Liturgia Pagã

 

A nova torre de Babel

 

Domingo da SS. Trindade (ano A)

1ª leitura: Livro do Êxodo, 34, 4-9

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 13, 11-13

Evangelho: S. João, 3, 16-18

  

O domingo de Pentecostes festejou a comunhão, animada pelo fogo alegre e pacificador do espírito divino, em que até S. Pedro falou «ex cathedra» – com que simplicidade e clareza! É que só se preocupava com a firmeza da mensagem de Jesus, já depois de saber como é difícil ser fiel a um amigo, sobretudo quando este não hesita em dar a vida pela causa da vida. E assim se ultrapassava a triste história da torre de Babel.

Mas bem pouco depois… cabeças de grupo olharam mais para Pedro, ou Paulo, ou Apolo… (1Coríntios,1,12-13) e para a importância da «cathedra». Com o tempo, chegou a haver lutas por quem havia de se sentar na «cadeira» de Pedro. A proliferação dos «catedráticos» levava cada qual a gritar que só ele tinha razão, ou que ninguém poderia ter razão nem a «salvação» enquanto não seguisse o respectivo «curso catedrático».

Foi assim crescendo a torre de marfim de conceitos filosófico-teológicos. Enfim, por excesso de boa vontade, por vaidade ou por orgulho, ou por honesta reacção aos exageros, ergueu-se uma descomunal torre de Babel, onde até os bem-intencionados, gente letrada e gente simples, acabaram por ficar prisioneiros.     

Toda a ironia do texto acima não pode fazer esquecer que a arquitectura desta torre é obra do notabilíssimo engenho humano, insatisfeito porque não consegue atingir Deus, e afinando prodigiosamente os conceitos com que se foi construindo uma profunda e ainda válida antropologia. Uma antropologia que desde o início englobou a autêntica dimensão técnica e científica – e o mal foi terem surgido uns «catedráticos» especializados na confusão e até na perseguição e morte de quem não os seguia ou de quem dificultava os seus esquemas nada cristãos de poder (já em si um conceito pouco cristão) ou de obscurantismo.

No séc. XIV, prevaleceu a ideia de que mais valia fazer uma festa não à vida mas a uma estrutura conceptual – uma celebração do esforço intelectual por uma «arquitectura ortodoxa». Porém, uma festa que não podia evitar a confusão e até contradições. Uma festa que lembra um hastear de bandeira, ao estilo bélico, afirmando que só esse grupo tinha a verdade perfeita e a perfeita experiência de Deus – até historicamente, através da sucessão de S. Pedro. Uma bandeira que ainda hoje pode ser hasteada agressivamente, impossibilitando o entendimento entre a polimorfa experiência de Deus, nunca passível de ser exclusiva de um sistema religioso, e, socialmente, impedindo que todos os homens possam testemunhar, em si e nos outros, «o fogo de Deus» cuja veracidade já S. Paulo dizia validada pelos seus efeitos: «amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio» (Gálatas, 5,22-23).

Por outro lado, não estaremos nós, em gíria moderna, a pretender «violar a vida íntima» de Deus? Como que procurar a estrutura interna de Deus – cuja ideia, só por si, é o grande mistério?

A luta das ortodoxias teve outro efeito negativo: idolatrar a palavra escrita das «religiões do Livro», promovendo a ideia de um texto «inspirado» por Deus – mas de tal modo «inspirado» que recebia o culto de um texto «ditado», de sabedoria inatacável. Compreensível desejo humano, comum a várias religiões, de possuir «relíquias de Deus». E que no imaginário religioso, sustentado pelo secular aluvião teológico, gerou estranhas visões antropomórficas de Deus, «dividindo» (os conceitos não podem fazer outra coisa) a realidade «absoluta» (isto é, fora da nossa dimensão) de Deus em imagens de um Deus patriarca, cujo «Filho» como que nos veio acarinhar e entregar-se à morte por amor – e um espírito de amor tão forte que se manifestava sob formas especiais (como a de pomba).    

A maior dificuldade em ler a Bíblia, é a tentação de procurar fórmulas mágicas ou cabalísticas, ou de se prender a determinada palavra ou imagem. Muito particularmente, não podemos dar aos «títulos» de Deus, de Jesus, dos profetas e reis bíblicos, o mesmo valor ou sentido que terão nos dias de hoje e em culturas diversas.

O conceito de Deus-trindade é o resultado dessa «missão impossível», como o próprio S. Agostinho confessava – e radica na preocupação crescente, entre os cristãos, de «divinizar» Jesus sem pôr em causa a unicidade de Deus. Que grande torre de Babel se foi erguendo!

Segundo muitos especialistas, Deus-Trindade é uma tentativa de reflectir a riqueza da nossa experiência de Deus, ou, de outro ponto de vista, a multiforme acção de Deus na história humana. A célebre passagem de S. Mateus «baptizai todos os povos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (28, 19) tem os contornos de uma fórmula sacramental, que a primeira comunidade cristã atribuiu ao seu fundador: pelo ritual do baptismo, confessamos que o Amor de Deus, o fundamento de toda a existência, a que Jesus se referia carinhosamente como Pai ( «Abba»), se tornou sensível, historicamente identificável, nesse mesmo Jesus – para os cristãos, o «cristo», o «especialmente eleito» ou «o Filho de Deus». A este amor tão forte e tão acima dos condicionamentos humanos chamamos Espírito («sopro de vida») – a força que Jesus prometeu que estaria sempre a nosso lado. São como que vários modos com que temos percebido a revelação de Deus, alimentando o nosso entusiasmo para colaborar no plano divino. De modo semelhante se deve interpretar a fórmula triádica da 2ª leitura – de tradução discutível, e que apela de novo à nossa união no mesmo espírito, como Jesus tanto queria.

Existencialmente, o mistério da Trindade é o mistério de que vida é incompatível com solidão ou egoísmo. Através das muitas maneiras com que a humanidade se refere a Deus ou o tem presente (até no relato das mais ignóbeis peripécias da vida) – e a Bíblia é riquíssimo exemplo da nossa «história» espiritual, – podemos e devemos procurar o caminho para o Deus único e que nos deixou o desafio da justiça, o impulso para agir no mundo com toda a inteligência e criatividade – esse bichinho importuno, a meter-se em toda a parte.

 Procurar o que é Deus, com toda a artilharia da lógica, da investigação científica mais arrojada, e dos mais refinados cálculos de probabilidade, será sempre um bom exercício. Mas como para tudo queremos «critérios objectivos» de avaliação – e para a acção! – cedo nos confrontamos com uma realidade que não é codificável porque é amor – a justiça. «À imagem e semelhança de Deus», também o nosso amor não cabe em palavras e muito menos em códigos (nem nos religiosos, quanto mais nos políticos!)

O homem moderno não confia no poder do amor (um conceito facilmente ora lascivo ora piegas), na medida em que se habituou a confiar apenas no que pode controlar tecnicamente. Prefere limitar-se àquilo que está legislado, com medo da sua própria inclinação para bondade (não confundir com prudência). Esquecemo-nos de “fazer bem”, de defender a justiça e de melhorar a sociedade, porque basta (e é mais seguro!) fazer só «como está escrito». Caímos no «dogma da bondade».

Mas «à imagem e semelhança de Deus», também o ser humano é um mistério. E nem sempre é fácil ver como a plenitude da liberdade só se pode identificar com a plenitude do «mandamento novo» de Jesus: o mandamento da vida – incompatível com o egoísmo.

Se a Trindade é paz, «vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco» (2ª leitura).

 19-05-2008


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