5º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro de Job, 7, 1-7
2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 9, 16-23
Evangelho: S. Marcos, 1, 29-39
Há quem defina a espécie humana como um conjunto de «animais
doentes». De acordo com as regras de classificação, não seria
preferível dizer «animais curáveis»?
«Doente» é um adjectivo indicador de sujeição a um estado. «Curável»
aponta para a capacidade de cura. Ora que tem feito o ser humano ao
longo da sua história, senão desenvolver técnicas «milagrosas», não
só para combater a doença como para aumentar o nível e a variedade
de qualidade de vida (embora com uma justiça ainda pouco liberta de
«doenças crónicas»)?
«Técnica» e «arte» (cujo significado fundamental se sobrepõe) são
dois termos extremamente analógicos, ricos de conotações e de
derivações, remontando à mais alta estirpe etimológica: a raiz
indo-europeia teks significa «fabricar, tecer» enquanto que
ar remete para harmonia, originalidade, ritmo e rito… com o
sentido geral de adaptação e actividade (donde «inerte», por
oposição). Ambas se referem ao «saber fazer» exclusivo da espécie
humana, que a distancia positivamente do que se concebe geralmente
por «natureza».
Tendencialmente, porém, «técnica» aplica-se aos meios e processos
«objectivos» do fazer, enquanto «arte» se estende para a capacidade
«subjectiva» de fazer e criar.
A
técnica rege-se mais pela «ordem» (do mesmo radical de arte – ar)
enquanto a arte gera o mundo fantástico da originalidade (e
des-ordem e sinfonias dissonantes...).
Mas são duas faces da insatisfação humana, da provocação à vida, do
equilíbrio instável da longa cadeia de vida humana. Insatisfação que
leva à «fúria de viver» protagonizada pelo mítico James Dean num
filme cujo título original, mais à letra, poderia ser «rebeldia
pura» (data de 1955 e ficou entre os cem melhores de Hollywood, com
um tema de todos os tempos – «Fúria de viver» é título de várias
telenovelas europeias).
A
arte, porque tem paixão, porque tem alma, porque facilmente entra em
atritos com instituídas «regras do bem fazer» (a tal «lei sem
espírito»), é facilmente acusada de desordem. Mas, em harmonia com a
técnica, aproveita ao máximo a fonte inesgotável de energia
renovável que é a afectividade: é esta energia que dá beleza ao
mundo e sabor ao agir humano; é a energia que pode resistir e até
transformar as epidemias de cegueira e injustiça desencadeadas por
gente que tem poder.
E
para que a técnica não seja cega e não caia no abismo, a arte
descobre horizontes novos donde possa contemplar toda a longa
história dos horizontes humanos. Para que o tratamento não degenere
em infecções mais graves.
Do lendário Job (1ª leitura) conhecemos a grande riqueza
transformada em desgraça total. Porque o Tentador do equilíbrio
humano o queria pôr à prova: seria capaz de se manter na corda
bamba? Mas nem era preciso transformá-lo num monte de chagas e de
miséria: bastaria enlouquecê-lo, como testemunha o texto de hoje,
com a angústia da solidão.
Solidão exacerbada pela presença de pretensos amigos, que mais
pareciam sugar a pouca energia que lhe restava. Nem doutra maneira
parecia agir o próprio Deus – o grande quebra-cabeças para quem nele
quer pensar.
Job, porém, não quis perder a voz. Gritou, desde há milénios atrás,
a revolta contra Deus e contra a falsidade humana; proclamou o
desequilíbrio e a injustiça da vida e como todas as coisas do nosso
universo são falhas de consistência.
Era o «evangelho» nascido da dor, a «boa nova» de que o Homem não é
joguete de um Deus que premeia ou castiga – mas que cada um de nós
pode escolher ir de braço dado com Deus, mesmo que este pareça
«coxo, cego e surdo».
Estranho «quebra-cabeças» que nos incita a «evangelizar» (2ª
leitura):
♦
Não porque eu me sinta bem – mas porque «é bom» fazê-lo;
♦
Não porque digam bem de mim – mas porque quero o bem dos outros;
♦
Não porque tenha lucros – mas porque acredito na bondade dos outros;
♦
Não porque tenha força – mas porque acredito que a força não me
falta;
♦
Não porque saiba claramente o que devo fazer – mas porque me preparo
para fazer o que
fundamentadamente julgo ser melhor.
Que é tudo isto senão um número prodigioso de equilibrista?
Para não cair, tenho que sentir dentro de mim o centro de gravidade
– com este centro é que me posso lançar na «fúria de viver» que me
mantém longe da «inércia».
Tenho que sentir dentro de mim a fonte da saúde.
Não foi o que fez Jesus (evangelho) depois de curar a sogra de
Pedro? Retirou-se para um local onde calmamente pudesse caminhar de
braço dado com Deus – com essa fonte de que só ouvimos o murmúrio da
distância, mas que dá saúde: porque convida a descobrir em todas as
coisas – na seiva, na flor, no fruto, na folha que cai, no sol que
dá cor e na tempestade que ameaça e fortalece – a paixão pela vida e
a arte de viver.
05-02-2012 |