UM GRANDE ESPERTALHÃO

Em certa localidade estrangeira, perto da fronteira portuguesa, um comerciante, dono de uma pequena tabacaria, comunicou à policia, muito aflito, o desaparecimento de sua esposa que, como de costume, saíra num domingo, de manhã, ainda cedo para ir ao mercado do peixe.

Pesquisas, indagações e nada...

Afinal, ao fim de oito dias, a polícia chamou o comerciante para ver se reconhecia um corpo encontrado à tona de água com a cabeça tão ferida pela hélice de uma embarcação que o seu rosto já não tinha forma. O homem não tinha dúvidas. Reconheceu-a pelo vestido, por um anel de feitio muito [invulgar] e pela cor e qualidade das meias.

Emoção, pranto. Mas a burocracia não se pode deter diante de tristezas.

Um funcionário apresentou ao comerciante dois papeis: o termo de reconhecimento da morta, para ser assinado, e uma nota de despesas para pagar.

– Mas há despesas? – perguntou surpreendido.

– Sim, senhor. A morta não era uma indigente. Há que pagar aos homens que retiraram o corpo do rio e o transporte para o necrotério.

O comerciante hesita. – Então não paga? – pergunta o funcionário impaciente.

– Mas ela será mesmo a minha mulher? – replicou.

– Ora essa! Então mesmo agora a reconheceu!

– Isso é uma maneira de dizer. Parece-me que é ela. Mas certeza não tenho...

– Mas o anel?

– Há muitos Iguais.

– E o vestido?

– A loja vendeu outros iguais.

– As meias...

– Sei que ela só as comprava quando ia a Lisboa no Rei das Meias, Largo Bordalo Pinheiro, 32 (antigo Largo da Abegoaria) em Lisboa. Mas há milhares de pessoas, tanto portuguesas como estrangeiras que compram meias neste estabelecimento e portanto continuo a afirmar que não tenho a certeza se a morta é a minha mulher...

E retirou-se, recusando-se assinar o termo de reconhecimento e, principalmente, a pagar fosse o que fosse.

 

 

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