Liturgia Pagã

 

Deus é mau negociante

27º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 5, 1-7

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Filipenses, 4, 6-9

Evangelho: S. Mateus, 21, 33-43

  

É o profeta Isaías que o diz. Procurou um terreno fértil, plantou uma vinha com todos os cuidados… mas a terra recusou-se a dar fruto. Não teve outro remédio senão deixar a vinha ao abandono e lá se foi o negócio por água abaixo.

Jesus foi ainda mais dramático, no dizer de S. Mateus: os trabalhadores da vinha não só se recusaram ao que lhes cumpria fazer, como até mataram o filho do proprietário. (E nos nossos tempos, não acontecem coisas destas a mensageiros da boa vontade?).

Ambas as leituras apresentam o «povo escolhido» como um mau negócio para Deus. E no entanto são os profetas gerados no seio desse mesmo povo que encabeçam as mais altas manifestações de espiritualidade e de justiça social. Duas coisas, aliás, que só se desenvolvem se andarem juntas. Quantas vezes vemos o que deve ser feito em justiça social, mas não temos vida espiritual suficientemente rica e dinâmica para alicerçar o esforço pessoal pela realização do bem comum!

É necessário, porém, que um grupo inteiro se entreajude, para lutar eficazmente com esse objectivo. Mas para agir correctamente, precisamos de olhar criticamente para a nossa matriz cultural, para formar juízos válidos sobre o que vale a pena conservar ou implementar e sobre o que vale a pena pôr de lado.

Tanto Isaías como Jesus se revoltaram contra o imobilismo religioso dos seus contemporâneos, mais preocupados em guardar costumes, rituais e rebuscados mandamentos, do que em atender à exigência contínua do «reino de justiça», que é o «reino de Deus». É preciso fazer render ao máximo o investimento de que somos depositários. Na parábola dos talentos (Mateus, 25,14-30), é claro que, para Jesus, cada ser humano é um investimento de Deus; e a parábola dos trabalhadores convidados a horas diversas (Mateus, 20,1-16) revela que para Deus o mais breve momento de vida pode e deve ser «jogar na bolsa» (mas naquela que se rege pela «tabuada de Deus», como vimos no domingo 25º).

Em contraponto, a carta aos Filipenses continua o convite à alegria e à paz de espírito. Para S. Paulo, a mensagem cristã aumenta e aprofunda as grandes virtudes humanas referidas nesta passagem (com notável influência do pensamento estóico). Inspirado nas palavras e vida de Jesus Cristo, alerta a comunidade filipense contra as práticas e doutrinas doutros missionários demasiado presos a princípios e costumes que empecilham a vida.

É por isso que o movimento missionário, em qualquer religião, não se pode transformar numa forma de domínio e de agressão cultural – mas tirará partido da riqueza própria de cada cultura, sem a classificar em superior ou inferior (o que seria a pior maneira de estabelecer contactos novos). Já S. Paulo se preocupava com os «missionários» de fraco nível espiritual, prontos a cativar de qualquer maneira e transmitindo uma religião ridícula. Mesmo nos que honestamente procuram espalhar a boa nova, a falta de respeito pela cultura local apenas produz «cristãos» limitados a papaguear.

Contra a imagem de um cristão alienado deste mundo ou, o que é o mesmo, imerso no seu pequeno mundo (que defende nada cristãmente), estrutura-se a tão empolgante como arriscada e conflituosa imagem de alguém que cultiva tudo o que é bom e belo à sua volta; de quem transforma o mais jocoso momento de anedotas ou o mais sensual jogo de amor num investimento de vida.

Um negócio arriscado? Mas quem acha que não vale a pena?

05-10-2014


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