OS TREZE DIAS SANGRENTOS

DA JANGADA DA «MÉDUSE»

UMA PÁGINA NEGRA DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE


A cobardia daquele que originou a catástrofe e os horrorosos massacres cometidos pelos náufragos que a fome e a loucura converteram em devoradores de carne humana.


Por muito que o homem civilizado procure iludir-se, afirmando que no seu mundo interior já nada subsiste da barbaria primitiva, da sanguinária ferocidade dos trogloditas, o destino encarrega-se de destruir cruelmente a ficção e demonstrar que a fera não morreu. Acorrentou-a a lei, adormeceram-na os preceitos religiosos, mas bastará uma emergência em que a vida se sinta em perigo, uma situação em que o instinto domine, para que o monstro desperte, rebente as cadeias e apareça, raivoso, em toda a sua hediondez.

Página negra da história da Humanidade, o caso da «Méduse» encerra um exemplo alucinante dos extremos a que pode chegar o mamífero superior que nós somos, quando acicatado pela fome e pelo pavor da morte.

Corria o ano de 1816. Um tratado com a Inglaterra permitira à França recuperar a colónia do Senegal, colocada sob o poderio britânico, desde 1758. Tratava-se de ocupar solidamente o território. Organizou-se uma expedição – oficiais e soldados, professores, sacerdotes, médicos, operários, agricultores, padeiros, mulheres e crianças. Desejava-se lançar com esta gente a base de uma colonização efectiva. A fragata «Méduse», os brigues «Loire» e «Argus» e a corveta «Echo» receberam a bordo os expedicionários. Foi nomeado comandante da «Méduse» e da expedição Puroys de Chaumareys, antigo oficial da Armada Real, afastado, havia muito tempo, do serviço activo.

A frota largou da ilha de Aix, a 17 de Junho. A incompetência de Chaumareys revelou-se imediatamente, nas mais pequenas coisas. As suas ordens raramente eram acertadas, mas um orgulho desmesurado levava-o a repelir com rispidez a menor observação esboçada pelos oficiais subalternos e sabedores. Aos trambolhões pelo Oceano, a fragata lá foi singrando. Afastou-se dos outros navios e esteve prestes a naufragar perto da Madeira. O comandante parecia muito seguro de si e aproximou demasiadamente o navio da costa africana.

2 de Julho – Cerca do meio dia, sob um sol ardente, a «Méduse» navegava em águas de cor esbranquiçada. Houve alarme. Lançou-se a sonda. Dezoito braças! Espavorido, o capitão ordenou manobras para evitar o encalhe. Era tarde. O vento soprava com força e, coberto de pano, o navio depressa ficou preso, para sempre, nos rochedos do banco Arguin, a noventa quilómetros da costa do Senegal.

Pensou-se, a princípio, em safar, o barco. Trabalhou-se, arduamente. Alijou-se a carga. Nenhum resultado. As vagas começaram a impelir a «Méduse» e encravaram-na profundamente. Reuniu-se um conselho de oficiais de bordo e do batalhão que embarcara na fragata. Havia quatrocentas pessoas a salvar. O navio tinha seis pequenas embarcações; levariam duzentos náufragos. Numa jangada enorme, seguiriam outros tantos. As canoas poderiam içar velas e, num esforço comum, rebocar a jangada até à costa.

5 de Julho – Em desordem, sem disciplina, com pequenas manifestações / 332 / que já anunciavam a tragédia, fez-se o embarque nas canoas e na jangada. Nesta, instalaram-se 120 militares, 26 marinheiros e operários e uma mulher. No meio de tamanho caos, o comandante não reagia. Deixava-se ir ao sabor da fatalidade. Os víveres distribuídos eram insuficientes. Esqueceu-se a água.

Ao anoitecer, começou a odisseia. Chaumareys embarcou numa das melhores canoas. A marujada e os soldados vaiaram-no ferozmente. E o barquito afastou-se. Alguns seguiram-no sem se recordarem de que deviam rebocar a jangada. Dois ou três, cujos chefes tiveram um rebate de consciência, passaram cabos à monstruosa aparelhagem coalhada de homens. Mas o mar encapelou-se e as vagas atiravam a jangada para cima das canoas. Os machados brilharam no escuro. Os cabos foram cortados. Velas enfunadas, as embarcações sumiram-se na noite. E as cento e cinquenta almas que sofriam sobre aquele enorme amontoado de madeira viram-se sós, ao sabor da ventania e das ondas, sem bússola, à mercê da fatalidade.

A sede, a fome e o abandono criaram o desvairamento. Sofrearam-no, a princípio. Depois, surgiram os primeiros actos de alucinação. Ora, havia optimismo, ora negros pressentimentos. Passaram dois dias. Os víveres escasseavam. A água rareava. O egoísmo explodiu. Numa noite, houve luta à punhalada e à machadada, por um barril do precioso líquido, sobre a jangada sacudida por furiosa tempestade. Ao alvorecer. sessenta e cinco dos náufragos tinham desaparecido!

Dos restantes, um pequeno grupo decidiu sobreviver, fosse como fosse. A obra de extermínio prosseguiu. Era de noite, sobretudo, que os punhais e os impulsos de surpresa iam fornecendo ao mar os corpos de novos mártires. A fome aumentou. Acabaram-se os últimos biscoitos salgados. Durante três dias, ninguém comeu. O desespero atrofiou as derradeiras resistências. Um pensamento monstruoso tomou forma e, certa manhã, o sol surpreendeu os náufragos a devorarem, sofregamente, a carne do cadáver de um dos companheiros. Transposta a barreira, a antropofagia assentou arraiais. / 333 /

Bebia-se urina; preferia-se a deste ou daquele, «por ser mais saborosa ou menos adocicada» – segundo o relatório de um dos sinistrados. Os cadáveres eram cortados em tiras que o sol ia torrando, à falta de lume. A única mulher que ali seguia foi sacrificada ao voraz apetite dos desvairos. Por fim a jangada só transportava sobre o Oceano quinze homens lambuzados de sangue, olhos saídos das órbitas, esquálidos, andrajosos, semi-Ioucos, no meio de grandes fatias de carne humana pregadas em pedaços de madeira e expostas aos raios solares.

Assim decorreram treze dias, desde o abandono da «Méduse». Ao entardecer do décimo terceiro, surgiu o velame branco do «Echo» que, por acaso, passava ao alcance da jangada. O brigue recolheu os espectrais sobreviventes, precisamente quando já ninguém pensava neles.

Muitos dos náufragos que haviam seguido nas canoas tiveram, também, trágico destino. Uns abicaram nas praias inóspitas da Costa do Ouro. Os mouros aprisionaram-nos, roubaram-nos, violaram as mulheres, reduziram-nos à escravidão. Outros, procurando atingir S. Luís, alcançaram costas rochosas, onde os barcos se despedaçaram. Os sobreviventes caminharam pelas areias ardentes, deixando pelo caminho os companheiros exaustos, à mercê da voracidade das hienas. Destaca-se o caso do cabo Guérin, que embarcara na «Méduse» com sua mulher, levado por um sonho de vida melhor. Antigo soldado do Imperador, zelava a honra e o cumprimento da palavra dada. O abandono da jangada horrorizou-o, mas foi forçado a submeter-se. A canoa em que entrara alcançou a terra. Depois, começou a marcha pelo deserto. Clotilde, a companheira do bravo das campanhas napoleónicas – foi fraquejando.

A emoção, a debilidade, a rudeza da marcha esgotaram-na. Na noite de 8 de Julho, soltou um gemido e caiu por terra. Não podia acompanhar a caravana. Indiferente, esta afastou-se. A chorar de raiva, Guérin tomou a mulher nos braços. Inútil dedicação. A desgraçada expirava pouco depois. E o cabo ficou só diante do cadáver, no meio do deserto.

Rezou, a soluçar, junto daquela que fora o seu único amparo moral. De um salto, uma hiena atacou-o. Fraco, combalido, fugiu, perseguido pela fera. Foi ocultar-se na praia. Mas o destino torturou-o. Uma enorme onda avançou, envolveu-o, arrastou-o para o largo. Nadou com desespero, até o romper do dia, Então, miserável e cambaleante, dirigiu-se ao sítio onde deixara o corpo da mulher. Só encontrou a cabeça ensanguentada. O resto fora devorado por leopardos e hienas.

Louco de dor, rasgou a camisa e embrulhou nela o despojo fúnebre. Não quis abandonar os restos da que lhe dera tanto amparo, tanto carinho e tantos anos de vida feliz. Partiu, só, como um fantasma, pelo areal escaldante.

Os mouros aprisionaram-no. Guérin, que combatera no Egipto, falou no nome do «grande Bonaparte», cuja fama corria por todo o mundo maometano. Deixaram-no seguir sempre abraçado à cabeça de Clotilde, já putrefacta, horrível, a desfazer-se.

De tribo em tribo, chegou a S. Luís. Quiseram tirar-lhe o despojo da mártir. Resistiu. Levou-o para o hospital, onde morreu de desinteria, de esgotamento e desespero. Para cumprir as últimas vontades do humilde herói, sepultaram-no com a cabeça da sua amada, que nunca quisera abandonar.

O responsável por estas horrorosas odisseias, o comandante Chaumareys, foi julgado em Rochefort, em conselho de guerra e exautorado, em 1817. Veio a morrer, catorze anos depois, miserável, roído de remorsos, olhado de longe por quem conhecia a sua
história.

O caso emocionou vivamente a França e todo o mundo. A política fez dele elemento de combate. E Gericault – o grande pintor – ao ouvir o relato de um dos sobreviventes, concebeu e executou o célebre quadro «A jangada da Méduse», fugindo às tradições académicas, pelo vigor do desenho, o colorido pleno de vida, o dramatismo das expressões, e inaugurando o movimento romântico. No Louvre, onde se encontra, a grande tela ainda hoje nos dá uma visão arrepiante do imenso drama que, há muitos anos, se desenrolou, entre o céu o mar, tendo por principais protagonistas as forças eternas e cruéis que palpitam no íntimo de cada ser humano.

 

 

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