Liturgia Pagã

 

Saltos e Sobressaltos

4º Domingo da Quaresma (ano C)

1ª leitura: Josué, 5, 9-12

2ª leitura: 2ª carta aos Coríntios, 5, 17-21

Evangelho: S. Lucas, 15, 1-3. 11-32

 

Estamos em época de «saltos radicais». «Radical» é o que vai até ao limite extremo (como ir até ao radical de uma palavra): a «raiz» (radix em latim) simboliza o fundamental, a forma mais pura e rigorosa de alguma coisa, como em «reforma radical» ou em «ir até à raiz do evangelho». «Saltar» vem do latim saltare (saltar e dançar) que deriva de salire (sair, mas também saltar, brotar, palpitar). Com bons ou maus sentidos, daqui nascem palavras como exultar, insultar, assaltar, saltear, saltimbanco

O termo hebraico para «Páscoa» (pesah) é de etimologia incerta, mas o próprio livro do Êxodo o aproxima do verbo pasah, que significa «saltar» ou «passar por cima»: na noite em que Israel saiu do Egipto, o «anjo exterminador» «saltou» – poupou – as casas dos israelitas marcadas com o sangue do cordeiro preparado como refeição familiar daquela que foi a primeira Páscoa. Quanto ao sentido de «passar», lembra a «passagem do mar vermelho», a «passagem» da morte de Cristo para a ressurreição e de tudo o que é morte para tudo o que é vida.

Com Josué, o povo eleito «saltou» para um novo estádio de amadurecimento: não mais será o povo infantil dependente do maná «caído do céu». Doravante, alimentar-se-á do fruto do seu trabalho. De igual modo, S. Paulo vê Jesus Cristo como o protótipo de um salto radical para uma nova maneira de olhar a vida e de a viver.

E S. Lucas? O texto do evangelho põe o Pai a correr – coisa inaudita num senhor de respeito – ao encontro do filho, saltando para os braços um do outro. Um filho com prática de «saltos radicais»: fugiu de casa e saltou pelos mais variados estilos de uma «vida em grande», até perder a energia num salto que o deixou num grande buraco...

Por fim, juntou as forças para o grande «salto radical» – ao encontro do «amor radical» do Pai. Um amor bem equilibrado, que não se deixa levar pelas aparências e que sabe «gerir» os justos sentimentos de apreço ou repulsa. A parábola parece dizer: não entra pelos olhos dentro que Deus é tão amigo que é o primeiro a «saltar ao nosso encontro»?

Mas… «saltar para Deus»? Os místicos sentiram que a própria luz de Deus é para nós escura e sempre desconhecida. Não é nada fácil lobrigar no escuro alguém que se diz ser o fundamento de toda a confiança e esperança e para quem ninguém se perde; que dizem ser a fonte da riqueza infinitamente diversa que há em nós – onde nascem as temerosas angústias, tão difíceis de partilhar; alguém sobejamente conhecido por ninguém o conseguir «entender», de tal modo está acima da capacidade da razão; embora também se diga que é «razoável» dar este «salto», atendendo a que são mais fortes os «aspectos  positivos» e que portanto o «acto de fé» não é contra a razão…

Mas até para sabermos apreciar os «saltos» dos outros, precisamos de um bom «salto interior». Se descansamos numa fé tranquila, caímos na tentação de condenar sem mais ou de olhar de soslaio para os que «se portam mal». O irmão mais velho do «filho pródigo», talvez por levar uma vida sem «sobressaltos», nem o quis reconhecer como irmão. – «Esse teu filho» depravado! – diz ele ao Pai.  Mas o Pai corrigiu: – «Este teu irmão» «saltou para a vida»! E tu, ao menos «salta para a festa»!

Quantas vezes somos arrastados para uma dança que não é do nosso estilo! Mas acabamos por ficar contagiados pela alegria geral e presos pelo prazer do convívio. E depois, a meio da festa, alguém fará um brinde: ao filho, ao amigo que voltou…! E as crianças darão saltos de alegria, E os adultos e as pessoas de mais idade sentirão o coração saltar de alegria, porque a união suscita só por si confiança no futuro. E todos poderão lembrar como saltámos tantos obstáculos, como saltámos para tantos braços amigos – e como saltamos sobre zangas antigas e abrimos os braços a quem vem ao nosso encontro.

Haverá alguma semelhança com os «encontros dominicais», liturgicamente designados como «festivos»? Como interpretamos o «abraço da paz»? Em família, os momentos de maior interioridade dão força para sustentar relações humanas agradáveis e justas. Se aproveitamos o momento de reviver a «última ceia», cada qual descobre onde imitar o «bom salto» do filho pródigo; e ganhamos o jeito de «saltar para o meio da roda», lidando de perto com os problemas da vida e transformando os sobressaltos em «saltos» felizes.

06-03-2016


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