PRIMAVERA
NA
VILA DE MOURA
Versos de JOAQUIM COSTA
(Desenho de Álvaro)
Na minha vida calma e esquecida,
Onde há bonitas praças e um jardim,
Deixo correr serenamente a vida,
Que toda a vida tem principio e fim.
De tudo quanto é belo tenho sede,
Adoro a luz, o céu, a amplidão,
Amo os poetas, leio Cesário Verde
E faço Versos sem inspiração.
Há um poema já amarelecido
Que em tempos escrevi – que louco era!
Onde canto, num tom enternecido,
A minha vida, o sol e a Primavera.
Eu saíra de casa. Era manhã:
Tudo tão fresco, tudo tão lavado.
Passava gente, à pressa, num afã,
Alguém abria as portas do mercado.
Aumentava o bulício com a hora,
Nas ruas a penumbra esmorecia,
E mais, ao longe, punha a rubra aurora
Manchas de sol na branca casaria.
Partiam para o campo as mondadeiras.
Aos ranchos, elas lá iam, a cantar...
E menos triste a vida se há canseiras
E alguma erva para se arrancar.
Eles ficavam, bons trabalhadores,
Assentados nos bancos, pela praça,
Silenciosos, tristes, sofredores,
Joguetes da miséria e da desgraça.
O ruído aumentava a cada instante
Em notas expressivas de alegria,
Enquanto a vida clara e radiante
Toda se dava ao sol do novo dia.
Árvores que eu vira há pouco sem folhagem
Perdido o antigo aspecto de tristeza,
Eram, agora, na banal paisagem
Motivos de frescura e de beleza.
Em frente duma escola, a petizada
Satisfeita, contente, a saltitar,
Fez-me pensar na minha infância amada
E tive, então, vontade de chorar.
Ou fosse a hora, a luz, a manhã calma,
Certas lembranças, certos sons distantes;
Uma ternura imensa encheu-me a alma
E fui feliz e bom como era dantes
Vila querida! Em ti o meu passado
Surgia a cada canto. E reparei
Numa rua que dá para o mercado
Cuja calçada tanta vez pisei.
Deixo, o meu sonho. Já não vejo a escola.
À minha frente um bêbado qualquer
Caminha a par duma infeliz mulher
Que se detém para pedir-me esmola.
Aqui e ali, rapazes mal vestidos,
De mãos cruzadas, expressões sombrias,
Medraçavam, inúteis, pervertidos,
Assentados, ao sol, nas escadarias.
Ao lado deste quadro que contrista,
Num traço leve, encantador, divino,
Surge a Igreja de João Baptista
De rendilhado pórtico manuelino.
E mais ao fundo, perto do Jardim,
A luz lhe doira as colunatas ricas,
A água canta uma canção sem fim
Na monumental fonte das Três Bicas.
Embora a cena me não diga nada,
Eu paro embasbacado para ver,
Uma moçoila que desceu a escada,
De cântaro ao quadril, que foi encher.
Em tudo isto uns laivos de saudade,
Um não sei quê de vago e singular
Que vem dos tempos, duma outra idade
,
E aqui ficou nas pedras a falar.
Entro depois no meu jardim amado,
Ninguém àquela hora ali passeia.
Todo
o recinto é calmo e sossegado,
Sob os meus pés estalam grãos de areia.
A relva tem uns tons esmeraldinos,
Embala o «Pingo-Pingo» da cascata,
E entre mil sons discretos, pequeninos,
O coaxar das rãs, sobe, ressalta.
Na alameda arborizada, onde
A luz projecta a sombra da folhagem,
Todo o silêncio do jardim se
esconde
Nem ali bole o sopro duma aragem.
Deste lugar tranquilo apraz-me ver
O vale do Brenhas fresco e tão viçoso,
Casebres, hortas, o rio a correr,
O velho açude irado, impetuoso.
Pode não dizer nada à outra gente
A minha vida, o brenhas e o seu vale,
Pode o poema ser incoerente
E sem valor o tema principal.
Que eu não me canso de dizer cantando
Em débil voz, a alma deslumbrada,
E porque o faço aos poucos, vou quebrando
O estranho encanto da Moura
encantada.
Moura – Maio – 1949 |