Domingo da Ascensão (ano A)
1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 1, 1-11
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 1, 17-23
Evangelho: S. Mateus, 28, 16-20
Mãos sujas, de quem mexe na lama e nas mais estranhas florestas de
quanto existe. Mãos sensíveis, para sentir a diversidade e a
consistência do que vão percorrendo como bichinhos num mundo novo.
Mãos sensuais, que acariciam outras mãos. Mãos inteligentes, a quem
não basta sentir, e que a tudo são capazes de dar formas novas,
gerando novas criaturas. Mãos visionárias, que tocam no que não se
vê e no que não se pode ver, moldando o presente com restos do
passado e com sonhos do futuro, sentindo a alma das coisas, a alma
do universo, a alma da vida.
Mãos que fazem jus à riqueza da história da «mão»: instrumento de
luta e de trabalho, de salvação e de repulsa, de carinho e de
castigo… símbolo de força física e moral e da autoridade própria do
«paterfamilias» que licitamente podia usar «mão de ferro»… Do latim
«manus» (indo-europeu «man», graficamente o mesmo étimo de «homem»
em inglês, formando porém uma cadeia semântica distinta), veio assim
manual, mancebo, emancipar…; e mandar (pôr ou dar na mão do outro),
recomendar, amanuense (sob o domínio da mão do outro), mansidão
(habituado ao domínio de quem «tem mão»)… Como vemos, o sentido de
domínio e força é de extrema importância («manus» também significa
protecção e até um pequeno ou grande exército). Aliás, nas
principais línguas conhecidas, o sentido central do termo em questão
é agarrar, segurar, dominar.
Mãos artistas, que pintaram, ao longo dos tempos, as «mãos do
Salvador», os seus gestos mais significativos, e sobretudo a
imposição das mãos, mesmo antes de se «esconder no céu», onde as
nossas mãos não chegam mas onde chega a sua arte. Não é na Capela
Sixtina, que as mãos de Deus e de Adão se tocam num fluxo de força?
Mãos que «baptizam»: outra coisa não é esse acto, em que a força de
Deus nos transforma numa extensão da sua «mão» forte e carinhosa,
rigorosa e artista – lembrando o cuidado com que se lava um filho
pequeno a preceito para a festa que há-de vir…
Mãos que repetem o baptismo de Jesus: comunicando a mesma força,
entusiasmo e arte que receberam. Mãos de todos os que as querem
entrelaçar para formar uma humanidade unida e forte, formando uma
corrente onde o amor é tão vivo que por vezes as mãos se fundem umas
nas outras.
Mãos que baptizam como quem diz um adeus: como as de Jesus na hora
da «ascensão», em que «mandou» os discípulos pelo mundo, estendendo
as mãos a quantos os quisessem receber. Mãos de quem veio e vem ao
nosso encontro, mãos que cobriram o rosto em chaga de Jesus, como
cobriram as moléstias de tantos cegos, mudos e surdos…
Mãos dadas com esse Jesus que, «subindo ao céu», nos quer dizer que
viver é «estar com Deus» – coroando a obra das nossas mãos. E assim
quis garantir, a quem quiser dar as mãos, o sucesso da «subida» para
a Vida verdadeira: basta saber usar o poder das nossas mãos!
Mãos teimosas, como as que de mil maneiras querem dar forma ao
conceito de «ressurreição», enganando tantas vezes os nossos olhos
que por sua vez enganam tantas vezes o nosso discernimento… Mãos com
que os próprios evangelistas misturaram as cores da «ressurreição» e
«ascensão». A matéria plástica, na sua rudeza, é que Jesus morreu
mas, dando-se a sentir como vivente («o vivente», na expressão de
gente que vive a sério), garantiu a força superior da vida.
Como é que as nossas mãos apresentam, sem formas enganosas, o que é
a vida? Não bastaria simplesmente mostrar as mãos disponíveis para
todos e com todos unidos para a aventura? Não se poderia retratar a
«ressurreição» ou «ascensão» como o chamamento de Deus à aventura
insuperável e inesgotável da vida?
Mãos «artistas» – um termo proveniente de um dos mais ricos
étimos indo-europeus: «ar» de harmonia e arte; transformando-se em «or»
de ordem e originalidade; em «ra» de razão, em «ri» de ritmo… Mãos
de um condutor de orquestra, de um palhaço, de um dançarino, de um
engenheiro meticuloso, de um cozinheiro atento e criativo…
Mãos que desenham a originalidade da nossa ordem e da nossa origem,
descobrindo a harmonia do mundo da arte com a arte do mundo.
Mãos
dadas entre Deus e os Homens |