Era uma das sábias sentenças do meu avô paterno. Na
Velha Alta de Coimbra, há duas placas que o lembram: «Anthero da
Veiga – republicano, diplomata, guitarrista – 1866 – 1960». Na minha
opinião, o seu grande valor era a Arte na Vida.
Por ser republicano, saboreou a prisão dos últimos
anos da monarquia; no posto equivalente a Presidente de Câmara, na
1ª República, saboreou novas prisões, por defender a realização dos
festejos religiosos populares; e não deixou de provar as prisões do
Estado Novo, acusado de «se dar» com gente da Maçonaria. Porém
(talvez por ser artista…), passava pelas prisões como «degustador»,
«mudando de ares» ao fim de alguns dias ou poucas semanas. Várias
figuras mais ou menos importantes, mas sobretudo os organizadores de
festas populares (que tanto o inspiraram), todos gostavam de o
convidar como reconhecido artista da guitarra portuguesa, compositor
de letra e música. Como lhe dizia D. Carlos (que também o convidou),
«a Arte não é escrava da política». Assim deveria ser, para bem de
ambas as partes.
Ares de férias ou mudanças lembram que é preciso
arejar ideias e relações, como se muda e areja a terra de cultivo.
Sentir outras conversas, outros valores, outras maneiras de amar e
até de nos relacionarmos com Deus. Nem que pareça «para pior»:
compete-nos tirar proveito da experiência, para que a «espiral da
vida», de que já se falou, mantenha a tendência geral para a feliz
realização de todas as pessoas.
Demasiadas vezes ficamos agarrados ao nosso «castelo»
seguro, onde nada se põe em questão. Envelhecemos sem ter crescido
por dentro e temos medo de abrir a porta. Resultado: a nossa vida
religiosa cheira cada vez mais a mofo e nem arejamos a amizade com
Deus. Não aguentamos dúvidas e perguntas: julgamos que nos basta
ficar agarradinhos ao que parece ser o carrinho para o céu. E
afirma-se a pés juntos que Deus só pode ser encontrado nos
corredores e jardins desse castelo sem janelas. Mudar de ares? Lá
fora espreita o perigo!
No entanto, a própria fé exige terra bem arejada,
para não morrer estiolada. E ser cuidada pelo próprio e não por
empregados ou mesmo por amigos que fazem quase tudo por nós e
aconselham ou dão ordens de como devemos agir. Como dizia um
filósofo inglês: «Os seres humanos são absurdamente fáceis de
doutrinar – até o desejam! Preferem mais acreditar do que conhecer»
(Edward O. Wilson).Não empregamos a força da razão de que dispomos:
preferimos descansar submissamente na força ou autoridade alheia.
«Doutrinamento» traduz o inglês “indoctrination” e o
francês “endoctrinement”. O verbo doutrinar, de que
deriva, tem o sentido comum de «instruir numa doutrina, ensinar,
instruir, catequizar». Por sua vez, doutrina é vulgarmente
definida como «conjunto de princípios em que se baseia uma religião
ou um sistema político ou um sistema filosófico»; e ainda «erudição,
norma, disciplina, instrução, modo de pensar, catequese religiosa».
Porém, quem «doutrina» cai facilmente na tentação de
tornar os outros totalmente submissos ao que lhes é impingido, em
vez de os ajudar a procurar a verdade.
É o doutrinamento «no mau sentido»: imposição das
ideias (de um educador, de um gestor, de um político, de uma
comissão internacional...) «a todo o custo», eliminando as razões
contrárias e tornando o diálogo impossível. Como se disse no artigo
anterior, nenhum mestre, neste mundo, se pode arrogar de ser dono da
verdade: pelo contrário, a sua acção é mais eficaz se ele próprio se
apresenta como alguém que a procura. E que para isso se informa
quanto pode e ouve com atenção quem quer que seja, para melhor
meditar e reflectir.
Muitas vezes, aceitamos como verdade aquilo que nos
dizem, só porque foi apresentado de modo atraente: em que a
estética, a arte, o encadeamento de ideias, a beleza e imponência do
discurso usurpam o lugar de uma análise cuidada, paciente,
imparcial (as virtudes da razão). Não falando já dos que pretendem
sobretudo excitar a emoção, a paixão, o sectarismo...Dá-se
doutrinamento quando se despreza a capacidade racional do outro e se
apela sobretudo ao sentimento. Nem se é «educado» nem se trata o
outro como pessoa «educada».
Que há conteúdos mais facilmente doutrináveis, é
notório: a política, a religião, a estética, a própria história... e
sempre que é importante a interpretação subjectiva. Aliás, todas as
teorias são facilmente doutrináveis: apoiam-se na firmeza do
raciocínio, formando uma estrutura sólida e coerente (mas baseada
nos dados da experiência). Se as aceitamos é porque reconhecemos que
têm muito valor – mas que são provisórias. Não atingimos a verdade –
somos orientados por ela e para ela. A eternidade, para os crentes,
seria um eterno aborrecimento se não se esperasse uma sempre nova
descoberta da Verdade, Amor e Alegria – que é Deus.
Depois dos «ares» das férias, será mais fácil e
agradável falar de Deus e de viver a religião sem «doutrinar». Basta
aproveitar «os ares» que ajudam a amar a liberdade e originalidade
que despontam já nas crianças. E para continuar em família, aqui vai
uma divisa de minha mãe: «Os melhores dias são os que estão para
vir!»
Aveiro, 22-07-2019 |