Liturgia Pagã

 

«Diz-me com quem andas...»

2º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro de Samuel, 3, 3-10.19

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 6, 13-20

Evangelho: S. João, 1, 35-42

 

A 2ª parte do provérbio é cada vez mais difícil de comprovar. De facto, a sociedade contemporânea já pouco se organiza por grupos «tradicionais» familiares ou outros: hoje em dia, o normal é «andar» com quem nos encontramos – na escola, no trabalho… e ninguém dirá que é boa ou má pessoa porque lhe calham estes ou aqueles companheiros.

A resposta do provérbio também depende do sentido que podemos dar ao verbo «andar»: seguir o caminho não importa com quem, acompanhar os que vão para o mesmo trabalho ou escola… ou «andar» mesmo a tramar alguma coisa com outros?

«Tramar», por seu lado, pode ter um sentido claramente positivo: por exemplo, «andar a tramar» uma solução para o mau ambiente do grupo ou, mais arrojadamente, para que deixemos de «andar» nas mãos de gente incompetente e eventualmente perversa – sem sequer nos darmos conta de que é gente suficientemente astuta para se apresentar como líderes salvadores, gente que sabe enrolar os outros com promessas atraentes, mas que ou são irrealizáveis ou exigiriam honestidade da parte desses e outros líderes…

As três leituras deste domingo exemplificam o provérbio: só somos alguém se sabemos «com quem andamos» e o que «andamos a fazer».

Na 1ª leitura, o pequeno Samuel ouvia alguém chamar por ele. Julgou que era o seu mestre Heli, em quem tinha plena confiança. Várias vezes ouviu a mesma voz, mas o mestre não quis que o seu discípulo fosse enganado por quem quer que fosse, e mandou-lhe pedir a identificação de quem o chamava. Assim, só depois desta prudente exigência, é que Samuel se arriscou a seguir «a voz» – que era a voz de Deus. (Não é verdade que bem poderia ser um colega ou «amigalhote» a desafia-lo a altas horas para uma malandrice?...)

Na 2ª leitura, S. Paulo preocupa-se com a perigosa falta de prudência dos cristãos da jovem comunidade de Corinto. Logo desde o princípio que a expansão do cristianismo defrontou o problema da aculturação: saber juntar muito discernimento e abertura de espírito para respeitar e até tirar partido dos costumes locais e simultaneamente clarificar o núcleo da «boa nova».

Acontece que a cidade de Corinto, como outros portos do Mediterrâneo, era bem conhecida pela libertinagem e tráfego sexual. Nada mais fácil para os coríntios do que desculparem-se com os costumes locais… até porque, gabavam-se eles próprios, o cristão é eminentemente livre… Não sabiam condenar o mau uso do que é bom nem ter cuidado com os exageros. S. Paulo sublinha que a liberdade é ilusória se não é usada para o bem da comunidade e se é reduzida a uma satisfação egoísta do prazer individual. A unidade perfeita de corpo e espírito implica uma sexualidade orientada para o prazer da comunicação amadurecida, ao serviço de vida mais «rica» para todos. Em conclusão: os coríntios «andavam» mesmo sem rumo, como se não fossem animais racionais. (Não será sempre aviltante deixar-se «andar nas mãos» de outrem?…)

E no evangelho? É João Baptista quem grita para os seus discípulos: «Olhem, é Jesus que está a passar! Aquele de quem eu já disse tanta coisa extraordinária!»

Os discípulos de João acreditaram no seu mestre (como Samuel o fizera) e dispuseram-se a seguir Jesus. Mas Jesus é que não queria que as pessoas fossem atrás dele só por ouvirem palavras lindas ou elogios, nem por ele irradiar simpatia e saber ir ao encontro dos outros (o que era bem verdade). Virou-se para eles e perguntou: «porque é que deixaram João para virem comigo? É para saberem onde eu moro? Então, abram bem os olhos para verem como é que eu vivo. E depois… é que podem dizer se ficaram mesmo convencidos de que vale a pena «andar comigo»…

18-01-2015


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