De braço dado com Jürgen Moltmann

ESCLARECIMENTO: Entre aspas vão os termos traduzidos mais cuidadamente. Trata-se de uma reacção pessoal, mas baseada apenas no conteúdo do livro em questão (e sobretudo nos seis primeiros capítulos). O «testemunho» final encontra-se na pág. 98. Não abordarei as passagens em que discute ou aprofunda vários temas teologicamente centrais, com muito rigor e amplitude de visão.

 

Há vários anos que ouvia falar dele, como um dos mais citados e interventivos teólogos do nosso tempo. Um teólogo do nosso mundo. Atraía-me a relação que estabelecia entre Deus  e a Vida – esse outro mistério cósmico.

Senti a sua morte recente de modo especial. Pois dialogava com ele como que num passeio de braço dado, ao adquirir, muitos meses atrás, o seu livro The Spirit of Life – A Universal Affirmation (Fortress Press, 2001).

Moltmann aprofundava o conceito de vida: pela teologia feminista, pela filosofia e «descoberta» do corpo e dos sentidos; trabalhou em grupos carismáticos, feministas e ecológicos; organizando finalmente um célebre seminário sobre «Espiritualidade e Ética da Criação» (1990-1991).

 

1º PASSEIO DE BRAÇO DADO:

Dizia que a realidade em si não é boa nem má. Os seres humanos dispõem do poder de distinguir e classificar todas as coisas existentes como boas ou más, incluindo os nossos «pensamentos, actos e omissões». Sem esquecer que todos os outros seres que chamamos vivos não possuem este poder de julgar, mas reagem à experiência do que lhes faz bem ou mal.

Como eu gostei de o ouvir falar sobre a experiência da vida – afirmada e amada! É preciso dizer SIM À VIDA para dizer NÃO à guerra, à pobreza, à injustiça. Dizer SIM à vida, sentindo as suas forças mesmo nos desgostos, dificuldades, doenças. Só respeitando e amando a vida é que somos contra tudo o que é morte.

Para ele, amar a vida é saber ligar-se a todos os seres humanos e a todas as manifestações da vida – todos os seres que «querem viver». É olhar para a vida contra a morte. Por isso, amar a vida é também dar qualidade e Beleza à Criação e a tudo o que fazemos: um trabalho «perfeito» guiado pela justiça. A vida é um fim absoluto em si. Não é «relativa» segundo critérios económicos, ideológicos… A esta «coragem de ser» e «domínio de ser» dá o nome de Vitalismo (conceito que prefere a Espiritualidade).

Sublinhava que uma religião viva não opõe «espírito» e «carne».E a experiência de Deus não se confunde com asceticismo nem «arrebatamentos». A Espiritualidade é viver e aprofundar toda a Criação e as nossas potencialidades. Por isso, a oposição corpo-espírito é um desvio perigosamente doentio: arriscamo-nos a «afastar-nos da vitalidade da vida criativa fora de Deus (out of God) para uma espiritualidade em Deus mas fora da vida deste mundo. Não é verdade que o Novo Testamento fala «deste corpo frágil e mortal como “o templo do Espírito Santo”?». E na Bíblia, o Espírito de Deus aparece como «a força vital dos seres criados e como o espaço vivo (livingspace) no qual todos eles podem crescer e desenvolver as suas potencialidades».

 

Fazia-me bem lembrar que o Espírito de Deus e o Espírito dos seres humanos estão ligados. Tendo consciência do nosso valor e limitações, abre-se a janela própria da religião natural. Sem experiência de Deus, não há teologia. Porém, é difícil conceber esta relação entre o ser humano e o Ser Divino. E na medida em que vivemos a experiência de nos situarmos perante o que é «totalmente outro», inacessível, precisamos de coragem para nos apresentarmos com a genuína humildade que abre espaço a Deus.

O acto divino de Criador é ele que nos liberta de modo a colaborarmos na «nova criação» de todas as coisas; uma espécie de glorificação da criação original, em que tudo o que existe alimenta a nossa espiritualidade inseparável do corpo e do  amor pela vida.

Sobretudo nos tempos passados, estimava-se o afastamento do mundo e o desprezo pelo corpo. Esta atitude favoreceu a progressiva destruição da natureza. Ora o Espírito de Deus conduz-nos ao respeito pela dignidade de todas as coisas criadas, nas quais Deus está presente. Não se trata de visionismo especulativo ou romântico: é a condição essencial para a sobrevivência da Humanidade nesta única terra de Deus.

Mas a experiência de Deus não é apenas o eco do Espírito Santo no nosso coração: o Espírito Santo é «o poder que dá vida aos mortos, uma sempre nova criação de todas coisas; e a fé é o começo de um novo nascimento para uma vida nova».Não é mera revelação: é a fonte da vida.

Ao fim do 1º passeio, registei com o maior rigor possível, este testemunho:

 

O QUE É QUE AMO QUANDO AMO DEUS?

Quando amo a Deus, amo a beleza de tudo  o que é corporal, o ritmos dos movimentos, o brilho dos olhos, os abraços, sentimentos, odores, e os sons de toda esta pluriforme criação. Quando eu vos amo, meu Deus, quero abraçar a criação inteira, quero amar com todos os sentidos a Criação que brotou do amor. Em todas as coisas que vêm ao meu encontro, tu estás à minha espera.

Por muito tempo procurei-te dentro de mim e aninhei-me na concha do meu espírito como dentro de uma muralha. Mas tu estavas fora da minha estreiteza e guiaste-me para a imensidão do amor da vida. E assim encontrei-me a mim próprio, quando soube amar tudo o que não era eu.

A experiência de Deus aprofunda as experiências da vida, o sim à vida, a alegria de existir. Sinto o Deus vivo, a fonte inexaurível e eterna da vida.

Aveiro, 03 de Julho de 2024

 

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