Liturgia Pagã

 

Raízes, ramos e flores

Domingo de Ramos (ano A)

Procissão dos ramos: Mateus, 21, 1-11

1ª leitura: Profeta Isaías, 50, 4-7

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Filipenses, 2, 6-11

Evangelho: S. Mateus, 26, 14- 27,66

  

Era uma festa de cruzes engalanadas, a velha procissão de ramos na aldeia, ainda em meados do séc. XX. As crianças, conscientes do seu papel histórico na aclamação de Jesus, erguiam-nas orgulhosamente, cada qual na mira de levar a maior e a mais vistosa.

As orações e leituras eram em latim, mas sabíamos que falavam de gestos de aclamação e de vitória, de acordo com o milenário poder simbólico das árvores e plantas. No tempo de Jesus, as folhas de palmeira aclamavam imperadores e prometiam eternidade. A oliveira falava de paz e prometia o óleo com que se cobria o corpo para a luta.

(A liturgia actual terá cedido demais ao «minimalismo moderno», esquecendo a riqueza simbólica de tanta coisa à nossa volta, onde se espelham desejos e medos, alegria e tristeza, avivando a memória do que fomos no passado e que ainda molda o presente. Descuidar as pequenas coisas pode afectar o essencial).

As árvores sempre formaram um verdadeiro «paraíso terrestre» (ou um «bosque sagrado»). Poderoso símbolo do universo, com raízes que penetram as profundezas, o tronco que enfrenta as intempéries e baliza a paisagem e os ramos que se perdem no espaço superior, lançados ao futuro (o português será a única língua latina que mantém o género feminino para «árvore», atestando a sua exuberância reprodutora). Nos evangelhos, aparece a árvore de bons frutos e a de maus frutos (Mateus, 7, 17-20); Jesus compara-se a um caule robusto fonte de vida (João, 15, 1-8), e o reino de Deus assemelha-se a uma árvore frondosa (Lucas 13, 18-19). S. Paulo já aponta para o sentido da cruz como nova árvore da vida, um tema desenvolvido nos primeiros séculos do cristianismo e que se encontra na liturgia da Semana Santa.

«Lancei raízes no meio do meu povo. Elevei-me como o cedro do Líbano. Cresci como as palmeiras, como as roseiras de Jericó e as oliveiras da planície. Espalhei um perfume suave e, como a videira, fiz germinar graciosos sarmentos».

Neste resumo do poema do Livro de Ben Sira (24, 12-17), a Sabedoria é uma árvore solidamente radicada na terra. Como ela florescem os justos (salmo 92, 13-15; Jeremias, 17, 7-8), que na velhice podem dar os frutos mais maduros.

Nos relatos da paixão, é impressionante a azáfama dos poderosos para derrubar Jesus, como lenhadores ansiosos por destruir uma árvore gigantesca. Mas as raízes desta eram tão arraigadas que provocaram uma explosão de vida por toda a terra, com as formas mais variadas. (Também é verdade que à sua sombra nasceram ervas e até árvores daninhas, como lembra Mateus, 13, 24-30).

A morte de Jesus foi o fruto de uma vida sem fingimento e convida-nos a explorar todo o sabor da existência. Não foi cobarde perante o sofrimento próprio e alheio; e fez da «última ceia» uma perene «única ceia», onde se partilha o prazer, os ideais, as tristezas e alegrias, como entre comensais que se preparam para a acção. Foi aclamado e crucificado pelos Homens. Aclamado e ressuscitado por Deus. É este Jesus que aclamamos.

Diz-se que toda a vida é uma procissão de cruzes. Mas que não deixem de ser floridas… E que lembrem as árvores – enraizadas na boa terra, acolhedoras para quem as procura, generosas com suas flores e frutos e alegres por verem como estes se podem espalhar por toda a parte e pelos tempos fora. Pois até as árvores que parecem morrer disseminam a vida que não morre.

13-04-2014


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