3º Domingo do tempo comum
(ano B)
1ª leitura: Livro de Jonas, 3,
1-5.10
2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos
Coríntios, 7, 29-31
Evangelho: S. Marcos, 1, 14-20
…Ouvia molemente a
sucessão das três leituras. Pensei no percurso épico do profeta
Jonas, que levou três dias a atravessar a grande cidade de Nínive,
anunciando que Deus não podia permitir que durasse tanta iniquidade.
Três dias? Não era o número simbólico da perfeição? Três dias
estivera preso (Jonas) no ventre de um monstro marinho, como três
dias esteve Jesus na sepultura. Há sempre a ameaça de um monstro
para nos devorar. Há sempre a promessa e o feliz sucesso de «um dia
perfeito», em que a paz da justiça vence a confusão que cheira a
morte. Gosto de Jonas – pensei. É bom apreciar as suas aventuras,
neste banco de igreja, como apreciamos, comodamente instalados num
sofá, os mais convulsivos episódios da mais excitante produção
televisiva.
Que diria Jonas da
segunda leitura? Estaria de acordo com o aparente convite a não se
entregar a sério àquilo que fazemos, a não viver a sério sequer o
nosso estado de solteiro, casado, ou de virgem por opção? «Os que
têm esposas como se as não tivessem; os que choram… os que andam
alegres… os ricos ou os pobres… como se não fossem nada disto…
porque o cenário deste mundo é passageiro» (2ª leitura). É verdade
que Jonas ameaçou com uma calamidade iminente, mas não foi com o fim
do mundo, como S. Paulo acreditava estar mesmo a chegar – pelo menos
o fim «deste mundo», pois até desejava ardentemente «o novo mundo»
em que Jesus Cristo restauraria todas as coisas.
(Em casa, fui
conferir o contexto da leitura e não fiquei mais animado: insere-se
num vasto programa de «prós e contras», frente a questões
particulares da comunidade de Corinto; e mesmo quando parece dar
conselhos ainda hoje em dia sensatos, bem depressa puxa a brasa para
a sua sardinha e apresenta o estado de virgem (que era o seu!) como
«o mais perfeito». Porém, este é só mais um exemplo de que os
trechos bíblicos para a liturgia parecem escolhidos segundo um
critério misterioso… De resto, em abono da verdade se diga que a
vida de S. Paulo dificilmente poderia ter sido mais arrojadamente
aventureira, como se vê nas suas cartas. Até a carta em questão
refere o seu perfil de «atleta», no cap.9. E a 2ª carta aos
Coríntios quase que faz o ponto das suas aventuras, nomeadamente nos
capítulos 6 e 11).
É claro que o
sacerdote Presidente da Assembleia se esforçou por interpretar as
palavras de S. Paulo como um aviso para que não nos deixemos afogar
nas preocupações do nosso estado de vida e do nosso dia a dia – que
nos podem fazer esquecer o essencial, que é seguir a Cristo.
Não fiquei muito
convencido com a explicação. Jonas também tinha pouco tempo para
percorrer Nínive, o que o teria levado a andar mais depressa e a
gritar mais alto…
Valeu-me a passagem
do evangelho. Pondo à parte o evangelho de João, os outros parecem
«terra a terra», mais directos, mais ligados à vida de todos os
dias, para a qual o mundo nunca acaba, a não ser quando se morre ou
se perde o emprego…
O evangelho falava
de mais convites de Jesus, que tinha o dom de intuir o valor de
gente «simples» (isto é, não «complicada» como a de gente que faz da
vida um tabuleiro de xadrez, cheio de jogadas enganosas). Foram
convites para trabalhar, sem falar em «como se», sem falar em
casamento ou virgindade, sem pôr em questão o interesse no trabalho.
Convidou-os para o ajudarem a realizar o seu projecto de chamar a
atenção dos Homens para o «reino de Deus» – que está sempre próximo,
sempre a chegar. Sendo um profeta extraordinariamente unido a Deus,
lançou uma nova luz sobre a relação entre Deus e os Homens. Por
muitos outros relatos dos evangelhos, nomeadamente pelas parábolas,
mostrou que a salvação não é um toque de magia: Deus só pode salvar
o mundo se cada ser humano o quiser livremente e se puser a
trabalhar a sério naquilo que tem a fazer, afinando os seus
princípios de acção e os seus valores à medida que aprofunda o que é
a verdade, a justiça, a exigência, a alegria… próprias do famigerado
e mal compreendido «reino de Deus».
Eu continuei no
banco do fundo da igreja, pensando se Jesus me iria sacudir os
ombros para me acordar. Preferi vê-lo sentar-se calmamente a meu
lado, guardando silêncio durante largos momentos. E depois,
passando-me o braço como um velho amigo:
– Chatices com a
vida, não é? Sabes bem que também as tive… e também andei atazanado
com estas coisas do mundo e Deus e com as estruturas religiosas…
Quantas perguntas me fiz! Até mesmo nos meus últimos momentos,
lembras-te?
E após outra pausa:
– Olha, retirava-me de vez em quando, como tu agora, para pensar e
ouvir o nosso Pai (por acaso, se lhe chamares Mãe vai dar ao mesmo).
E não havia bancos de igreja… Mas eu sentia que muita gente se havia
de interessar por mim e mostrar ser minha amiga, levando-me a sério.
E como Jonas, atravessaram a grande cidade da vida (também sou
poeta, não sabias?) sem desistirem do «dia perfeito»… |