Liturgia Pagã

 

Momentos de glória

2º Domingo da Quaresma (ano A)

1ª leitura: Génesis, 12, 1-4

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo a Timóteo, 1, 8-10

Evangelho: S. Mateus, 17, 1-9 

 

É saudável desejar esses momentos e favorecer que aconteçam. Não só amenizam a vida como, sobretudo, são o sopro que incendeia as brasas.

Talvez hoje se dê uma crise de autênticos momentos de glória: deixaram de surgir com o esplendor espontâneo dos «lírios do campo» para serem literalmente comprados como flores de estufa ardilosamente seleccionadas. Esta crise é própria da história humana, acompanhando os momentos altos e baixos da defesa da dignidade da pessoa humana. Mais grave é quando a crise nasce dentro de nós: quando nos recusamos a suscitar a chama nos outros, indo ao extremo anti-messiânico de apagar a brasa que fumega (Mateus, 12, 20).

Quando é que teremos a coragem de condenar claramente, pela nossa postura na vida, esses ambientes da gestão da morte dos outros, sempre que os outros não são acólitos da nossa vaidade ou da nossa política grupista de poder? E que dignidade humana existe naqueles que se embriagam com o poder e a riqueza, pensando assim que fogem às muitas espécies de morte? Esquecemos que o poder e a riqueza podem gerar mais morte do que vida, se não forem inequivocamente utilizados para bem da humanidade.

Segundo Mateus, Jesus Cristo não quis que os «momentos de glória» hoje relatados fossem divulgados antes da sua morte. Provavelmente, para evitar discípulos atraídos e entusiasmados por uma imagem de importância ou de sucesso. Ele próprio advertiu, na parábola do semeador (Mateus, 13, 18-23): a semente caída em terreno pedregoso lembra as pessoas que ouvem a palavra com alegria, mas, como não têm raízes fortes e são volúveis, depressa desistem quando é preciso dar o corpo ao manifesto. Só resiste à tempestade quem não descuida os alicerces da vida.

O relato da transfiguração é inspirado na Festa das Tendas, celebradora do encontro de Moisés com Deus. Também Moisés surgiu resplandecente, quando apresentou ao povo os «mandamentos» elaborados «à mesa redonda» com Deus. Deus é luz, e a intimidade com Deus torna os homens portadores de luz.

Os discípulos só compreenderam a luz de Deus depois da ressurreição de Jesus, depois de se terem libertado do medo. Compreenderam como Jesus enriquecia a história espiritual da humanidade, continuando o movimento profético da religião hebraica. Mesmo os apóstolos mencionados no relato da transfiguração só mais tarde reconheceram a unidade da vida de Jesus, do nascimento até à morte. A experiência de Jesus como «filho muito amado» de Deus já se fizera sentir no baptismo de Jesus (Mateus, 3, 17), também em ligação com uma personagem central do Antigo Testamento (João Baptista).

 Na segunda leitura, S. Paulo dá o testemunho de como «a luz de Deus» lhe fez compreender o significado de «Cristo Jesus, que destruiu a morte e fez brilhar a vida e a imortalidade».

A primeira leitura traz-nos outro testemunho: um homem desconhecido, seminómada da região de Canaã, aceita o desafio de Deus, e abandona o seu país para se tornar o pai de um povo que não fuja de Deus mas procure encontrar-se com ele, mesmo quando esse Deus parece “gozar connosco”. Deus pediu a Abraão um rompimento com o passado, para que um grande futuro tivesse lugar. A importância central de Abraão como exemplo de fé em Deus mostra que os momentos de glória em que nos podemos sentir plenamente realizados são aqueles em que nos descobrimos como companheiros de Deus, apesar da incompreensão e até ataques dos que nos rodeiam, e mesmo se ele teima em ficar escondido e a desafiar-nos pelos mais árduos caminhos. É uma caminhada heróica.

20-03-2011


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