5º Domingo da Quaresma
(ano B)
1ª leitura: Profeta Jeremias, 31,
31-34
2ª leitura: Carta aos Hebreus, 5,
7-9
Evangelho: S. João, 12, 20-33
Muito pouco. Sendo nós tão «importantes» na escala animal, por que é
que nascemos tão frágeis e tão frágeis continuamos durante tantos
anos? Aliás, a desordenada (porque desorientada) organização social
de hoje tem provocado uma dependência cada vez mais prolongada de um
cordão umbilical.
Mas não é verdade que a nossa
vida, em todas as suas dimensões, depende, até ao fim, do carinho de
quem nos rodeia? Em termos de qualidade de vida, e não apenas de
sobrevivência, é falso dizer que alguns anos chegam para nos
podermos desenvencilhar neste mundo. Na realidade, muita gente
definha e morre até, por não encontrar, ao longo das diferentes
fases da vida, o “segundo útero” (ou “útero social”) que nos permite
consolidar a personalidade e desenvolver as potencialidades; um
“segundo útero” que estrutura e fortalece o nosso poder de
interacção, ensinando-nos a dar aos outros um carinho criador. E não
é questão apenas do grupo da família, dos amigos ou dos que
trabalham à nossa volta. É o grande grupo da nação ou de uma união
europeia: será que as leis, as directivas, os projectos… reflectem
uma genuína preocupação pela saúde total de cada ser humano?
As leituras de hoje dão a
entender que nesse “útero” é que se forma o sabor da vida e um
coração que, à medida que vai pulsando, vai afirmando e transmitindo
vida. Mas este coração não é mero fruto duma evolução biológica:
depende do querer de cada um e de todos. Esta opção é fonte de
prazer, mas também tem o seu preço: no empenho por criar condições
de interacção positiva, estamos a dar a própria vida para que haja
mais vida. São as pequeninas mortes do nosso dia-a-dia. Todavia,
porque cada uma dessas pequeninas (ou grandes!) mortes é fonte de
mais vida, o nosso dia-a-dia é feito também de pequeninas (ou
grandes!) ressurreições.
O evangelho fala de «desprezar a
vida», para que a vida dê muito fruto. Essa expressão semita
significa estar disposto a reconhecer que há valores sem os quais a
própria vida perderia sentido e até aquele sabor genuíno que só os
seres humanos têm o dom de descobrir. Valores que orientam e
defendem a pessoa.
Cristo escolheu orientar a sua
vida pelo amor: amou, sem se envergonhar de o dar claramente a
entender. Só assim poderia convencer as mulheres e homens de todos
os tempos do que significa «amar a Deus» e do que significa «amar
como Deus».
(«Amor» é de facto palavra gasta
– sobretudo na publicidade e novelas de todos os tipos. Mas também é
gasta na esfera religiosa, usada por vezes quando não se sabe o que
há para dizer ou para esconder o que não se deve fazer. Felizmente,
o significado de «amor» não está ao alcance destas poluições. Para
os antigos hebreus, «olhar a Deus é morrer», como em Êxodo, 3, 6;
19, 21, por exemplo. Será que se passa o mesmo com o amor?).
Os seguidores de Jesus, desde o
princípio até aos nossos dias, defrontam-se com o preço a pagar para
serem coerentes com os princípios da justiça. Há cada vez mais
egoísmo que mata, cada vez mais seres humanos rejeitados e
perseguidos por um “útero social” que não aceita filhos livres e
honestos. Como também há lugar para uma protecção desavisada que,
mesmo entre quem julga seguir a vontade de Deus, impõe ideais e
princípios morais mal fundamentados, cuja aplicação pode destruir a
vida de quem quer viver a sério.
A 2ª leitura é tirada de uma
carta demasiado dependente da tradição sacerdotal da cultura
hebraica, difícil para a cultura actual e bastante discutível. O que
interessa sublinhar é como Deus tornou sensível a sua “preocupação
maternal”, suscitando um profeta que podia olhar os olhos de Deus
(Actos dos Apóstolos, 3, 13-26), orientando por Ele a sua vontade, e
espantosamente identificando o sofrimento com a glória de Deus.
O evangelho refere a angústia de
Jesus perante a ameaça crescente contra a sua vida. Mas o
evangelista apressa-se a acrescentar que foi então que se sentiu a
acção benéfica do “útero de Deus” – o Deus «pai e mãe», que também
Jeremias (1ª leitura) percepcionou, e que nos entusiasma para pensar
e lutar pelo mundo novo.
Porém, «o grão de trigo»
(evangelho) ainda tinha que estar muito tempo escondido, germinando
lentamente, até que a força do Espírito de Deus tornasse os
seguidores do Cristo capazes de reconhecerem como ter a vida de Deus
é apostar numa vida cheia de alegria “apesar de tudo”. Nesse tempo,
como nos nossos dias, foi e é necessário um prolongado “segundo
útero”, tanto mais necessário quanto mais órfãos nos sentimos.
Só ama “a sério” quem está
disposto a dar a vida por quem ama (não fazem isso os pais,
educadores e qualquer outro profissional “a sério”?) – e quem está
empenhado na formação de «segundos úteros» para além dos «nove
meses»… |