Liturgia Pagã

 

A arte de saber olhar

Exaltação da Santa Cruz (ano A)

1ª leitura: Livro dos Números,21,4b-9

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Filipenses, 2, 6-11

Evangelho: S. João,3,13-17

 

O povo de Israel andava tão farto de sofrer a caminho da «terra prometida», que já só desejava nunca ter saído do Egipto. (Quem não sentiu este tipo de cansaço e revolta ao longo da vida?) Ainda por cima, foi alvo das serpentes venenosas do deserto. Diz a Bíblia que isto foi castigo de Deus – um modo de ver as coisas próprio de um fraco nível religioso e que Jesus considerou  claramente errado (por ocasião de várias curas e até no evangelho de hoje). Foi então que Moisés, inspirado por Deus, levantou um poste com uma serpente de bronze – e quem soubesse olhar para ela ficava curado.

Continuamos no nível mágico ou supersticioso do comportamento religioso. Ao fazer-se o paralelo com a cruz donde pendia Jesus, corre-se também este perigo. Mas o próprio evangelho de João nos avisa: é salvo quem acredita em Jesus – e não quem levanta os olhos para ver um objecto interessante. Ao longo dos tempos, a cruz até se tornou um objecto de arte – mas nem toda a gente tem a arte de saber olhar para ela.

Em si, a cruz não passa de um infame instrumento de tortura até à morte, o mais vergonhoso e doloroso castigo para toda a espécie de delinquentes. A isto foram sensíveis as primeiras gerações cristãs, de tal modo que só na Idade Média é que se tornou comum representar Jesus numa cruz. Era e é de facto difícil ver nela um sinal de salvação.

A cruz foi imposta a Jesus como castigo «adequado» para a sua visão e comportamento demasiado inovadores e censuradores da estreiteza religiosa e moral (os visados facilmente politizaram a questão, para que fosse possível a condenação à morte). Mas muito cedo (como se lê em S. Paulo), «cruz» e «ressurreição» constituíram as duas faces da mesma moeda: até com a morte mais degradante, Jesus não foi aniquilado mas entrou no mistério de Deus. O Messias crucificado suscita, aliás, perturbadores «porquês», tornando-se sinal da «inversão dos valores», necessária para que a justiça seja feita «na terra como no céu», isto é, com o ideal de perfeição e justiça de que somos capazes, se não nos ficarmos pelos «prazeres imperfeitos» – de vistas curtas, mesquinhas e interesseiras.

Não é por se ser muito rico, poderoso ou saudável, que deixamos no mundo uma acção salutar. Como também não é por se ter uma vida humilde e sofredora. Jesus alertou para a tentação de egoísmo e até maldade, que pode atacar mais fortemente quem possui muitos «bens». Mas a pessoa mais humilde ou de qualquer idade e estatuto também tem outros «bens». Uns e outros só colaboram na salvação do mundo se tiverem «a arte de saber olhar» para o que é de facto o «bem comum», trabalhando em plano de igual dignidade.

Em todos os que sofrem podemos ver o «sinal da cruz». Com a arte de para eles saber olhar, o sofrimento acalma e somos incitados a procurar soluções cada vez mais eficazes.

A «exaltação da cruz» é uma festa muito antiga: restos da «vera cruz» («verdadeira cruz») terão sido encontrados no ano 326, pela mãe do imperador Constantino I (santa Helena). Roubada por invasores persas em 614, foi recuperada definitivamente em 628, e os seus fragmentos (relíquias) dispersaram-se pela cristandade.

Mas já no séc. VIII, o 2º Concílio de Niceia advertia que a adoração só é devida a Deus. Uma cruz sem Cristo evoca tortura e não a vitória progressiva sobre o sofrimento nem a descoberta final do mistério de Deus – que é o mistério da vida. Em si, o sofrimento não é bom, nem os seres humanos podem ter sido feitos para o sofrimento (neste ou noutro mundo). O miserabilismo da vida não é cristão. Sem «ressurreição», ou vitória sobre o mal, a cruz não podia ter o valor que lhe damos.

14-09-2014


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