Liturgia Pagã

 

Diz-me com quem andas

2º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro de Samuel, 3, 3-10.19

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 6, 13-20

Evangelho: S. João, 1, 35-42

 

O autor do que se poderia chamar «Diário de João discípulo de João o baptista» (mais conhecido por «Evangelho de S. João» ou «4º evangelho») sublinha bem o fascínio que o desconhecido Jesus exerceu sobre os primeiros discípulos. E de boca em boca se fez a melhor publicidade. Ao longo dos tempos, surgiram histórias contraditórias, umas achincalhantes, outras fogosamente apologéticas… e muitos escritos repercutiram estas tendências, mesmo no mais alto nível de especulações filosóficas e teológicas, ajustando-se com maior ou menor honestidade às investigações históricas. O fascínio da figura central, porém, não decresceu, e as dúvidas, interrogações, desilusões, pressões políticas e religiosas (pró e contra), o «carneirismo» ou os bandeirantes de paisagens novas, parecem atiçar a questão de Jesus, juntando toda essa gente numa grande marcha: milhões de pessoas, mais ou menos sensíveis ao testemunho de João Baptista e mais ou menos curiosos pelo convite de Jesus: «vinde e vereis» – o verbo no futuro simboliza a fé que se vai desenvolvendo, à medida que a gente se aventura.

A expressão «cordeiro de Deus» só é usada, em todo o Novo testamento, neste capítulo do 4º evangelho. A ter sido proferida, seria provável que suscitasse nos ouvintes o paralelo com o «cordeiro pascal» (Êxodo,12,1-28), símbolo da redenção de Israel, oferecido a Deus no dia da grande marcha de todo o povo para a libertação; ou com o «servo de Iavé», carregando os pecados de todo o povo (Isaías,52,13-53,12) e aceitando a morte como um cordeiro. Esta passagem de Isaías ficou presente no cristianismo como símbolo da paixão de Cristo. A sua ressonância encontra-se bem nas cartas de S. Paulo (p. ex. Romanos,3,24-26): com a morte e vida de Jesus Cristo, a humanidade deixa de estar submetida ao mal, «passando» (significado de «Páscoa») ao estado de «libertação» – Deus não nos criou para a morte (Sabedoria,1,13-15), mas para a perfeita unidade de corpo e espírito num mundo sempre novo. O pano de fundo destas vivências é a percepção de Deus como amigo do ser humano, defensor da liberdade e da vida, desejoso de «criar um coração novo» (Ezequiel,11,19) em todos os que «dão tempo a Deus» (como o jovem Samuel, na 1ª leitura).

(O Livro do Apocalipse é que utiliza 28 vezes a imagem de «cordeiro»,  mas em vez do termo grego mais comum «amnos», utiliza «arnion», que mais propriamente designa um carneiro de hastes poderosas e vencedoras – símbolo da luta perseverante e triunfante contra o mal).

A 2ª leitura reflecte a preocupação de S. Paulo por que as novas comunidades cristãs fossem exemplo de uma moral irrepreensível. Logo desde o princípio que a expansão do cristianismo defrontou o problema da aculturação: é preciso muito discernimento e abertura de espírito (isto é: é preciso um espírito genuinamente cristão!) para respeitar e até tirar partido dos costumes locais e simultaneamente clarificar o núcleo da «boa nova».

Acontece que a cidade de Corinto, como outros portos do Mediterrâneo, era bem conhecida pela libertinagem e tráfego sexual. Utilizando os seus conhecimentos e estratégico poder lógico, S. Paulo põe em cheque um dos lemas dos coríntios: «Tudo me é permitido». Sublinha que de facto o cristão é eminentemente livre, mas que deve usar essa liberdade para o bem da comunidade. A unidade perfeita de corpo e espírito é fruto de uma sexualidade orientada para o prazer da comunicação e de bem fazer a todos os seres humanos – o contrário é egoísmo e falta de maturidade. Por isso, o acto sexual sem autêntica comunicação é um acto falhado. Compete-nos criar a mais profunda união possível com quem desejamos que seja «a nossa metade» (Génesis,2,18.24).

Note-se, porém, que para S. Paulo (pelo menos nas primeiras cartas, como a de hoje) e para muitos dos primeiros cristãos, o «fim do mundo» estava iminente. Ora se os sacerdotes do Antigo Testamento (como noutras religiões), só podiam entrar oficialmente no local mais sagrado do templo, para se aproximarem do Deus Vivo, depois de se terem purificado, por meio de minuciosos rituais, de tudo aquilo que podia ser considerado indigno da perfeição divina, muito mais os primeiros cristãos sentiam a necessidade de profunda purificação para se poderem aproximar definitivamente de Deus – da Vida sem sombra de impureza (= sem sombra de falha). Esta atitude facilmente leva a desvalorizar as actividades deste mundo.

Entre as coisas tradicionalmente consideradas indignas da perfeição divina, estavam sobretudo as actividades relacionadas com o sangue, nascimento, morte e sexo. Particularmente a actividade sexual, pela íntima relação com a vida, com o amor e o prazer profundo – podia desencadear forças poderosas e perigosas para o equilíbrio do ser humano consigo próprio, com os outros e com Deus (este «equilíbrio» sabe-se que é bom, e já pertencia ao núcleo do pensamento religioso e filosófico da Grécia clássica).

Para o Antigo Testamento, os rituais traduziam um profundo acto de reverência para com Deus. Mas tendem a ser cumpridos superficialmente, sem comprometer o fundo de nós próprios. Por isso, os Profetas e notoriamente Jesus Cristo alertaram fortemente que o que mais importa é «o que nos vai no coração» (Mateus,15,1-20).

«Vinde», já passastes por um ritual, e a partir de agora «vereis» que a «aventura com Deus» não é uma prisão em que Deus é o carcereiro.

Valha-nos Jesus Cristo… – «esse tal» que tem sido e nos pode ser apontado como alguém que vale a pena pôr no rol dos amigos!

15-01-2012


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