Liturgia Pagã

 

Ao Poeta Desconhecido

7º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro de Isaías, 43, 18-25

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 18-22

Evangelho: S. Marcos, 2, 1-12

 

A sua fama corre apenas nos poemas de outros criadores, desde os tempos antigos e em todos os povos. É considerado o poeta das grandes contradições, que inspirou místicos e filósofos, lançando sempre perguntas inquietas sobre o bem e o mal, a luz e as trevas, a morte e a vida. Um poeta condenado a deixar apenas reflexos embaciados de si mesmo.

Não falta quem diga que o ouviu sussurrar. Talvez! Mas um sussurro sem palavras perceptíveis, como um vento cabeleireiro das ondas ou maestro do rumor das folhagens. Um vento a que ora apetece dar a cara ora de repente nos obriga a fugir de pavor. Há quem o acuse de ser caprichoso. Não falta quem lhe dedique poemas quer de louvor quer de troça e vitupério. E todos terão razão, porque é o poeta das grandes contradições e não é possível abarcar a sua obra.

Já lá vão mais de 2500 anos. Um profeta também sem nome maravilhou-se com estes paradoxos e surgiu o livro do «segundo Isaías» – porque a sua inspiração lembrava a do profeta Isaías duzentos anos mais velho.

(Ao «segundo Isaías» se atribuem os capítulos 40-55 do Livro de Isaías; aceita-se ainda um «terceiro Isaías», ligeiramente posterior, autor dos capítulos 56-66, os últimos do Livro).

A 1ª leitura deste domingo não transmite a força do seu contexto (43, 16-44, 15), inspirador da espiritualidade do próprio Jesus Cristo e da cultura cristã. Poderia ser assim resumido:

«Assim fala o Senhor: Deixai de olhar para os tempos em que vos libertei de tantos inimigos – porque novas maravilhas vos esperam. Não as sentis a despontar? Vou encher o deserto de rios e caminhos – e tudo isto por causa do meu povo escolhido. Só dele é que receberei um verdadeiro louvor. Mas não julgues, ó meu povo, que consegues comprar o meu favor com o esplendor das tuas cerimónias ou com a riqueza das tuas ofertas. Querias fazer de mim o teu servo? A verdade é que eu me sinto como escravo, mas é perante os teus comportamentos perversos. Porém, não há ninguém como eu para esquecer e até apagar a memória da maldade. Não tenhas medo: o meu Espírito te acompanhará e à tua descendência, e com ele poderás fazer surgir uma nova terra, em que a justiça vença como rios que transformam o deserto».

Na religião judaica, pelo menos até ao tempo de Jesus, a ideia de «salvação» aplica-se à libertação de qualquer situação adversa, seja a doença e ameaça de morte, seja a guerra, a injustiça e outras situações de perigo. Implica a esperança numa intervenção divina que restaure a paz e a grandeza do «povo escolhido».

Contudo, não basta aclamar um salvador. Todos temos que enriquecer os projectos de salvação com as ideias e capacidades de cada qual.

Para tanto é preciso ter fé no projecto de salvação – um «leit motiv» do «Poeta desconhecido». Aliás, os relatos de milagres, como o de hoje, são manifestamente «construídos» para mostrar como a fé é essencial, ao mesmo tempo que sublinham a crença no carácter divino de Jesus e salientam como o «reino de Deus» se vai construindo com firmeza. A forma definitiva do «reino de Deus» é o fim do reino do mal. É o domínio da Paz. E Jesus combateu o mal, sabendo a importância dos pequenos gestos libertadores.

Está em causa a saúde integral – que também implica saber gerir o sofrimento e utilizá-lo para um estado de equilíbrio e de riqueza humana superiores. Mas o Homem não foi feito para o sofrimento. Jesus não dizia aos enfermos que tivessem paciência e esperassem pela «ressurreição»… Nem deixou partir o paralítico, depois de tanto trabalho e engenho para se aproximar e ser curado, só com a absolvição dos pecados…

A preocupação de Jesus pela saúde de cada indivíduo e de toda a sociedade, mesmo numa vida sujeita à morte, permite mais claramente afirmar que caminhamos para uma nova vida, onde a justiça ou perfeito equilíbrio, quer de cada pessoa, quer da sociedade no seu conjunto, formam o mundo das «coisas novas que já começam a aparecer, como rios a brotar do deserto» (1ª leitura).

Não consta que Jesus fizesse poemas. Mas apresentou-se como íntimo do «Poeta Desconhecido». Também entusiasmou filósofos, místicos, poetas e «gente simples». Porém, nem os próprios evangelistas se preocuparam com deixar dele um retrato convencional:  foram sobretudo sensíveis ao «poema escondido» na vida de Jesus.

19-02-2012


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