Nasci em 26 de Fevereiro como Rita Ferro e estou a copiar dela esta
forma de me dar a conhecer na primeira pessoa.
Foi à força. Puxaram-me a cabeça com um "forceps" não gostei. Fiquei
tão zangada que convictamente me recusei a mamar. Desde que cá estou
que meço forcas com o mundo. Sou uma sobrevivente. Um dia uma vidente
disse-me que eu tinha um anjo muito forte que zelava por mim.
não acredito em bruxas...
Os meus pais eram ambos professores, ambos republicanos e ambos filhos
de duas famílias tradicionalmente católicas.
A minha mãe escrevia sob um pseudónimo. Contos.
Por respeito pela minha liberdade, como me disseram, não me deram
educação religiosa. Para uma criança a liberdade religiosa é um grande
fardo. Fica mais fácil a vida com um anjo da guarda para rezar. A
fluidez dos limites expande tanto o espaço, torna-o tão
assustadoramente grande, tão contrário ao desejo de ninho que uma
criança tem! Por isso sinto uma enorme nostalgia de fé ingénua e sem
dúvidas que solitariamente construí na adolescência.
Tinha três anos quando o meu irmão nasceu. A minha mãe tinha uma saúde
frágil, não podia cuidar de mim. Mandaram-me para o Douro.
O meu pai foi levar-me a Viseu. Entregou-me a uma mulher enorme e
desconhecida
—
a Tia Graça. De repente vi-me numa quinta no meio de montes cobertos
de vinhas a perder de vista.
Talvez para o tornar presente, eu repetia como se fosse um mantra as
recomendações que o meu pai me tinha feito, "a menina não vai
para as escadas de pedra, nem para os muros altos, nem pega nas facas
que fazem axes, escadas de pedra, muros altos, facas que fazem axes..."
Quarenta anos depois estava
em Cascais. Eram oito horas. Dirigi-me para o estacionamento de uma oficina para recolher
o meu carro que tinha feito a revisão. Os funcionários já se tinham
ido embora e havia uma luz crepuscular meio difusa, a envolver o
lugar. De repente abriu-se uma janela em minha mente.
Com toda a nitidez vi uma estação de camionagem e uma mulher alta de
cara tapada a levar pela mão uma criança que continha os soluços e se
voltava para trás a acenar a um homem que ficava parado a vê-la
afastar-se. A visão desapareceu instantaneamente, assim como se apaga
o ecrã da TV quando se carrega no telecomando.
Por momentos fiquei paralisada. O coração disparou. O sangue fugiu-me
dos pés. Uma agonia apertou-me o estômago, o coração, a garganta.
Quase deixei de respirar. Senti a morte eminente.
Felizmente os meus filhos ainda não se tinham ido embora. Levaram-me
ao Hospital. Era um ataque de pânico. Encheram-me de sedativos. Vim
para casa meio trôpega. Dormi um dia inteiro. A vida continuou.
A minha tia morreu com 93 anos e deixou-me a quinta com a casa onde eu
tinha vivido os meus medos (o meu irmão disputou-me a casa
—
não precisava) e a mata misteriosa, compacta, de um verde intenso,
onde havia lobos, raposas, javalis e cobras.
Às vezes o meu tio aparecia em casa com umas aves pendentes da cintura
que abanavam as cabeças mortas ao ritmo da marcha.
Matavam os cachorros à nascença, mas não os gatos. Esses
enterravam-nos vivos no lameiro. Os miados subiam pela encosta
ampliados pelos montes, no silêncio da noite. Eu não dormia.
Meu pai ensinou-me a verdade, a generosidade, a liberdade e o valor da
cultura. Para me proteger, disse ela, a minha tia ensinou-me
exactamente o contrário. Que ao mundo se devia mentir sempre. A
lealdade era só para quem nos alimentava, o único interesse defensável
era o nosso e o da nossa família mais próxima. Livros eram coisas
perigosas especialmente para crianças, por isso não havia à mão.
Aos 10 anos a minha mãe deixou-nos para sempre e eu adoeci com aquela
doença deselegante e assustadora que matava famílias inteiras e que
fazia as pessoas afastarem-se de nós, a tuberculose.
Mas eu tinha um anjo....
Em Paris, no Instituto Pasteur, ensaiava-se uma nova droga
—
a estreptomicina. Não tinha ainda chegado às farmácias.
O meu pai ia buscá-la à Cruz Vermelha.
Voltei ao Douro. De novo cercada de montanhas, perdida no meio das
vinhas. Já não havia casa de família. O meu pai fora para África.
Apesar de tudo, muito menos longe do que quando me deixou em Viseu.
O Pinhão ficava a
8 km da Quinta por
caminhos de cabras. A estreptomicina era injectável.
O
meu tio tinha um temperamento colérico e caprichoso. Era emocionalmente
imaturo. Mas era a única pessoa que tinha algum jeito para dar
injecções. Só que quando embirrava comigo, deixava-me entregue à minha
sorte. Então eu pegava na seringa, media um palmo acima do joelho e
espetava a agulha na perna.
Da
primeira vez chorei de susto, depois compreendi que tinha marcado pontos
a meu favor. Sairia dali quando o tempo se cumprisse, viva.
Quis ser escritora. Escrevia poemas melancólicos, excessivos,
depressivos.
Um
ano depois casei e decidi não escrever nunca mais um verso. Elegi outros
objectivos. Sustentei uma família, fiz uma carreira.
E
trabalhei.
Trabalhei 24 horas por dia. Por isso não houve possibilidade de ter
consciência de quanto vivia alienada de uma parte importante de mim.
Quis ser feliz e afanosamente me empenhei nessa tarefa. Mas como são
insondáveis os caminhos para a felicidade!... Esqueci quase tudo. Não
sou capaz já, de dizer os títulos dos milhares de livros que li, nem os
nomes dos autores. Sei vagamente de que falavam. Ficou-me no entanto um
lastro, um chão mental, que incessantemente me impele a olhar para as
coisas de vários ângulos e a questionar o dado, o evidente como se não
fosse evidente.
Continuo a achar que o cheiro mais tranquilizante é o das livrarias
quando cheiram a tinta de impressão recente e a sol.
Reconciliei-me com o Douro, ou antes libertei uma paixão latente que
durante décadas se nutria de ausência.
Esmaga-me a beleza imponente dos montes, o cheiro inconfundível da
terra, a cor luxuosa das vinhas.
Quarenta anos depois tornei-me escritora.
Quis escrever um romance "Os homens de Kidina", saiu um livro de
poemas "Metáforas sobre o amor".
Quis escrever um outro romance "... e um alfaiate
em Hong Kong" saiu outro livro de poemas "As horas de Penélope".
Há
algo de intrigante nesta minha forma de produção literária. A prosa é um
propósito da vontade, a poesia uma inevitabilidade.
Quando os lugares, as emoções, as recordações, tomam uma outra dimensão
e as palavras martelam na minha cabeça, um ritmo doce e comovido,
inevitavelmente surge o poema. Apanha-me à queima roupa e vem a luz num
parto espontâneo e fácil.
Gostaria que com a morte me acontecesse o mesmo. Que ela me apanhasse à
queima roupa, ao virar de uma esquina, que não me obrigasse a rastejar,
como não rastejei perante a vida.
Oeiras, 6 de Outubro de 2005
Ângela Leite |