Liturgia Pagã

 

Dar ponto sem nó

 

22º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Livro de Ben-Sirá, 3, 19-21, 30-31

2ª leitura: Carta aos Hebreus, 12, 18-24

Evangelho: S. Lucas, 14, 7-14

 

Um estudo internacional revelou, há tempos: as aulas geralmente mais preferidas são as de moral – mas simultaneamente as mais decepcionantes e inúteis. Por um lado, estão entre as mais interessantes e ligadas à vida – mas… quem quer ter sucesso na vida não lhes pode ligar muito!

Quem é que não gosta de aparecer na televisão ao lado de pessoas importantes, mesmo sem fazer nenhum? Quem não gosta de dizer que privou com um peso pesado na vida pública? Não é só uma questão de gostar: é um passo eficaz para o sucesso.          

E até se pode dizer que se fez tudo isso para ouvir a sabedoria de quem ocupa lugares de relevo. Como também é politicamente correcto declarar publicamente que somos humildes e prestamos atenção às críticas dos outros. E que até obedecemos à voz da maioria. Ou que até entregámos uma pequena fortuna aos pobres…

Tudo é bom, se for usado para bem de todos.

Porém, espreita sempre a tentação de subverter a sabedoria da humanidade e de transformar as relações humanas num jogo meramente calculista e até escorregadiamente criminoso.

Ouvir a sabedoria é a virtude da obediência. Nisto consiste a verdadeira humildade: não ter vergonha nem receio de escutar (sentido etimológico da palavra obedecer = pôr o ouvido à escuta). A verdade não é prerrogativa das pessoas importantes, nem sequer no plano religioso. Pilatos, diante de Cristo, perguntou o que era a verdade. Mesmo que ele conhecesse o valor de Cristo, precisaria de carácter suficiente para dar a cara pela procura da verdade. Sem dúvida que a verdade brilha por si mesma – mas infelizmente é a modos de uma estrela de outra galáxia… Mas será vergonha querer e dizer que procuramos ouvir a verdade? Não só revela coragem como muito trabalho: há demasiado ruído feito por aqueles para quem tudo é uma discussão de negócios ou poder.

A avidez pelos primeiros lugares tira-nos a paz de espírito para ouvir as coisas sábias que porventura serão ditas tanto nos lugares mais nobres como nos mais vulgares. E sem praticarmos esta capacidade de ouvir, com particular atenção para com aqueles que estão «no fundo da sala» e falam livremente sem se preocuparem com lisonjas, pomos em risco a imprescindível prudência na gestão de relações humanas. Só quem escuta os outros com honestidade e calma é que pode propor o remédio conveniente.

Por isso diz Ben-Sirá: «Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te». A humildade é uma virtude central em todas as religiões, justamente porque sem ela perdemos os ouvidos para continuamente olhar a realidade e descobrir aquilo que vale a pena. Pela mesma razão, é virtude central em política.

Jesus utiliza frequentemente o banquete como imagem do «reino de Deus». Por isso, no «Pai-nosso», pedimos a Deus: «que o teu reino se estabeleça entre nós» – isto é, que sejamos sensíveis ao desejo da justiça perfeita, própria de Deus. De nada valem os acotovelamentos pelos primeiros lugares, muito pelo contrário – e «ai daqueles que impedem os outros de caminhar na justiça»! (Lucas, 17, 1-3).

Jesus até louva a boa educação (ou o truque!) para nos sentirmos honrados: «Quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar, e quando vier aquele que te convidou, dirá: amigo, sobe mais para cima». Acontece, porém, que os socialmente desfavorecidos continuam eternamente no último lugar – se é que não são expulsos como indignos ou subversivos… Talvez por isso, Jesus dá um conselho que hoje em dia passa por técnica “de charme”: «quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos». A conclusão, porém, elimina toda a tentação de “caça aos votos”: «e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te» (Evangelho). A retribuição é a garantia da felicidade que nos acompanha para sempre, guardando apenas os bons sabores dos tempos de luta. Mas a luta a sério dá-se na organização dos “banquetes”: quando os ocupantes habituais dos últimos lugares são convidados “a votar” de acordo com a consciência, tomando parte activa, livremente, na organização. É um trabalho difícil, de parte a parte.

Aquelas aulas lindas de moral podem ao menos mostrar como há leis tão mal feitas que só favorecem a falta de respeito por tudo o que é lei, só contribuindo para desorganizar a sociedade; e que as próprias leis morais não são suficientemente reflectidas e dignificadas; e que sobretudo a justiça é uma luta contínua. Como diz a carta aos Hebreus, só a vê quem presta atenção às realidades acima do sensível e quem faz da vida, mesmo nos mais duvidosos banquetes, uma verdadeira «reunião festiva» – porque todo o tipo de convívio deve ser uma festa à espantosa riqueza de cada ser humano.

2007.09.02

 

  Página anterior Página inicial Página seguinte