Liturgia Pagã

 

Afinal, quem leva Deus a sério?

31º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro do profeta Malaquias, 1,14-2,10

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, 2, 7-13

Evangelho: S. Mateus, 23, 1-12

 

Para o profeta Malaquias, nem sequer os sacerdotes escapam todos à “lista negra”. Na lista em que Jesus põe os escribas e os fariseus.

O cenário é ainda mais chocante se lermos o texto de Malaquias na íntegra: «Pois bem, ó sacerdotes, se não tomardes a peito dar glória ao meu nome (...) vou despedaçar o vosso braço e lançar-vos esterco ao rosto – o esterco das vossas solenidades – e sereis atirados fora juntamente com ele» (2, 1-3). Como Jesus dizia aos discípulos: «vós sois o sal da terra... se o sal perder o sabor, será deitado fora e calcado por todos os homens» (Mateus, 5, 13).

Talvez por isso, para não se deixarem seduzir pelas regalias e hipocrisias do poder, é que S. Paulo e seus ajudantes, apostados em servir a sério, mostram a preocupação que tinham em partilhar com os demais cristãos (e também com os não-cristãos) as durezas e prazeres da vida, sem adular os mais poderosos, sem abusar dos mais fracos ou dos que têm “bom coração”. Procuravam sobretudo entusiasmar-se a si e aos outros pelo «reino de Deus», sem o palavreado vaidoso (= vazio) daqueles doutores, mestres e “grandes senhores”, que esquecem que só podem ter verdade na medida em que dão atenção e primazia à única fonte da verdade.

Aliás, Jesus Cristo não fundou um ministério de sacerdotes (que só se organizou claramente como tal no século III), nem muito menos uma hierarquia – termo aplicado à organização eclesial apenas no século V (por um autor sob o pseudónimo de Dionísio Areopagita). Jesus “limitou-se” a entusiasmar a humanidade a organizar-se segundo o desejo de bem, que é o espírito de Deus dentro de nós.

Se se diz, e bem, que religião e política estão separadas, é porque Jesus foca toda a atenção na atitude interior de cada homem, única garantia de honestidade e sensatez numa política sempre melhor. Porém, estas virtudes exigem denunciar claramente o que está mal, sem cosméticas interesseiras, e (como no caso de universidades católicas) exigindo estudos arrojados, próprios de uma razão sem medo da fé, que fundamentem tomadas de posição e planos exequíveis em justiça social – uma «ética global», onde vinguem os princípios da dimensão social da riqueza. Faltará liberdade e coragem aos «mestres católicos»?

Muitas vezes, os «príncipes da Igreja» (designação nada apropriada a representantes de Jesus) entregam-se a jogos diplomáticos e financeiros, unindo-se aos poderosos da terra, talvez com a desculpa de os poderem tornar mais «humanos» (e assim mais cristãos).

Mas quando moramos em palácios, temos que mostrar, pela nossa acção no mundo, que os utilizamos para defender a justiça e levar a sério os pobres e os fracos. A tentação é grande de deixar este trabalho para «as bases», e limitar-se a palavras bonitas ou a citações de uma Teresa de Calcutá ou Padre Américo. E por que será que o próprio «evangelho dos pobres» da América Latina é olhado com desconfiança pelos “príncipes da Igreja”?

O profeta Malaquias acusa os sacerdotes de darem a Deus borregos defeituosos, quando não teriam coragem de fazer o mesmo para com os grandes deste mundo. Deus não se vê... não castiga nem premeia “à vista”... – será que vale a pena ser levado a sério?

Quem o leva mais a sério? O sacerdote atarefado com os seus afazeres ou o samaritano que se aproximou e ajudou quem precisava de ajuda (Lucas,10,29-37)?

E quem não precisa de ajuda? E quem não precisa de ajudar?

Pensamos que não precisamos de ajuda, na medida em que nos sentimos seguros pelos nossos compadrios mais ou menos políticos, guindados à classe de «doutores e mestres» desdenhosos dos outros. Não queremos ajudar, porque dá trabalho ensinar toda a gente a ser «atleta» para vencer na vida «na terra, como é vontade de Deus no céu», sobretudo quando esse trabalho nos impede de ocupar os lugares mais ilustres e também mais venais na sociedade. Só quem tem Deus por mestre é que sabe trabalhar bem espontaneamente – e se for publicamente louvado, dá testemunho do fascínio da justiça.

Este domingo é contra a vaidade, contra as palavras e acções que acabam por ser vazias, porque longe da sabedoria de Deus. E por isso, ao longo de toda a Escritura Sagrada e da história da espiritualidade cristã, quando Deus pede que o levem a sério, pede que nos levemos a sério uns aos outros.

30-10-2011


  Página anterior Página inicial Página seguinte