Depois dos dias cálidos a anunciarem o verão
da charneca, ao fim de uma tarde, de improviso, a trovoada e uma chuva
furiosa fustigaram os campos. O macadame, assente nas terras fofas,
abriu-se em trilhos pegajosos que prendiam os pneus, atolando-os cada
vez, mais na moleza do barro. O motorista deixou-me no meio da estrada,
ainda a uns oito quilómetros do doente; continuei a pé, atravessando
ribeiras e alqueives ensopados das enxurradas, até ao monte mais
próximo. Era noite quando lá cheguei. O lavrador cedeu-me um carro,
conduzido pelo maioral das parelhas. Uma das velas das lanternas
consumiu-se logo no começo da viagem; o vidro partido deixava escapar um
fumozinho acre. A marcha fez se daí para diante quase pelo instinto das
bestas e do seu guia. As veredas cruzavam-se, repartidas pelas muitas
courelas, às vezes as rodas estacavam nos penedos saídos das moitas,
mas, através dessa confusão que a noite exagerava, só uma vez torcemos o
caminho.
Fomos conversando. O camponês falava-me das
suas dores. Como toda a gente, lá lhe parecia que essa conversa me seria
agradável. No café, no clube, numa viagem, todos aproveitam o ensejo
para uma consulta disfarçada. É uma maneira amável de nos roubarem
alguns momentos em que apetece esquecer a profissão.
O maioral tinha as suas razões: sujeito a
noitadas, aos temporais sem abrigo, o reumatismo era inevitável e vinha
certo com as luas. Esgotadas as queixas falou-me de uma irmã, acusada de
ter roubado uns lavradores. Como eu a tinha tratado nessa altura, era
sabedor da sua miséria, que nem chegara a uma injecção de penicilina que
lhe havia receitado; por isso, pedia-me para servir de testemunha de
defesa.
Dois cães de guarda deram alarme da nossa
chegada ao monte da doente. Tinha vindo gente de outras courelas
assistir ao espectáculo da consulta. Cercado de juízes ávidos,
diagnostiquei uma meningite tuberculosa.
No regresso, encontrámos a noite menos
densa. Estrelas, rasgões claros entre as nuvens e uma brisa calma e
morna. Falei ao maioral das características da herdade do seu patrão; e
dai, conversámos de lavoura – com o entusiasmo de quem afundou as raízes
na terra. Na despedida, para retribuir o jeito do homem. lembrei as suas
dores e ofereci-me para o observar na vila.
Ele apareceu no primeiro domingo. Visto à
luz do dia, confirmava o seu aspecto possante e sadio, mas era agora
campónio tímido, acobardado pelo ambiente do consultório. Tinha uma
expressão fixa, de uma fixidez obstinada, e os seus modos e as suas
palavras eram ingénuos.
Extraí-lhe um pouco de sangue para análise.
Isso pareceu amedrontá-lo.
– O meu sangue é tão negro, senhor doutor?
Será por isso que eu tenho estas esfoladelas nos braços? Terei as veias
envenenadas? Sosseguei-o.
– O senhor é um homem rijo, descanse. Daqui
a dias, já poderemos saber por que tem a pele tão assanhada.
Chamei a história da irmã, mas o maioral não
me respondeu. Ficou o resto do tempo em silêncio e de olhos baixos.
Dias depois, inesperadamente, voltou. Desta
vez, como sinistrado. Ao descarregar uma carga de estrume, o vento
abalara-lhe com o chapéu e uma besta, espantada, fizera-lhe voltar o
carro. Apresentava apenas uma ferida superficial na mão e algumas dores
pelo tórax. Era um acidente desprezível, mas como um dos pulsos estava
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um pouco ressentido, o patrão teimara em
mandá-lo ao Hospital. Mas no dia seguinte, já apareceu com os pés
inchados. O Manuel Serrano vinha sério, desconsolado, como se tivesse a
vida ameaçada. Gracejei com os seus terrores, mas o maioral ouvia sem
agrado as minhas ironias.
Depois, tudo sucedeu sem lógica e em
vertigem: encontrei o Serrano à esquina do Hospital, poucas horas de
pois, com a cabeça tragicamente apoiada nos joelhos. Voltara num carro
de mulas. A metade inferior do seu corpo era um bicho soprado; um odre
distendido e luzidio. E nada que o justificasse; nada havia ali que os
meus sentidos pudessem sentir de anormal. O Serrano alarmava-se mais
ainda com as minhas dúvidas.
– Então o que será isto, senhor doutor?
Dói-me o corpo todo, tenho a bexiga parada! Esta, é a da morte.
– Deixe-se de tolices. O inchaço ainda hoje
desaparece.
Mas enganei-me. O edema só veio a ceder dois
dias depois.
A sua doença, porém, não ficou por aí: o
Serrano, mal eu entrava na enfermaria, punha lástima e dor no rosto
enfiado e tinha sempre um queixume novo a acrescentar. Cólicas difusas
que não correspondiam a nada, um desassossego esparvoado que o fazia
raspar com os pés a cal da parede ou passear a enfermaria balançando os
braços como um macaco. Durante umas horas ainda o seu estômago se
distendeu; mas aliviou com um vómito. Se eu ou a enfermeira nos
mostrávamos enfastiados, sentava-se na cama, recusava o saco de gelo ou
de água quente, pedia este ou aquele remédio que lá lhe parecia mais
indicado, vomitava no chão, ostensivamente, em vez de o fazer na bacia
ao lado da cama; e, acima dessa hostilidade, o seu olhar tinha delírio,
ódio e urna obstinação esgazeada.
Tornou-se o pesadelo do Hospital. Os seus
gritos, carpindo ou exigindo a sonda e a injecção de morfina, faziam
juntar Q mulherio no largo.
O povo simplificou a sua doença como loucura
e esse rumor chegou ao monte. A mãe e a tal irmã vieram vê-lo. O Serrano
nada disse. Fixava estranhamente a irmã, com um olhar rígido, e quando
elas se foram, ouvimo-lo ciciar:
– Malandros...
Há dois dias que tinha os intestinos
parados. Os purgantes de nada lhe valeram. Só me inquietei
verdadeiramente quando os vómitos se repetiram. O seu caso acabara-me
com o sono; também eu trazia já os nervos tensos, correndo a toda a hora
para o Hospital, buscando com irritação qualquer coisa que me abrisse o
mistério daquelas disparatadas complicações. De uma vez em que estive
ausente da vila durante umas horas, gritou como um possesso que o
deixavam morrer sem um médico ao lado. A enfermeira azedara; e chegámos
a discutir junto do Serrano. O maioral sentou-se na cama, cruzou as mãos
sobre o bordo do colchão e, com uma calma imprevista, disse:
– Não os apoquento por muito tempo. Não vale
a pena zangarem-se. Esta, é de morte – repetiu.
A mãe ainda voltou. Era uma velhinha de
rugas sorridentes, vestida de negro, fazendo-se humilde e invisível no
extremo do corredor, como se nos temesse. Até que se atreveu a tocar-me
no casaco.
– Ele é tão bom, senhor doutor! Tem sido o
pai das minhas filhas e o meu amparo. Desculpe-o que não sabe o que faz.
E quando se despediu, para ir à sua vida,
ainda repetiu:
– Ele é bom... – e sorria e chorava.
O Serrano teve umas convulsões, rolou no
pavimento como endemonhado, e, de súbito, vomitou fezes. Não esperei
mais: olhei com raiva a sua língua e o seu ventre desesperadamente
normais e enfiei-o no meu carro, para o levar nessa mesma tarde para
Évora. Ele teria certamente de ser operado de urgência.
Entardecia. As trovoadas vinham todos os
dias com o crepúsculo. Para os lados de Montemor as faíscas abriam
riscos de fogo no céu negro. Pedi a um lavrador que me acompanhasse na
viagem. Poucos quilómetros além, no descampado medonho da charneca, o
maioral teve um espasmo que lhe repuxou os músculos da face. Arroxeado,
espumando, com os membros ,convulsionados, nesse cenário de trovões e
solidão, metia medo. O meu companheiro quase desmaiou. Com o carro
parado, a atmosfera era opressiva. A minha atenção teve que se dividir
pelo Serrano e pela palidez gelada do lavrador.
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Aquilo durou ainda algum tempo; e depois
veio a fúria. O maioral engadanhou com raiva a cara e as mãos, que
ficaram riscadas de sangue. Custou a segurá-lo na prisão que era o
automóvel. Se o deixássemos, saltar para a estrada, não teríamos
conseguido apanhá-lo mais.
Depois, pela vereda de uma herdade, avisado
pelos nossos gritos, apareceu um camponês de machado nas mãos. Chegou
junto de nós esperando encontrar uma cena de sangue.
– Julguei que fossem ladrões a assaltar o
carro. Conheci o carro de longe, ouvi a berraria e preparei o machado
para o que desse e viesse.
Aprontou-se para nos acompanhar também.
Repassado de suor, exausto, o Serrano
acalmara. Apesar disso, fiz o resto da viagem atormentado pelo receio de
que ele saltasse sobre mim, repentinamente, não me dando tempo de
dominar o volante.
Chegamos a Évora pela meia noite. As linhas
telefónicas não funcionavam, o Hospital estava iluminado a velas. A
trovoada tinha sido muito dura. Enfermeiros, doentes e médicos
esperavam, mal-humorados, nem se sabia bem o quê. Um doente do Baixo
Alentejo morria de hora a hora com uma peritonite; não havia luz para
operá-lo. Chegaram dois bombeiros com um homem atropelado e sugeriram
que talvez os seus holofotes pudessem substituir a energia eléctrica.
O Serrano foi observado nesse ambiente de
irritada expectativa. Nenhum dos médicos compreendeu o seu estado.
Ficámos por ali, fumando, lembrando hipóteses, um pouco sonolentos. Eu
sentia-me aliviado. Nessa noite, já poderia dormir, livre do pesadelo.
Mas, dois dias depois, não me contive e fui
a Évora vê-lo. A operação tinha sido evitada, confirmando a nossa ideia
de que todos os seus achaques e parésias eram de natureza funcional. O
seu intestino regularizara; no entanto, estava com um abatimento
impressionante. A sua voz parecia colada à laringe, sumida e rouca e os
seus olhos nem já ódio tinham. Pediu-me para o levar de novo.
Habituara-se à nossa companhia; aqui, tratavam-no como a um
desconhecido.
O resto foi-me contado pelos companheiros de
enfermaria. Gatinhava debaixo das camas, gemia ou gritava,
insubordinando o Hospital. Fui procurar o cirurgião. Também para ele, a
doença do maioral era um mistério, disparatado. Mais tarde,
telefonou-me: a administração do Hospital não tolerava mais o doente. O
patrão do Serrano teve de o trazer para casa. Fizeram uma paragem no meu
consultório.
Ele vinha em braços, incapaz de qualquer
esforço muscular. Parecia sedento e esfomeado; tomou muito leite e comeu
bananas. Prometi ir vê-lo, animá-lo, no próximo domingo. Tive que lá ir
antes; o Serrano fazia agora uma retenção da bexiga. Esperava
encontrá-lo impaciente das dores. Mas não; de olhos mortiços, recusando
qualquer alimento, tinha uma indiferença por tudo. Toda a família
acampara no quarto baixo e afogueado. A s irmãs, os cunhados, a velhinha
sumida. As mulheres discutiam os afazeres que não lhes permitiriam
continuar ali por muito mais tempo; e quando eu falei em que alguém
deveria acompanhar-me à farmácia, as divergências azedaram-se. Entre as
irmãs e o doente havia um surdo ressentimento. O patrão contou-me que
ele teimava com a velha obsessão:
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– Malandros... Malandros..
Morreu nessa mesma noite.
E a história, uma história estranha mas
insípida para o leitor que vive longe da experiência de um médico,
poderia acabar aqui. Quando muito, poderia acrescentar-lhe este episódio
antipático: o Serrano atravessou a charneca, pela última vez, no cimo de
um esquife, ao sol rubro do verão e às moscas, conduzido por camponeses
que tinham aproveitado o feriado para se embriagarem. Foi atirado à cova
como um cachorro.
Foi este o valor de uma vida, – uma cilada
mesquinha a dominou. A luta do Serrano contra a morte enfastiara toda a
gente. Mas agora, oferecido à voracidade da terra, excitava a nossa
cobiça. E é por isso que a história continua.
Doze dias depois da sua morte servir de
todos os comentários possíveis, veio uma ordem do tribunal para
procedermos à autópsia.
Isso aco9nteceu numa manhã esbrazeada. Os
guardas cercaram o cemitério, fechando-o aos curiosos. As moscas vinham
de todos os lados, gulosas, parecendo o festim.
Enquanto o coveiro reabria a sepultura, nós,
os médicos, e os representantes da justiça, disfarçámos o mal-estar com
comentários anedóticos à volta do caso. A brisa espalhou o odor podre do
morto. Alguns rostos empalideceram e um de nós vomitou. Preparámos as
máscaras e o coveiro veio refrescar-se com uma bilha de água.
O cheiro misturava-se com atmosfera
afogueada. Estavam ali alguns dos guardas que me tinham acompanhado, um
ano antes, a uma ribeira onde se afogara um mendigo. Falámos nisso para
impressionar os circunstantes. O corpo do velho estava debruçado sobre
as águas, na posição de quem vai saltar, e os peixes já lhe tinham
comido pedaços da pele, os olhos e as sobrancelhas. A fetidez abrangia
uma área de centenas de metros, redondo como uma bola, os gazes romperam
com o ruído de bombas. Eu e o colega tínhamos procurado abreviar a
autópsia, mas o delegado, lá de longe, do cimo de um penedo batido pelo
vento, com o lenço sobre o nariz, teimava sempre:
– Continuem! Continuem!
Agora o Serrano estava estendido numas
tábuas. Em cima do seu peito, flores artificiais, roxas, vermelhas e
azuis. Tinha o rosto negro, ressequido, irreconhecível. A pele
despegava-se e já não foi possível encontrar sinais do ferimento na mão.
Abrimo-lo, esfaqueámo-lo, com repugnância. Mas esse cadáver, de cérebro
desfeito em lodo, com os dentes saindo da carne repuxada, já nada me
dizia do Serrano; nada tinha que ver com o maioral das parelhas,
prestável, da distante noite da charneca ou do doente quezilento do
Hospital. Deste não me esqueceria tão cedo e nessas recordação havia
piedade e ternura.
O coveiro servia de ajudante. Disfarçava o
enjoo com repetidos golos de água, pegando na bilha com as mãos
lambuzadas da serosidade da carne morta. Um motorista perseguia as
moscas com ramos de arbustos.
O corpo dissecado do Serrano voltou à terra.
A cova foi definitivamente fechada sobre as flores desbotadas pelo sol.
Quanto a nós, ficámos a meditar no litro de
sangue que lhe encontrámos na cavidade torácica. De que morrera o
Serrano?
De pouco valia uma vida. |