24º Domingo do
tempo comum (ano C)
1ª leitura: Livro
da Sabedoria, 9, 13-19
2ª leitura: Carta
de S. Paulo a Filémon, 9-17
Evangelho: S.
Lucas, 14, 25-33
As leituras do
evangelho deste domingo são consideradas, por muitos teólogos e
liturgistas, como representativas do núcleo do Evangelho, e
particularmente das memórias que S. Lucas nos quis deixar sobre a
pessoa de Jesus. Em especial, a parábola conhecida vulgarmente como
a do «filho pródigo» figura no topo das passagens mais comentadas
por especialistas, por crentes e não crentes, por quem se interessa
pela experiência de Deus, ou mais simplesmente pelas formas de vida
espiritual. Todos parecem concordar em que o traço dominante é a
revelação de Deus como «alegria de procurar», «alegria de
encontrar», «alegria de conviver», «alegria de só querer bem».
Das três
alegorias do evangelho sobre a alegria de salvar, é particularmente
pitoresca a da mulher, de vassoura nas mãos, revirando a casa
inteira metodicamente, sem descansar enquanto não encontra o que
procura. E à alegria do sucesso, acresce o prazer de uma casa
limpa...
Tudo obra de uma
vassoura adequada, em mãos tão decididas como criteriosas e
cuidadosas. Para procurar a moeda de oiro, não vamos partir as
porcelanas; nem vamos lançar o lixo noutros cantos, e muito menos
para o quintal do vizinho. E se as crianças parecerem estorvar, não
as vamos correr com o cabo da vassoura. Nem varremos o quintal com a
mesma vassoura da sala de jantar ou de estar. E se acharmos bem
emprestar a vassoura ao vizinho, é ofensivo e contraproducente
passar-lhe a vassoura mais velha ou, pior ainda, escavacada. Muito
menos devemos impor aos outros o nosso estilo de vassoura e de
varrer, por muito que a casa dos outros se mostre suja e
desarrumada. O ideal é perguntar com amizade: será que lhe faz jeito
a minha vassoura? Quer experimentar aquela espécie de vassoura
“último grito”, que o amigo até se diverte a observar?
E não vamos
aprofundar algumas formas patológicas da síndroma da vassoura: desde
o querer dar nas vistas “montado numa vassoura” (entram aqui os
“efeitos especiais”); até ao fazer negócio exportando vassouras em
peças soltas, tão sofisticadas que quem as procura montar só
consegue construir metralhadoras. É que a vassoura também pode ser
vista como símbolo agressivo de poder (autoridade e poder são coisas
distintas), uma forma perversa da «varinha mágica» nas mãos dos
domadores de feras, dos pesquisadores de veios de água, ou dos
pastores e condutores de orquestra...
O evangelista S.
Lucas apresenta Jesus como o trabalhador incansável para um encontro
alegre do Homem com Deus. Utilizando os melhores conceitos humanos
para juntar amor, perdão, justiça e preocupação maternal, dá a Deus
a imagem de Pai, suficientemente corajoso para exigir que o amor dos
filhos tenha a marca transparente da liberdade. À imagem desse Pai,
é que Jesus tem a coragem de “arregaçar as mangas”. Outra lição é
patente no evangelho: quem se acomoda ao bafio das salas deixa
cobrirem-se de pó e de esquecimento grandes e pequenas preciosidades
– o valor dos outros e do nosso ambiente ou o valor da nossa vida
interior, com o seu passado de experiências mais ou menos
agradáveis. Depois de uma limpeza a sério, descobrimos como até os
piores momentos da nossa vida escondem surpresas bem valiosas.
E que outra coisa
fez «o filho pródigo» senão resolver-se a limpar a consciência e a
dar brilho à sua memória, até se dar conta do amor que tinha perdido
e do egoísmo em que se deixara atolar? Mas não teria recuperado esta
força, não fora uma sólida educação familiar ter-lhe dado os
alicerces de um amor e confiança resistentes a toda a prova.
Será que a nossa
varredora não sentia alegria pelas outras moedas de ouro ainda
guardadas? Será que o pastor se deixou de interessar com as «noventa
e nove» ovelhas bem a salvo no redil ou no campo de pasto? Será que
o Pai do «filho pródigo» se sentia infeliz com a companhia do outro
filho? De certeza que Jesus, ao ilustrar a sua grande missão de «vir
ao mundo para salvar os pecadores» (2ª leitura), pegou naquele
sentimento tão forte que Deus deixou nos homens, «quando os criou à
sua imagem e semelhança»: nunca estamos satisfeitos com o muito que
possamos ter ou com o muito que fizemos. Se os «noventa e nove
justos» e o «filho fiel» do evangelho não se esforçarem
continuamente por valerem cada vez mais, passarão a ter de justos
apenas o nome, à semelhança dos que se chamam “trabalhadores” para
encobrir que não trabalham; ou se chamam “democratas” para melhor
esconder um egoísmo desumano.
Não anda na
justiça quem fica a dormir sobre a riqueza acumulada (S. Lucas, 12,
16-21), quantas vezes «à custa dos despojos dos pobres» (Isaías, 3,
14-15). São inúmeras as passagens bíblicas à volta deste tema. Jesus
veio claramente afastar-nos de especulações sobre um Deus punitivo:
Deus quer que os homens não se acomodem ao bem-estar nem desesperem
com a adversidade, mas antes de tudo tirem partido para gerar a
beleza e o bem, e tendo a coragem de discernir e discutir
publicamente o que é bem e o que é mal.
Seria o «filho
fiel» um bom irmão? Não teria de ir procurar o «filho pródigo», para
praticarem juntos o caminho de regresso à casa paterna? Afinal, o
«filho mais velho» não sabia varrer a casa dos seus preconceitos,
presunções, comodismo e frustrações, próprias de quem não confiava
numa conversa aberta com o pai e com a família. Cobriu de pó e de
lixo as coisas valiosas que o pai lhe deixou. Só para alguns é que
aparecia como um filho bem comportado.
O pior é quando
filhos como estes são chamados a gerir a casa, sem nunca terem
varrido e nada interessados em varrê-la como convém e para o que
convém. Aplica-se a eles o que disse o profeta Isaías: «Povo meu, os
que te guiam destroem o caminho que deves seguir» (3, 4-12).
Confundem varrer com “andar à vassourada”, perdendo cada vez mais o
tesouro que faz falta a todos e impedindo os filhos de ocupar um
lugar produtivo na família.
2007.09.16 |