Fig. 1 – A mata florestal de S. Jacinto com os seus 41 talhões. Em
1972 as garças criaram no talhão n.º 12. As zonas pontuadas são
terrenos particulares.
Partindo de Ovar, pela Estrada
Nacional 327, em direcção a S. Jacinto, a cerca de 5 km desta última
povoação, encontramos uma extensa e pujante mata, que os Serviços
Florestais mandaram semear em 1888, para fixar as dunas. Situada
numa longa faixa de areia, que separa a costa atlântica da margem
poente do braço Norte da Ria de Aveiro, nela predomina em largo
quantitativo, o pinheiro bravo, Pinus pinaster Sol, além de
numerosas espécies arbóreas e arbustivas.
É precisamente no coração dessa mata
que está estabelecida, há já mais de 20 anos, uma pequena, mas
valiosa e interessante, colónia de garças.
Em Portugal, só há conhecimento da
existência de mais quatro núcleos de criação de garças, a saber: No
Paul do Boquilobo, na Golegã, a que faz referência o Dr. Agostinho
Isidoro (1),
no Leixão da Gaivota, em Portimão, de que dá notícia J. A. dos Reis
Júnior (2), e
na Herdade de Vale de Moura, freguesia de S. Jordão, concelho de
Évora e na Barragem do Roxo, em Ervidel, de que deu conhecimento o
Sr. Alberto Xavier, distinto colaborador dos Serviços de Anilhagem
do Núcleo de Estudos Ornitológicos da Faculdade de Ciências do
Porto.
Torna-se evidente o interesse desta
colónia no panorama ornitológico nacional e, até, internacional,
pois é, certamente, a mais setentrional de todas as colónias de
garças-boieiras da Europa.
A colónia de garças de S. Jacinto
começou a ser estudada pelo Prof. Dr. Santos Júnior e Dr. Osvaldo
Freire (3),
em 1963, até 1966. Em 1970, o estudo da colónia foi continuado por
Francisco Londot (4),
e por mim em 1971 (5).
Em 1972 prossegui na colheita de elementos, e venho, agora,
apresentar um resumo desse trabalho.
A COLÓNIA DE
GARÇAS
Como disse logo de inicio, a colónia
está estabelecida na Mata Florestal de S. Jacinto, mata esta que é
cruzada por caminhos rectilíneos chamados arrifes e
aceiros, orientando-se os primeiros no sentido Norte/Sul, ou
seja, paralelamente à Ria e os segundos no sentido Leste/Oeste,
perpendicularmente à mesma.
/ 11 /
São estas veredas que delimitam os
41 talhões ou manchas em que está dividida a mata (Fig. 1).
A colónia tem vindo a ocupar vários
talhões no decorrer dos anos. Com dados colhidos nos trabalhos dos
autores atrás citados e com base em algumas informações do
Guarda-Florestal da Mata, pude elaborar a seguinte lista:
|
Período de ocupação |
Talhão |
?
– 1955 |
15 |
1956 – 1957 |
6 |
1958 – 1959 |
2 |
1960 – 1961 |
30 |
1962 – 1967 |
24 |
1968 – 1969 |
21 |
1970 – 1972 |
12 |
|
|
São duas as espécies de garças que
nidificam em S. Jacinto, a saber: Egretta garzetta (Linn.) e
a Bubulcus ibis (Linn.), a segunda em menor quantidade.
Para a primeira, o Dr. António
Themido no seu livro Aves de Portugal (Chaves para a sua
determinação), n.º 213 de «Memórias e estudos do Museu Zoológico
da Universidade de Coimbra», Coimbra, 1952, regista os seguintes
nomes vulgares: Garça ribeirinha, garça branca, garceta, chisco,
lavandeira e garzeta do mar. Em Esmoriz é conhecida pelo nome vulgar
de garçote.
Esta garça é totalmente branca, dum
branco puro, com bico e patas negras e pés amarelos. Os adultos, no
Verão, têm um penacho na nuca, formado por duas longas e estreitas
penas brancas, e escapulares compridas, formando capa difusa e
pendente.
A segunda, a Bubulcus ibis, é
conhecida por garça boieira, mas, além deste nome, o Dr. António
Themido, cit., regista mais os seguintes: garça, garciote e garça da
Barbaria.
Esta ave apresenta durante a época
de criação umas belas plumas vermelho-amareladas, na cabeça, dorso e
peito, sendo branca a plumagem do resto do corpo. O bico e as patas
são de tonalidade rosada.
Os juvenis diferem um pouco dos
adultos, mas somente na cor do bico e das patas. Assim, os juvenis
da Egretta garzetta apresentam bico preto, aguçado e comprido
e patas pardas.
Os juvenis da Bubulcus ibis
têm bico amarelado no vértice e escuro ou preto na base, mais curto
e rombudo que o da E. garzetta e patas pardo-verdosas ou
quase verdes. Estas diferenças foram muito úteis na distinção dos
exemplares que anilhei, e de que falarei mais à frente.
Além dos caracteres citados, a
respeito dos juvenis, outros há de ordem biométrica. Dos exemplares
anilhados em 1972, medi um de cada espécie com o fim de os poder
comparar. Segue-se o quadro das medições tiradas:
|
Elementos biométricos |
Bubulcus
ibis
Anilha n.º 1803.J
26-7-72 |
Egretta garzetta
Anilha n.º 1 804.J
26-7-72 |
Comprimento total (6) |
340 mm |
360 mm |
Comprimento
da asa |
206 mm |
190 mm |
Comprimento
da cauda |
75 mm |
58 mm |
Comprimento
do bico |
67 mm |
82 mm |
Comprimento
do tarso |
73 mm |
66 mm |
Comprimento
do dedo médio, com unha |
62 mm |
60 mm |
Comprimento
da unha do dedo médio |
12 mm |
9 mm |
Comprimento
do dedo polegar, com unha |
40 mm |
38 mm |
Comprimento
da unha do dedo polegar |
17 mm |
11 mm |
Comprimento
Altura do bico ao nível das narinas |
15 mm |
14 mm |
|
|
/ 12 /
Os dois exemplares a que se referem
as medidas acima indicadas estavam já totalmente cobertos de penas,
muito embora ainda não voassem, o que, julgo, deviam estar prestes a
poder fazer.
NOTAS SOBRE
AS VISITAS EM 1972
Em 1972 estive por 4 vezes em S.
Jacinto: de 29 de Março a 5 de Abril, em 15 de Maio, 11 de Junho e
de 25 a 29 de Julho. Durante as estadias acampei perto da colónia.
As tarefas que me tomaram a maior parte do tempo foram a anilhagem,
as contagens e as observações.
Fig. 2 – Dois ninhos num
pinheiro |
Para estudar a vida social das
garças, costumava emboscar-me na copa de um pinheiro. Entre os
factos que daí observei, apenas destaco o seguinte, pois outros
estão ainda em estudo.
A E. garzetta impõe o seu
domínio sobre a B. ibis. Assim, se esta última ia pousar no
ramo em que já estava a primeira, era, de certo, escorraçada por
ela. Se o caso se passava ao inverso, isto é, se era uma E.
garzetta que ia pousar no ramo em que estava uma B. ibis,
esta partia muitas vezes de livre vontade, antes que a isso fosse
obrigada, à bicada...
Um outro facto não quero deixar de
relatar, pois, além de interessante, é muito importante para o
estudo desta população de garças.
Verifiquei que os bandos de garças,
aliás como diversas outras aves, voam em V, no vértice do qual segue
um indivíduo que, em minha opinião, é um guia. É um assunto que
procurarei averiguar em próximas campanhas de estudo.
Para alguns ornitólogos o facto de
algumas aves voarem em V será para permitir a cada uma ver as que a
precedem, evitando assim qualquer desastrosa colisão.
Fig. 3 – Vista geral da colónia,
de cima de um pinheiro.
Na opinião de outros ornitólogos,
opinião essa que eu também partilho, a formação em V será uma
engenhosa maneira de as aves, sujeitas a maiores ou menores
deslocações, pouparem energias. A ave que vai no vértice da formação
provoca uma agitação de ar que se propaga para trás e para os lados
e facilita o voo da ave que vem imediatamente a seguir, que apoia
uma asa na turbulência, ao mesmo tempo que, com a outra, provoca
nova perturbação de ar que vai facilitar o avanço à sua seguidora,
assim sucedendo com todos os elementos do bando que, em regra, é
formado por 10 a 14 aves.
Em 1971
(5) ocupei-me do estudo do regime
alimentar das garças e cheguei às seguintes conclusões, a respeito
da alimentação dos juvenis:
|
Alimento |
Percentagem |
Gafanhotos pequenos |
60 % |
Peixes pequenos |
20 % |
Insectos diversos |
10 % |
Rãs pequenas |
5 % |
Camarões pequenos |
5 % |
|
|
Este ano verifiquei que a
percentagem de gafanhotos desceu consideravelmente e apareceram
restos de enguias, um deles com cerca de 25 cm.
ANILHAGEM
Como digo atrás, uma das tarefas em
que me ocupei foi a anilhagem de garças nos ninhos. Coloquei 33
anilhas do lote 1 801 a 1 900.J, do Museu de Zoologia da
Universidade do Porto – Portugal, em garças juvenis.
Fig. 4 – Vista geral da colónia,
de cima de um pinheiro.
Uma das garças que tinha sido
anilhada em 1971, com a anilha n.º 6301.T, foi abatida em Paião,
Figueira da Foz, nos primeiros dias de Setembro do mesmo ano.
Segundo os registos esta ave tinha sido anilhada no
/ 13 /
ninho em 9-7-1971. Atendendo a que só estaria apta a voar cerca de
15 a 20 dias depois da data da aniIhagem, conclui-se que gastou
nesta deslocação cerca de um mês. A este tipo de movimento chama-se
dispersão juvenil ou pós-nupcial. Quando o volume de recapturas for
maior, será apresentado o seu estudo analítico.
RESULTADOS
DAS CONTAGENS
Contei 287 ninhos, distribuídos por
94 árvores, na sua maioria pinheiros, Pinus pinaster Sol,
embora algumas austrálias, Celtis australis. Os 287 ninhos
equivalem a 287 casais ou 574 aves adultas. Pois se de cada ninho
nascerem, em média, 3 aves, temos mais 861 aves. Deduzida a taxa de
mortalidade infantil de 2 %, apontada por Londot
(4), sobreviveriam cerca de
835 juvenis.
Assim, o total da população em 1972
seria de cerca de 1 409 aves. Verifica-se uma diminuição de 536
garças relativamente a 1971.
Seguidamente apresento um quadro e
um gráfico onde resumo as contagens efectuadas de 1963 a 1966 pelo
Prof. Santos Júnior e Dr. Osvaldo Freire, cit., em 1970 por Francis
Londot, cit., e por mim em 1971 e 1972.
Pelo gráfico pode-se avaliar a
oscilação da população.
AGRADECIMENTOS
Não quero deixar de expressar o meu
voto de agradecimento:
– Ao Sr. Prof. Doutor Santos Júnior,
que muito contribuiu para a realização deste estudo.
– Ao Sr. Álvaro Lopes Cachaço,
Guarda-Florestal da Mata de S. Jacinto, pela colaboração prestada.
– Aos meus amigos José Manuel e
Jorge Manuel P. Sousa, António P. Almeida, José Manuel e Inês Maria
C. Costa, pela ajuda prestada nas contagens.
– À Junta Distrital de Aveiro pela
aceitação que deu a este pequeno estudo.
|
Gráfico referente à oscilação da
população. |
|
Contagens de ninhos
e árvores |
|
1963 |
1965 |
1966 |
1970 |
1971 |
1972 |
N.º de ninhos |
186 |
434 |
577 |
477 |
389 |
287 |
N.º de árvores |
63 |
127 |
198 |
152 |
83 |
94 |
Ninhos por árvore |
3,0 |
3,4 |
2,9 |
3,1 |
4,6 |
3,0 |
Taxa de crescimento |
? |
- 53 % |
- 33 % |
- 4,5 % |
- 18,5 % |
- 26,2 % |
|
|
|
NOTA FINAL |
|
Como se pode ver pelo gráfico
apresentado, o quantitativo populacional desta colónia de garças tem
vindo a decrescer desde 1966. É evidente a urgência de averiguar as
causas deste refluxo populacional e tentar, se possível, impedi-lo.
Bem será que a Mata de S. Jacinto não fique privada desta bela
colónia de garças, que tanta beleza lhe empresta.
Que todo o conjunto arbóreo da Mata
de S. Jacinto e, portanto, a colónia de garças, fosse tornado numa
Reserva, é o desejo de todos os que, como eu, pensam que proteger e
conservar a Natureza é uma das mais prementes necessidades da
actualidade: é que os homens de amanhã também têm direito de
desfrutar das suas belezas.
|
Fig. 6 – Dois juvenis de
Egretta garzetta, anilhados, perto do ninho.
|
Façamos tudo o que estiver ao nosso
alcance
/ 14 / para que S. Jacinto venha a ser um desses
santuários para aves aquáticas que, presentemente, estão a ser
criados em toda a Europa. Num amanhã muito próximo, as reservas
agora criadas serão os únicos refúgios da fauna, tesouros sem preço.
Porto, Novembro de 1972.
________________________________
NOTAS
(1) – Agostinho F. Isidoro – Aparecimento acidental de aves na fauna
ornitológica de Portugal – in CYANOPlCA, VoI. 1. Fase. 1.º,
Porto, 1968.
(2) – J. A. dos Reis Júnior – Catálogo sistemático e analítico das aves
de Portugal – Porto, 19311
(3) – J. R. dos Santos Júnior e Osvaldo Freire – The heronry at San
Jacinto (Portugal) – in Anais da Fac. Ciências do Porto, Tomo
XLVIII, Porto, 1985.
– Idem, idem – A Colónia de garças de S. Jacinto – Aveiro, in
Aveiro e o seu Distrito, n.º 3, Águeda, 1987.
(4)
– Francis Landot – Contribution a l’étude de la Heronnière de S.
Jacinto (Aveiro) en 1970 – in CYANOPlCA, VoI.
I, Fase. 3.º, Porto, 1971.
(5) – Nuno Gomes Oliveira – A colónia de Garças da Mata de S. Jacinto
(Aveiro) em 1971 – in CYANOPlCA, VoI. 1. Fase. 3.º, Porto, 1971.
(6) – A título de comparação cito o comprimento dos adultos: 560 mm para a
E. Garzetta e 510 mm para a B. ibis.
Segundo Perterson,
Mountfort e Hollom – A field guide to the birds of Britain and
Europe – Collins, Londres, 1954. |