JOSÉ DURO
O POETA E A SUA TRAGÉDIA
UMA
HISTÓRIA POSSÍVEL DUM AMOR IMPOSSÍVEL
Por MIGUEL TRIGUEIROS
Chamava-se Duro, José Duro. E o próprio nome
era a assinatura da tragédia, a antevisão do seu futuro sem horizontes,
a certeza da fatalidade que viera ao Mundo com ele e com ele havia de
morrer. Duro seria o caminho a trilhar. Duro seria o caminho a cumprir.
Nascera poeta, não pela graça de Deus, mas pela desgraça do sonho! E os
seus versos apareciam à flor da vida como farrapos de uma dor imensa que
lhe caía, grito a grito, sobre a alma, uma dor que não lhe permitia a
respiração da bondade, uma dor cinzenta e fria, como um nevoeiro
espesso, espesso.
José Duro saíra para a rua, nessa noite, à procura de alguma coisa que
não sabia definir, à procura de uma sombra que lhe escapava e que era
ele próprio, afinal, a fugir de si.
Estava cansado de sofrer, cansado daquela tosse que lhe abria lentamente
a sepultura, cansado de lutar contra a desgraça – a desgraça! Um dragão
de sete cabeças que só os príncipes dos contos de fadas conseguiam
vencer... Estava cansado de jogar os sentimentos, como se fossem dados
na mesa do jogo do amor. E cansado de perder, de perder sem remédio, de
perder cada vez mais, de perder sempre, enquanto os outros iam sorvendo
o prazer aos poucos e poucos, requintadamente, gulosamente, como sultões
no seu palácio, recostados com moleza sobre as almofadas do egoísmo e da
vaidade. Estava cansado de sonhar!
A tragédia! Porque viria a tragédia mais uma vez beijar-lhe os lábios,
vestida de mulher, vestida de ilusão, vestida de beleza? Não bastava ao
destino a sua doença tão grave, o poço fundo do desespero para onde ela
o atirava, a música fúnebre da sua tosse, o latejar da febre nas suas
veias, o latejar da angústia no seu espírito, o latejar da morte no seu
peito? A tragédia! Vivendo esta palavra com toda a violência dos
sentidos, lembrava-se ainda mais nitidamente da música que ouvira uns
dias antes; empoleirado numa
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107 / torrinha de S. Carlos,
onde fora com uma entrada de favor. Música de tragédia, sentira palpitar
nela todo o seu destino. E nunca mais o deixara aquela música,
preenchia-lhe agora o vácuo dos seus longos silêncios interiores,
florescia-lhe em som no jardim do seu abismo de alma. Música da
tragédia... Música do seu destino!
José Duro levantou a gola coçada do seu modesto casacão de estudante
pobre e avançou com passos rápidos e secos, na direcção do Largo da
Patriarcal. Não o guiava o pensamento, mas guiava-o o coração. Àquela
hora, ali próximo, alguém o esperava. Alguém que estava também doente
como ele e como ele nascera sem uma estrela no céu... Num repentino
ataque de tosse, o poeta estremeceu como frágil arbusto batido pelo
vento. E começou a andar mais depressa, quase a correr, como num
estranho pressentimento a alfinetar-lhe os nervos. Depressa, depressa,
depressa... E a música também a correr dentro do seu cérebro, a crescer
em intensidade e em emoção, a aumentar, a aumentar, a aumentar cada vez
mais forte, mais forte, mais forte...
Chegara ao fim da Escola Politécnica e parou ofegante, a espreitar
ansiosamente a janela central de um dos prédios próximos. Ao grito
inquieto dos seus olhos respondeu a mudez serena da escuridão. Quem o
esperava não pudera chegar à janela, como nas outras noites. Que teria
acontecido? Porque não viria ela? E de novo o pressentimento indefinível
lhe crucificou os nervos. Afinal, já sabia, sem o saber. Não era o seu
destino, como o seu nome, duro, duro, duro? Ainda e sempre a tragédia a
persegui-lo, a tragédia vestida de mulher, vestida de ilusão, vestida de
beleza!
Foi então que o poeta ouviu o estranho grasnar do corvo. Ao sair das
aulas da Politécnica, quase todos os dias, encontrava o sinistro pássaro
à porta da velha tenda que ficava no alto da Rua de S. Marçal. E o corvo
tinha um grasnar trocista, quando ele passava. Apesar de tudo, José Duro
achava-lhe graça. Estava já habituado à troça e ao desprezo dos homens.
Não era isso bem pior? Publicara, tempos antes, um pequeno livro a que
chamara singelamente «Flores». Ninguém havia reparado na sua primeira
mensagem de poeta. Agora, trazia no bolso as páginas amarrotadas de uma
obra inédita, que era um alto monumento da sua dor, o mais espantoso e
dramático testemunho do sofrimento humano que
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108 / alguma vez fora posto em
verso: «Fel».
Mas quase ninguém sabia, quase ninguém fazia
justiça ao seu talento enorme, quase ninguém atenuava a dolorosa
ascensão do seu calvário, Mayer Garção, Santos Tavares, alguns
condiscípulos do 3.° ano da Escola Politécnica – e poucos mais. Raros o
compreendiam, raros o admiravam. Que lhe importava, pois, o grasnar de
um corvo – de mais um corvo?
Nessa noite, porém, o pássaro dera um acento especial à sua voz, um
acento de mau agoiro, triste e agudo como um dobrar de sino velho e
rachado. E a janela fechada, impecavelmente fechada, e a escuridão
cerrada, a noite coberta de véus negros e a febre, a febre a
escaldar-lhe o corpo e a imaginação, a angústia a cravar-se-lhe na alma
como um espinho venenoso... O grasnar do corvo, àquela hora, fora com
certeza mais um aviso da fatalidade. Ela estava a morrer. Tinha a
certeza disso! Com um arrepio que de novo o fez estremecer todo,
afastou-se devagar para o meio do largo. Um dos palacetes vizinhos
resplandecia como diamante sobre o veludo da noite. Lá dentro, uma festa
mundana desdobrava-se em apoteose de luzes, de acordes musicais, de
risos e de cores. Os lustres de cristal rimavam com os espelhos polidos.
As sedas gemiam devagarinho, ao compasso de uma valsa de Strauss. O
«flirt» era o perfume do ambiente... Que importava a dor imensa dum
poeta, embrulhado na sombra e no silêncio, ali mesmo, a dois passos da
ilusão dourada dos salões? Que importava a música da tragédia no seu
coração? Outra música, esta alegre e saltitante como borboleta
despreocupada, abria as suas asas ténues e voava, agora ao encontro da
noite.
Começou, então, o duelo das duas músicas, o duelo das duas realidades.
Lá dentro, a alegria do instante. Cá fora, a tristeza sem fim. Lá
dentro, a vertigem do prazer. Cá fora, a vertigem da angústia. Lá
dentro, o amor em promessa. Cá fora, o amor em desespero!
A tragédia acabou por vencer. Vencia sempre! E José Duro fugiu outra vez
mais, para longe dali, para longe de tudo, para longe de si mesmo!
Alguma coisa ficara, porém, daquela hora triste. Alguma coisa que
transforma em eternidade os grandes momentos da existência humana,
alguma coisa que redime e sublima, os caminhos da vida, alguma coisa que
se chama: poesia. Um soneto nascera naquela hora, embora só mais tarde
fosse escrito. Um dos mais belos sonetos da língua portuguesa, catorze
versos encharcados em lágrimas:
Quando o meu corpo, trémulo, doente,
como quem sofre as minhas agonias,
naquela noite veio, amargamente,
dizer-me, soluçando que morrias,
percebi-lhe no olhar as nostalgias
da noite negra, sem luar, fremente,
aonde as suas asas luzidias
tomaram cor, misteriosamente...
E à luz medrosa do candeeiro exausto,
bebendo a minha dor num longo hausto,
mais triste que o soluço das nortadas,
analisei a mágoa de nós dois,
para ver qual sofria mais... Depois,
Céus! Desatei chorando às gargalhadas! |