Liturgia Pagã

 

Investir no deserto

 

3º domingo do Advento (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 35, 1-10

2ª leitura: Carta de S. Tiago, 5, 7-10

Evangelho: S. Mateus, 11, 2-11

 

Terras áridas», como diz Isaías, nada propícias ao florescimento da vida. A lembrar a maioria das igrejas católicas: atraem os curiosos, como turistas no Sahara ou, quando muito são refúgio de ocasião para quem precisa de se encontrar com Deus, longe do palco habitual da nossa vida – vida cada vez mais frenética, ruidosa e feroz como as lutas dos machos pela supremacia e pelo direito de possuir a fêmea mais dotada.

Para uns, o deserto é sobretudo sentido como ausência de vida à nossa volta; para outros, o deserto é o efeito do vento ruinoso das suas próprias palavras estéreis, deprimentes como essa paisagem, mas que serve à perfeição para gritarem e se ouvirem a si próprios.

Apetece desejar que ao menos os templos sejam cada vez mais desertos: não encontraríamos lá exemplos tristes da maneira de unir o humano ao divino, e, no total «segredo com Deus», viveríamos a razão profunda que nos levou até ao ermo.

Porque o deserto também enche o nosso imaginário da força misteriosa que parece vir de todos os lados e tanto nos pode trazer pavores como a beleza da solidão que robustece. «Deserto», aliás, etimologicamente, significa «fora da série» (ao contrário de «dissertar»), desligado, livre, adquirindo cedo o sentido de abandono e solidão. Por isso, para quem tiver coragem de exercitar a sua liberdade, o deserto está sempre ao nosso dispor, afinal dentro de nós.

«Que fostes ver ao deserto?», perguntou Jesus aos discípulos de João Baptista. E eles poderiam ter respondido: fomos ver as terras áridas cobrirem-se de flores e exultarem com brados de alegria; fomos ver o descampado a cobrir-se de vida, onde os surdos entendem a voz do vento e os mudos proclamam as novas maravilhas de que os cegos já podem ser testemunhas; fomos ver, ouvir e sentir um profeta extraordinário que dizia de si nada valer, porque apenas é pregoeiro da chegada eminente da Vida que vence a desolação.

 Só que João julgava que essa Vida apareceria como num trono glorioso de reis e como justiceira de toda a humanidade. «Serás mesmo tu, Aquele que há-de vir?»

Nem S. João Baptista, na intimidade com Deus no deserto, podia ver claramente a estranha novidade. Tão estranha, que o próprio Jesus, com as limitações próprias da nossa espécie humana, só lentamente, ao longo da sua vida, foi interiorizando essa mesma missão divina, modificando o próprio discurso e maneira de agir.

 Talvez radique neste passo a esquisita afirmação de que «o menor no reino dos Céus é maior do que João Baptista»: só depois de Jesus, é que podemos compreender o novo estilo da relação de Deus connosco, sem a imponência algo aterradora das antigas manifestações divinas. Doravante, a nossa relação com Deus situa-se noutro nível, de que João foi o grande «mensageiro que prepara o caminho». A ressurreição de Jesus mostrou que toda a humanidade leva em si a semente que lhe permite «ressurgir», e toda a natureza está sequiosa pelo final feliz do plano de Deus para toda a Criação.

Com a vinda de Jesus, descobriu-se o sentido profundo do maravilhoso poema de Isaías – o profeta que mais expressivamente apresenta a dor e a alegria, a luta e a paz da terra inteira.

Jesus, porém, advertiu: «bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo». Jesus é sinal de contradição (Mateus, 10, 34), porque nos provoca, exigindo uma escolha corajosamente “transparente” (como “certos alguns” passam o tempo a exigir – mas a esses sugere Jesus (Mateus, 7,3) que limpem a sujidade dos próprios olhos, antes de atacarem o argueiro nos olhos do vizinho).

Não podemos chamar bem ao que é mal, nem vice-versa. Não podemos cruzar os braços quando a ajuda está ao nosso alcance. Mas como seres eminentemente sociais, é nosso dever saber discutir os diversos pontos de vista e avaliar o fruto das árvores. Será que, quando lutamos, esquecemos a diferença específica da humanidade que é a capacidade racional? (Note-se que lutar não é «para matar»! O radical indo-europeu «leug» (flectir) aponta claramente para a actividade ginástica).

Com a vinda de Jesus, consolida-se a esperança da «eterna felicidade» (Isaías). Se não fosse eterna, que adiantava a esta vida? O próprio Nietzsche comentou que a alegria exige eternidade.

Mas precisamos de tanta «paciência»! Que o diga S. Tiago (2ª leitura). Paciência que é firmeza durante a adversidade, tempo do amor que ama sem olhar ao tempo; a paciência simples de quem sabe que «atrás de tempo, tempo vem»; a paciência dos amigos da Sabedoria, que espera, perdoa, mas vai sempre corrigindo, sem se destruir com a indignação, interessada mais em alimentar a erva boa do que em destruir sem jeito a erva má.

Não se chama Deus a Ele próprio, o «Deus da paciência»? Namorou o seu povo durante quarenta anos no deserto... Quando amamos apaixonadamente, tudo o mais é deserto. Mas quando a paixão se transforma em amor mais rico, todo o deserto se enche de Vida e de verdadeiros profetas – estrelas que brilham sem nos cegarem com o venenoso «pó de estrelas».

Afinal, o deserto tem muito para dizer. Que vamos investir no deserto?

 16-12-2007


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