14º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Profecia de Ezequiel, II, 2-5
2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, XII, 7-10
Evangelho: S. Marcos, VI, 1-6
Será que até S. Paulo atira para cima do Diabo as culpas pelo mal
que lhe acontece? Porém, já a dramática e lendária figura de Job,
herói cantado há mais de mil anos antes de Cristo, recebeu como
vindas de Deus as desgraças que caíram sobre ele e sobre as pessoas
mais queridas (a redacção actual dos poemas que formam o Livro de
Job é provavelmente de cerca de 500 anos antes de Cristo). Neste
livro maravilhoso, Job invectiva a Deus directamente, pedindo-lhe um
sentido para o sofrimento que se abate sobre os homens,
independentemente da sua bondade ou do esforço por serem bons. Mas
Job não fechou os ouvidos a Deus: e entendeu que é próprio de Deus
não poder ser entendido pela nossa inteligência.
Apresentemos a Deus os nossos problemas, mas sem esquecer que «Deus
só ajuda a quem se ajuda»: é ele que sustenta a nossa coragem. Se
Deus nos desse as respostas pretendidas, será que teríamos avançado
no campo das artes e das ciências, da filosofia ou da teologia, da
medicina ou da acção social e das próprias relações humanas? As
nossas grandes inspirações, intuições e descobertas, o trabalho
aturado (tantas vezes escondido)… devem muito ao estímulo do
aguilhão da dor, da tristeza, da desilusão, e sobretudo de uma
insaciável «fome e sede de justiça».
Muito discutem os teólogos sobre o que faria sofrer S. Paulo – desde
a mais vulgar doença empecilhante até a tentações de orgulho ou de
desenfreados apetites sexuais. Afinal, nada que escape a um bom
cristão. Seria pelo menos um estado de doença suficientemente
desgastante para perturbar os arrojados planos de contactar todas as
comunidades cristãs do século I. S. Paulo sente-se profundamente
afectado na capacidade de acção. Mas vê, nessa experiência de dor,
que nós não somos amados por Deus só quando irradiamos saúde ou
quando somos socialmente notáveis. S. Paulo confessa que teve uma
íntima experiência de Deus – mas que não é daí que lhe vem o valor.
Quando a gente se encontra na mó de baixo, é então que pode ver mais
claramente que Deus não nos ama por sermos «bonitos» – mas porque
nos quis fazer «filhos de Deus», para que estabeleçamos na terra o
tal reino de paz e de justiça.
Ainda nos dias de hoje, a vida espiritual cristã é vista como um
combate entre a «Bandeira de Jesus Cristo» e a «Bandeira de
Satanás». Grandes teólogos e pensadores explicaram a ignomínia do
genocídio nazista como resultante do entusiasmo de multidões
alimentadas por alguns corifeus, que escolheram as cores ou as
ideias atraentes da Bandeira enganadora.
Esta personificação do Mal e do Bem não encaixa num sólido esquema
filosófico-teológico, mas não deixa de corresponder à nossa
experiência de «luta pela vida». Não somos meros espectadores do que
se passa à nossa volta (e hoje em dia «a nossa volta» é quase o
universo inteiro): temos que tomar partido, sabendo que não se pode
jogar nos dois campos.
Haverá projectos humanos que possam alinhar (e ganhar) com a
Bandeira de Jesus Cristo? Partidos políticos? Cursos superiores?
Planeamentos educacionais, urbanísticos, ecológicos, de
transportes?... Que será preciso tirar ou acrescentar a estes
projectos? A Bandeira de Cristo só pode ser a do Bem para todos os
homens: um bem-estar fortemente estruturado por aquela sabedoria que
até suporta «bofetadas», porque possui a melhor estratégia de
vitória.
Há bofetadas que de bom grado atribuímos a Satanás – como as vindas
de alguém que vive a nosso lado (também Jesus se queixou disso), sem
justificação. Porém, quantas vezes não se tratará de comedidas e
justas bofetadas dadas por «santos de casa»? É difícil deixar que
«os santos de casa façam milagres»…
Todos nós, como Job e S. Paulo, somos escolhidos para ajudar os
outros a descobrir o sentido da vida. Desperdiçamos muitas palavras
sábias – porque não vêm de alguém com uma posição social
“aceitável”, do “nosso nível”, e sobretudo porque nos põem em
cheque! Ou aceitamos porque vêm de figuras altamente mediáticas –
mesmo que não sejam dotadas da capacidade de ver e sentir o
horizonte da vida real.
Será que já não podemos acreditar que o coração dos homens é atraído
pelo que é bom?
O discurso vazio ou ineficaz de muitas «altas personalidades»
leva-nos a passar ao lado de muitos «profetas», que passam pela
nossa casa e pela nossa rua. Esquecemos que Deus se revela
particularmente nos humildes e naqueles que sofrem (e que nós até
podemos julgar como castigados por Deus… ou por Satanás!). Porém,
mais tarde ou mais cedo, tropeçamos neles. Para cairmos de vez? Ou
para neles descobrirmos a pedra de toque da sociedade justa?
Reconheceremos então, como lembra Ezequiel, que há sempre profetas
entre nós.
08-07-2012 |