse
casar comigo...
ZÉ (Àparte) – Ó ai ó linda,
se tu queres casar comigo, vai pedir-me à minha mãe...
PANGLOSS – Nô, nô, minha Senhorra.
«Tarde piou», como disse ontem o Silvério de Magalhães.
D. POLÍTICA – Ah, Sr. Doutor! Se
esta (indica a boca) dissesse o que esta (bate na testa)
pensa... (Canta)
Brilhe o sol ou gire a lua,
chegue a noite ou venha o dia,
quer em casa, quer na rua,
reina em meu peito a alegria!
Sempre a mesma aqui me vêem,
cada vez mais descarada;
por mais voltas que me dêem,
eu não mudo mesmo nada.
No tempo da outra Senhora
fui também o que hoje sou,
digam todos, muito embora,
que isto tudo que mudou.
Se se fala com alguém,
| Bis
dizem todos, em geral:
| "
os de cima, – «Isto vai bem!»;
| Bis
os de baixo, – «Isto vai mal»,
|
"
TODOS –
Se se fala com alguém,
| Bis
dizem todos, em geral:
|
"
os de cima, – «Isto vai bem!»; |
Bis
os de baixo, – «Isto vai mal»,
| "
ZÉ – Vai bem, vai! Não podia ir
melhor...
PANGLOSS (Apontando para fora)
– Quem ser aquele maltrapilho?
ZÉ – Não conheço! (Observando)
Oh, coitado! É o Regionalismo!
PANGLOSS – Regionalismo?
ZÉ – Sim, Regionalismo: uma
mayonnaise de políticos que para aí houve, Agora, é tudo regional:
temos o Museu... o Banco... o Sindicato Agrícola..,
D. POLÍTICA – Pobre do meu filho!
Quantum mutatus ab illo!
/
31 /
ZÉ – Quem te viu e quem te vê! (Entra
o Regionalismo).
*
D. POLÍTICA – Como passas, amor? Não
vais melhorzinho?
REGIONALISMO (Tossindo de vez em
quando, canta a música das «Feiras de Santa Clara»)
Ai o vosso regionalismo,
regionalismo,
regionalismo,
ai quando ele aqui apar’ceu,
ai quando ele aqui apar’ceu,
toda a gente já dizia,
já dizia
já dizia:
A política regional morreu,
a política regional morreu!
Cebolório,
cebolório,
cebolório!
ZÉ – Coitado!
PANGLOSS – Tome injecções!
ZÉ – Já não vai lá! Coitado! Como
ele está!
REGIONALISMO (Tossindo sempre,
sai cantando) –
Ai o vosso regionalismo, etc.
(Para caso de «bis»)
O Cristo foi meu padrinho,
meu padrinho,
meu padrinho,
mas de nada me valeu,
mas de nada me valeu;
tudo foi por água abaixo,
zai abaixo,
zai abaixo,
a política regional morreu,
a política regional morreu!
Cebolório,
cebolório,
cebolório!
*
D. POLÍTICA – Coitadito! Eu sou
muito amiga dele, mas não lhe posso valer. (Chora)
ZÉ – Então! Não chore; o Sr. Dr.
Pangloss vai protegê-la. E protegerá também o seu pobre filho.
D. POLÍTICA – Muito obrigada! (Entra
D. Camaleão)
*
D. CAMALEÃO (Com fato de várias
cores e trazendo um maço de jornais) – Eu é que a hei-de salvar,
mamã!
D. POLÍTICA – Oh! Meu filho!
ZÉ (Àparte) – Isto é que é
uma família!
PANGLOSS (Para D. Camaleão) –
Quem ser?
D. CAMALEÃO – Chamo-me Camaleão, e
vivo há muitos séculos. Sou filho desta Senhora, mas política é
coisa que eu não tenho. Estou sempre com o governo. Ando, vivo,
vegeto segundo as conveniências do estômago. Falo ao sabor da
assistência e tão depressa sou monárquico, anarquista, republicano
de todos matizes, sindicalista, integralista, como bolchevista dos
mais exaltados. Sou a religião do futuro!
ZÉ – Sr. Doutor, que diz a esta
filosofia?
PANGLOSS – Mim nô perceber gente
desta, yes!
ZÉ – Há por aí tanto disto, Deus do
Céu!
PANGLOSS (Para D. Política) –
Very good! Mim querer casar com a menina. Yes!
ZÉ – Pois faz mal, Sr. Doutor, e
desculpará. A política aveirense é muito divertida. Se o Sr. a leva,
Aveiro não tem quem o faça rir. É capaz de cair numa neurastenia
profunda. Isto é um «Carnaval constante» – como diz o Cristo.
PANGLOSS – Mas Pangloss ficar em
Aveiro.
D. CAMALEÃO (Para D. Política)
– O Dr. já bebeu água da fonte da Praça!
PANGLOSS – Pangloss naturalizar-se
eveirense e ficar nesta freguesia da...
ZÉ – da Glória. A Glória é da ria
para cá; a da Vera-Cruz é da ria para lá. Deste lado, o Senhor dos
Passos de S. Domingos, a música velha, a velha guarda e as cebolas;
do outro, o Senhor dos Passos do Carmo, a música da Patela, o Clube
dos Galitos e os alhos. Agora, escolha.
PANGLOSS – Mim ficar nesta freguesia
das cebolas. Pangloss não gostar de alhos.
ZÉ (Para D. Política) –
Parabéns à D. Política dos ovos moles, pelo seu consórcio com o Dr.
Pangloss. Temos progresso! Fine! Dancemos e cantemos! Vivam
os noivos!
PANGLOSS – Fine! Very well! Ali
right! (Aparecem os populares do começo do acto, uma das criadas
e a máscara. Uma das sopeiras e a máscara dançam, respectivamente,
com o Zé e com D. Camaleão)
*
ZÉ – Por causa desta política,
muita coisa tenho visto.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, sou tua
(teu);
não o digas a ninguém;
Olaré, sou tua (teu),
Olaré, meu bem!
| Bis
/
32 /
ZÉ – Quem lá se mete, lá fica;
não sei bem porque resisto.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
D. POLÍTICA – Quantos há que aí
estão,
que tudo a mim me devem.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
D. POLÍTICA – Sobe a
carne e o feijão,
não sei bem se me percebem...
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
(Em caso de bis)
ZÉ – Diz em Aveiro a crítica
– disto não faço segredo...
–
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
ZÉ – que é um chavão em política
o nosso amigo Macedo.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
ZÉ – Em Aveiro, quando
há dança,
todos perdem a
estribeira.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
ZÉ – Dança o pobre,
dança o rico,
dança o Inspector
Cerqueira.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
D. POLÍTICA – Dançam os
sinos da Cambra,
as árvores e os pardais;
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
D. POLÍTICA – Dançam na
Praça do Peixe,
dançam à beira do cais.
D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.
(Cai o pano – Fim do 2º Acto)
|