Liturgia Pagã

 

Que pensaria o Homem que lia a Escritura?

3º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Neemias, 8, 2-10

2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 12, 12-30

Evangelho: S. Lucas, 1, 1-4; 4, 14-21

 

Fechou o Livro e, fixando os ouvintes, disse em voz clara e calma: «cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Todos fixavam os olhos nele – mas o resto da história só será contado no domingo seguinte.

Este Homem guardava atrás de si uma longa tradição: Esdras e Neemias (meados do s. VI a.C.) também eram homens que sabiam ler as escrituras (competia aos levitas o estudo da Palavra da Deus). A 1ª leitura, aliás, marca o começo histórico do Judaísmo: até então, algumas das doze tribos de Israel misturavam-se com os povos vizinhos, o que repugnava aos mais ortodoxos, por ser contra as disposições recebidas por Moisés – daí o desprezo dos Judeus pelos Samaritanos; o exílio despertara os mais ricos traços de espiritualidade, sobretudo através dos profetas; mas o regresso à «terra prometida» foi quase só de membros da tribo de Judá: nasceu assim o movimento judaico. Porém, nunca mais os Judeus foram independentes como nação, excepto alguns anos durante a campanha dos Macabeus (séc. II a. C.). Ficaram apenas como uma comunidade religiosa com regalias especiais e separada dos outros povos.

  Os «retornados» choravam ao escutar a leitura clara e bem explicada pelos Levitas (1ª leitura). Choravam como sinal de penitência, segundo um costume religioso que ainda hoje se reflecte na liturgia da Quaresma. Também chorariam de saudade. Foi então que o Homem que nesse tempo lia a Escritura (Esdras) lembrou bem alto que não era um dia de tristeza, mas da alegria que vem da força do Senhor.

No Evangelho de hoje, o Homem que lia a Escritura (Jesus) encontrou a passagem de Isaías própria da entronização de um profeta: é o Espírito do Senhor que o leva a anunciar a Boa Nova aos pobres e a libertar os oprimidos e a proclamar o tempo da Justiça. (S. Lucas é muito livre na organização do seu material: até a citação de Isaías é uma combinação de temas dos capítulos 58 e 61).

Na linha dos antigos profetas, este evangelista é muito terra-a-terra ao referir a organização injusta da sociedade: há gente sem meios de subsistência, há vítimas de extorsões abusivas e da má-fé de jogadas tanto políticas como económicas. Todos nós nos devemos preocupar pela justiça, criando, quanto possível, uma nova ordem (o jubileu era um ano propício para o perdão de dívidas e a libertação de escravos, como que restaurando as potencialidades da criação e de modo a que todos possam mostrar quanto valem).

Como lembra a 2ª leitura, os que se sentem ou são postos à margem da sociedade são doravante chamados a formar parte do novo povo de  Deus, em pé de igualdade com judeus e gregos, doutores e servos, cada qual exercendo os dons próprios, para o bom funcionamento do bem comum.

Porém, é ao nível da própria Igreja católica, que se encontram muitos empecilhos à formação de «um só corpo» onde cada qual exerça a sua função de modo livre e responsável. Demasiadas vezes parece que «os únicos receptáculos dignos para o Espírito de Deus», os convidados para falar em público e a emitir a sua opinião e testemunho, são apenas as pessoas bem posicionadas na vida, sobretudo com «úteis» ligações ao mundo da economia, da política, dos media…

Mesmo os «ministros de Deus» facilmente se tornam prisioneiros de lugares de destaque e sujeitos assim a uma estreita «deformação profissional». Nunca será demais a cultura geral, a urbanidade e competência em relações humanas. Sem estas qualidades, o mais sincero espírito de Deus pode ficar como «a luz debaixo do alqueire».

Especialistas e figuras mediáticas… todos eles são necessários, mas só se juntando a energia própria com a energia dos que sobretudo vivem os problemas do dia-a-dia. Não serão estes e muitos outros indispensáveis para que o «corpo de Cristo» tenha pés robustos para andar e uma cabeça com todos os neurónios para pensar? A riqueza do cristianismo está na sua infindável variedade, e cada um de nós, qualquer que seja a sua função, é chamado a testemunhar «a luz de Cristo».

Afinal, o que é que pensaria e quereria o Homem que lia a Escritura?

27-01-2013


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