6º Domingo do tempo comum (ano
C)
1ª leitura: Jeremias, 17, 5-8
2ª leitura: 1ª Carta aos
Coríntios, 15, 12-20
Evangelho: S. Lucas, 6, 17-26
Assim reza a tradicional cantiga
açoriana afamada por Zeca Afonso.
Com nome tão «feliz», como é
que este navio veio a naufragar? Trata-se, na verdade, de uma forma
simplificada de «Macário», adjectivo que, no grego antigo (antes de
Cristo), só era aplicável aos seres divinos, significando que eles
estão isentos de todos os cuidados humanos. Com o tempo, aplicou-se
aos seres humanos, quando a situação destes fazia lembrar o
bem-estar dos deuses. Estranhamente, é com este adjectivo que S.
Lucas classifica os que agora se encontram em sofrimento, por
oposição àqueles que parecem estar bem na vida.
Quem não se sentiria em segurança,
viajando num navio de nome tão promissor?
O pior é que não basta ter bom
nome – embora convenha muito ser bem parecido!
Quando S. Lucas fala dos
«macários» que choram, que têm fome, que são pobres… e dos «não
macários» que são ricos, fartos, e gozam de boa vida… não estará a
dizer que as coisas não são o que parecem?
É que nem uns nem outros se
definem pelo nome – como ninguém neste mundo. Nem há, nesta vida,
«nomeações definitivas».
O texto de S. Lucas é mesmo
chocante: quer pelo realismo tão cru, quer pela dureza do estilo ao
invectivar os «agora felizes». Aliás, esta dureza condiz tão pouco
com o estilo habitual de Lucas, que há quem ponha em dúvida a
autenticidade dos «ais» ameaçadores. Porém, a antítese
felizes/infelizes é uma figura literária frequente em todo o Antigo
Testamento e particularmente nos livros proféticos. Não se trata de
modo nenhum de bênção para uns e maldição para outros (o que seria
um ridículo juízo divino – o «juízo final» é que recompensa ou
castiga a orientação positiva ou negativa que cada ser humano
livremente tomou), mas de alerta para uns e outros: quem está mal
não se deve julgar condenado e quem está bem não se deve julgar
premiado.
Todas as situações neste mundo
servem para bem e para mal. Todos sabemos bem demais que a pobreza
também leva ao crime e à guerra – mas a riqueza e poder também o
fazem e de um modo muito mais planeado e sofisticado, com a lógica
fria de quem pode ser o opressor e o abusador. Por outro lado, o
esforço conjugado de uns e outros, com a experiência própria de
vários tipos de situações humanas (embora por vezes desumanas) e com
a sabedoria de como investir na justiça que torna realista a
esperança, transformaria, como diziam os profetas (ver Isaías,2,4),
as espadas em arados.
Lucas revela especial
sensibilidade à «questão social», sabendo que o verdadeiro discípulo
de Cristo tem que se preocupar pelo bem-estar de todos (o seu
evangelho, aliás, é quase um breviário do que pode estar implicado
em «ser discípulo»). Contudo, é patente a preocupação, mais notável
no evangelho de João e no livro do Apocalipse, por animar os
cristãos perante a hostilidade e perseguições de que são objecto e
perante o silêncio de Deus que, contra as expectativas das primeiras
comunidades (ver as cartas de S. Paulo aos Tessalonicenses), tarda
em libertar os que Lhe são fiéis.
São os nossos sentimentos e
acções que fornecem a matéria prima para o «reino de Deus», como
num campo onde há trigo e joio. O aparecimento de Jesus é visto como
o enraizamento entre nós do «reino de Deus», do tempo da justiça – e
de um modo que continua a chocar a humanidade e a desafiá-la para
superiores «performances».
A esperança de justiça é
fundamental, mas definha sem o exercício de actos justos, seja qual
for a situação na vida. No texto de Lucas, a aplicação ao presente
(«felizes vós, os que agora tendes fome e chorais») mostra como é
neste que se vê o futuro.
De resto, as leituras de hoje
reflectem como todos desejamos ser «macários»:
Jeremias não quer apostar no que
morre: aposta apenas naquele que é Vida.
Para S. Paulo, se não acreditamos
que Jesus Cristo vive desta Vida, não vale a pena ter pretensões de
a vivermos algum dia. A experiência de Cristo vivente é como que o
protótipo da nossa experiência como seres ancorados na vida e não na
morte, por muito que esta pareça retirar-nos da vida (nem faz
sentido pôr a vida ao mesmo nível da morte).
E para S. Lucas? A experiência de
Deus, tão visível em Jesus, alargou os nossos horizontes de vida e
mostrou como são insuficientes e erradas as regras de jogo de uma
sociedade onde cada qual apenas veja o seu prazer imediato. É
necessário apostar, mesmo nos negócios desta vida, numa segurança de
grande visão e «a longo prazo» (e nunca fiando, que já alerta a
sabedoria popular: «fia-te na Virgem e não corras…»).
Neste mundo, não faltam «movimentos»
e instituições (políticas, religiosas…), que se apresentam como
navios seguros onde todos somos garantidamente «macários»,
normalmente a troco de não levantar problemas aos donos do barco…
como pretender corrigir as velas seguindo o vento («espírito»)
verdadeiramente favorável. Entramos assim na categoria daqueles
felizes que já têm a sua recompensa…
É sempre a velha questão do que vale
mesmo a pena na vida.
Não é por nos agarrarmos a um «São
Macaio», que este deixa de ir ao fundo (e nós com ele). «Toda a
gente se salvou», continua a cantiga. Pois, porque se afastaram a
tempo do «São Macaio»… |