Liturgia Pagã

 

«A cruz e a espada»

Festa de S. Pedro e S. Paulo   (ano A)

1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 12,1-11

2ª leitura: 2ª carta de S. Paulo a Timóteo, 4,6-8.17-18

Evangelho: S. Mateus, 16,13-19

 

Dois símbolos que facilmente podem ser representados sob a mesma forma. Não admira a funesta «confusão» que entre eles se tem feito. Embora em total desacordo com a mensagem de Jesus Cristo, não faltaram pensadores e teólogos da cristandade, alguns deles célebres «santos», como o «doutor da Igreja» Bernardo de Claraval (s.XII) e o papa Gregório VII (s.XI), que preconizaram o uso da força para levar todos os homens a tornarem-se cristãos ou submissos ao poder pontifício.

É grande a tentação de justificar o instinto agressivo e dominador como o meio mais eficaz de obrigar os outros a seguir uma certa religião, ou uma mera ideologia. Além disso, concluía-se facilmente que quem não queria viver na «verdade» merecia a morte. «Matar os infiéis» surgiu assim como acto corajoso dos «soldados de Deus».

Na história do cristianismo, ficaram célebres os «cruzados», muitos deles convencidos de que davam a vida por um ideal perfeito. Resultado do que hoje diríamos uma catequese gravemente deficiente. E também aqueles padres da Igreja que não hesitaram em fazer o jogo dos «poderosos do mundo», colaborando zelosamente na Inquisição – tão bem disfarçada de purificação da fé, mas escondendo a mais estreita e desumana visão do que significa ser cristão.

Em compensação, ao longo dos séculos, a cruz tem sido hasteada como sinal de libertação e de melhoria de condições de vida. Ficou célebre o caso das «reduções» da América do Sul (lembre-se o filme «A Missão»), em que a cruz não recuou perante as investidas das espadas servidoras dos interesses egoístas de «reis cristãos». E nunca faltou, até hoje, quem se mostrasse e permanecesse fiel à cruz e não à espada, não esmorecendo perante ameaças de morte (sem esquecer o paradigmático Tomás More, no s.XVI, lembremos, no s. XX, Robert Schuman, para a EU, e Dag Hammarskjöld, para a ONU).

Os antigos hinos da liturgia cristã descobriram na cruz o símbolo da Árvore da Vida – aquela que nos permite gozar de tudo quanto existe, expulsando o sofrimento e dominando a morte. Porém, como espada, tanto defende a plenitude de Vida como fere a consciência e condena os abusos de poder sobre os mais fracos, bem como as lutas imperialistas que desgraçam a humanidade.

S. Paulo soube ser esta «espada de Deus» – e até veio a morrer à espada. A sua mensagem, centrada no significado de Jesus morto e ressuscitado, era facilmente vista como ideia de loucos, desagradável e fora da lógica humana.

O melhor argumento de Jesus foi não hesitar perante a ameaça de morte. Assim procederam S. Paulo e S. Pedro. E tem sido e continua a ser o argumento de todos os que dedicam a vida à causa da Justiça: quer na frente dos conflitos sociais, políticos, religiosos culturais…; quer na persistência esgotante da investigação científica; quer no incompreendido trabalho de professor (que é preparar para todas as profissões, sem ceder ao facilitismo e ao baixo nível); quer na lide caseira, que não dá nas vistas; quer ainda, como «agentes da ordem», cada vez mais sujeitos a ameaças, insultos e incompreensão do público em geral (condenados «por ser cão ou por não ser»…).

A «espada de Deus» penetrou tão profundamente no espírito de Pedro (evangelho), que lhe deu o discernimento de reconhecer em Jesus o Messias, o Cristo do Deus vivo. Reza a lenda que pediu aos carrascos que levantassem a cruz de cabeça para baixo, pois não merecia morrer perante os homens no alto duma cruz, como sucedera com o seu mestre. Nessa posição, a cruz lembra bem uma espada em riste, empunhada pelo próprio mundo. Ao serviço da destruição? Ou para ser fonte de Vida?

29-06-2014


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