22º Domingo do tempo comum (ano
A)
1ª leitura: Livro do profeta
Jeremias, 20,7-9
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos
Romanos, 12,1-2
Evangelho: S. Mateus, 16, 21-27
Ora andávamos nós
a ler a Bíblia tão tranquilamente! Encantados com a desfaçatez da
cananeia, com a rudeza e simplicidade dos discípulos de Jesus,
outras vezes educadamente escandalizados com a pouca vergonha de
altos dirigentes do «povo de Deus», deliciados com as promessas e
milagres de multidões a comerem de graça saborosos farnéis que
pareciam nascer das mãos dos apóstolos, volta e meia derretidos com
a humanidade e humor fino de Jesus… – e de repente, tempestades
toldam o céu, arrumamos tudo à pressa e recolhemos ao nosso
cantinho, suspirando por um banho que nos acalme as ideias.
Não é para menos: sem mais
aquela, o profeta Jeremias acusa Deus de o ter levado à certa,
metendo-o dos pés à cabeça na maior das alhadas: puxar as orelhas
aos governantes e sacerdotes alérgicos à verdade; S. Paulo, pondo a
sua cara mais séria, acusa-nos de não querermos o melhor para o
nosso corpo e que temos de mudar de ideias radicalmente; e Jesus
Cristo, de tão compreensivo para S. Pedro, prega-lhe uma senhora
descasca por não perceber nadinha do que é preciso fazer para que
vingue o famigerado «reino de Deus». E até a nós, sossegadinhos com
a Internet, nos lança palavras amargas! Tão bem dispostos que
estávamos para o seguir! Para quê arrastar-nos para este «comboio
fantasma», aos encontrões com cruzes ensanguentadas e gritos
lancinantes de solidão?
Qualquer coisa
parece não bater certo…
Nada mais
vergonhoso do que ser desertor. Daqueles que deixam os companheiros
a dar a vida por um projecto comunitário – que só é comunitário se
bem discutido. O grande inimigo, porém, é o joio que envenena e
afoga as boas intenções e a própria razão, espalhando a loucura do
totalitarismo e do carneirismo. Só uma sociedade de desertores é que
permite um poder desmedido, mentiroso e egoísta. Os piores
desertores só sabem reagir como cobras assustadas – cujo ideal de
vida é localizar a comida e esconder-se numa toca a digerir
longamente, até que uma crise de fome obrigue a um rastejar
aparentemente higiénico.
Mas quem procura
um lugar cómodo e sossegado para ler e meditar, não tem nada de
desertor. Pelo contrário: desperta as energias próprias do corpo
humano, muito superiores às das cobras enroscadas e enrascadas. Este
corpo equilibrado e saudável ainda é mais do que maravilhosa
organização física e química: possui a consciência de si próprio e
de como se situa num mundo cada vez mais vasto. Um mundo por vezes
totalmente diferente para cada ser humano, devido às
«circunstâncias» de cada qual – milhares de anos ou milhares de
costumes a separar-nos (e não necessariamente em relação directa).
O profeta
Jeremias (há mais de 2500 anos) é afinal quem a gente compreende
melhor: Sentiu na pele que a Deus não se aplica o esquema «amigo não
empata amigo». É certo que, na religião judaica, Deus conhece-nos
melhor do que nós mesmos, sendo para além da concorrência o mais
íntimo dos amigos. A nossa razão, porém, com a maior honestidade,
não vê como estar de acordo. Por outro lado, verdade verdadinha, a
vida não passa a correr melhor se nos descartamos de Deus – e até
nos arriscamos a perder uma relação de amizade, por muito estranha
que seja… Uma amizade que ao menos dá sentido e esperança à vida – a
esta vida de descansos e lutas, de paixões e ódios, de crueldade e
solidão, de enamoramentos e desilusões e das mais doces e íntimas
carícias entre corpos que se amam.
Este corpo que S.
Paulo (fã de Jesus Cristo, passados cerca de 10 anos após o drama da
morte e «ressurreição») via como o conjunto visível das nossas
dimensões físicas e espirituais. Um corpo a ser bem cuidado – ele
bem sabia da preparação conveniente aos atletas olímpicos (1ª carta
aos Coríntios, 9,24-27; 2ª carta aos Coríntios, 11, 23-33; carta aos
Filipenses, 4, 11-13).
No entanto, a sua
vasta erudição rabínica, juntamente com uma autêntica «sede de Deus»
– o centro da perfeição do ser humano e de todo o universo –
tornaram-no especialmente sensível à questão messiânica: Jesus de
Nazaré era o Messias prometido, o Cristo, elevado por Deus à
categoria suprema de Senhor de tudo quanto existe, por ter sido
exemplo da mais alta perfeição dos seres mais perfeitos de toda a
criação. De tal modo, porém, vivia persuadido de que a morte e
ressurreição de Cristo eram o sinal de já ter chegado «o fim dos
tempos» (no sentido de «fim do mundo»), que pregou aos quatro ventos
a urgência de nos desprendermos de tudo o que nos poderia distrair
do último lanço de corrida de fundo, de encontro à coroa de louros
com que Jesus Cristo já nos acena (2ª carta a Timóteo, 4, 7-8).
Banquetes, riquezas, vida de casado e sobretudo os prazeres do
corpo… só serviam de tropeço (1ª carta aos Coríntios, 7). E depois,
e depois… a questão sexual era alvo das mais antagónicas valorações:
acto de amor criativo? Símbolo mais ou menos longínquo da união com
Deus? (não podemos deixar de mencionar «O Cântico dos Cânticos» – em
que a poesia do erotismo se casa com o desejo da união profunda
entre os amantes – conceitos de dimensão religiosa). Ou sujeição ao
«mundo da carne» – o mundo que nada quer com Deus e que chega a agir
como inimigo de Deus (Romanos,8,5-11; 1,24-32)?
Muito
correctamente o missal português diz «que vos ofereçais a vós
mesmos», em vez da tradução literal «ofereçais os vossos corpos»
(Romanos, 12, 1), expressão hoje empobrecida e que veio a favorecer
o preconceito negativo sobre a actividade sexual – esquecendo que
mostrar a Deus como o nosso corpo nos dá prazer e como cuidamos dele
o melhor que podemos, é profundo acto religioso.
É difícil
eliminar as nuvens paulinas sobre o corpo humano e particularmente a
sua actividade sexual – nuvens que até aos nossos tempos formaram
tornados capazes de sugar a própria razão humana! Porém, a questão
sexual (que constitui apenas uma derivação à 2ª leitura, mas
oportuna) é incomparavelmente mais velha do que a Sé de Braga. Somos
nós, estes corpos extraordinários, que nos podemos perder no
nevoeiro – talvez por estarmos distraídos durante as lições de
orientação física e espiritual…
S. Pedro queria
acompanhar Jesus tão depressa, que não via nem onde punha os pés nem
onde trazia a cabeça. E Jesus tentou pô-lo na ordem: os seus
seguidores precisam de um corpo perfeito, capaz da mais alta
competição. Jesus deu o exemplo de como uma vida dedicada ao bem da
humanidade é uma «corrida de obstáculos» (evangelho) mas com o
prazer de o ter entre a nossa equipa (Mateus, 11, 28-30).
Já nesse tempo, a
cruz era símbolo de problemas. Não podemos desertar, deixando a
nossa cruz aos ombros dos outros. Aliás, não faltam amigos para nos
encorajarem e para nos ajudarem a ver a beleza da vida, em que a luz
acaba por vencer as sombras. Jesus gosta de se apresentar como o
grande amigo.
Confundir a vida
com uma boa caçada e fuga discreta ao perigo é auto-excluir-se da
«promoção na carreira». Quem muito ama, arrisca o seu bem-estar e a
própria vida pelo bem dos outros – e não só do «corpo» amado: a
união de dois corpos será tanto mais íntima e de prazer mais
duradoiro quanto mais for um momento de supremo bem-estar, físico e
espiritual, potencializando a energia que integra a nossa vida no
humaníssimo projecto de Cristo.
Jesus amou e
sofreu e foi feliz. Procurava o bom convívio e apreciava
notoriamente, sem ser esquisito, o carinho feminino – viesse ele das
irmãs, tão diferentes entre si, do seu amigo Lázaro; de Madalenas
envoltas em mistério; de samaritanas extrovertidas mas sabedoras das
melhores fontes de água; e ainda de «outras Marias», sobre cuja
identidade não há consenso, mas que dão especial colorido ao
evangelho.
Assim é que
também Jesus, como todos nós no chegar das horas amargas, mas sem
desertar da corrida, podia ter este desabafo: «para isto filho de
meu Pai?» |