JOÃO SEIÇA NEVES
Vivias como se pudesses morrer no
minuto seguinte. Uma estranha lucidez: afinal tudo tinha o seu
sentido. Às vezes ilusionista. O Impossível a seduzir-te estava ali
ao alcance da tua mão. Outras, eras uma simples criança — um
princípio sem espaço nem tempo.
O teu tesouro era esse: dar às
coisas e aos seres o seu sentido real, viver o que de facto
importava, como se fosse a última das vontades.
Poucos têm essa coragem, a coragem
de negar o tempo, como se não houvesse princípio nem fim, como se
tudo se resumisse a um amigo atento recortado na paisagem, quando
todas as coisas têm a dimensão da harmonia, tão somente. Só tu eras
capaz de parar o carro no meio da rua e bater à porta dos que amavas
para dizer simplesmente "Olá, já não te vejo há tanto tempo" — a
transgressão do quotidiano que tu transformavas numa festa contínua.
Os teus dias eram vividos assim e era essa a tua enorme riqueza, a
vida como uma grande praça cheia de amigos. Gostavas de os ter em
casa, permanentemente, e lembro com saudade as noites em que lias os
teus poemas (sim, os teus poemas) como só tu sabias — com o
entusiasmo do tribuno, com as certezas que tinhas e defendias até ao
limite, com a ternura vulnerável de quem ama os outros.
Irmão, completa a tua existência:
diz-nos onde está o mapa desse tesouro.
Clara
Sacramento
15 de Outubro de 1992
(in “Litoral” de 23/10/1992)
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