O ALENTEJO

 

Pelo Dr. Hernâni Cidade

Não é em vão que, na quadra em que se modelam as linhas fundamentais do nosso ser moral, uma sempre e mesma visão do mundo e da vida se nos interioriza no cérebro e no coração, avivando os traços do que nos foi transmitido pela hereditariedade. Pode a nossa vida incidentar-se de mil modos, pode o património espiritual adquirido exceder em riqueza e dinamismo o que recebemos de herança. Não importa. Em momento de perturbação mais profunda, removida toda a vegetação e húmus da superfície, fica a descoberto como que a substrutura da alma, constituída pelos mais velhos e duros sedimentos, e não é difícil adivinhar, sondando bem, que à sua potência modeladora devemos como que as linhas fundamentais da fisionomia espiritual que nos distingue.

Ora o Alentejo dá, na verdade, aos que ali nascem e passam a sua primeira mocidade, essa inconfundível e forte imagem do mundo e da vida.

Quem, descendo das terras montanhosas do norte, pode alargar o olhar através das planícies da nossa província, tem bem a impressão de contemplar algo de imprevisto, nos limites estreitos de um mesmo e pequeno país. Sob o céu alto e límpido, a terra imensa, quase desnuda, sempre severa, mesmo quando raramente sorri em breve aroma idílico. Manchas florestais, que de longe em longe, incidentam o infindável da estepe, ou desenham a tragédia do sobreiral em sangue ou se enlutam do negrusco dos azinhais, quando não se / 99 / humilham na cínzea modéstia dos olivedos. Na primavera, é verdade, é quase toda a província um largo e verde oceano, todo estremecido de brando movimento de ondas que vêm do intérmino das distâncias, onde os montes se diafanizam na translucidez violácea. Mas está perto o verão, em que o desolamento amarelo das restolhadas dá à terra uma como dureza metálica. O bafo ardente que a percorre dir-se-ia a ofegação de duas potências desproporcionadas – a do sol implacável e a da terra sem ternura, querendo-se e amando-se num amor que tem as fúrias do ódio.

E o homem integra-se na tragédia das forças naturais. Coze o sol em brasa a argila de que é feito, empolga-o a terra mas sem o esmagar ou absorver. Na verdade, dilata-se-lhe a vista pela planície imensa, recorta-se-lhe no espaço a silhueta isolada; como não assumir ante si próprio proporções de grandeza e dignidade? Sobretudo, quanto o rodeia lhe insinua um fundo sentimento de gravidade, com que se funde a máscula tristeza daqueles para quem a vida é luta e a natureza educou espontaneamente, – sem blandícias nem regalos. Dá-lhe o pão e a carne, o azeite e o vinho, a fruta e o mel, a cortiça e a madeira, mas em troca de bagadas de suor, sob a torreira do sol que é miudinha chuva de fogo, no esforço mais violento e doloroso a que o homem pode ser obrigado na terra portuguesa.

Querem sentir mais viva essa impressão? É aproveitar o ensejo da primeira feira alentejana. Na massa larga e densa como se somam e tornam mais sensíveis os traços que se perdem, / 100 / fugidios, na dispersão normal dos indivíduos. E, na feira, percorram-se de preferência os rossios e tapadas por onde se espraiam os gados, sob a vigilância dos pastores. Atente-se nestas figuras estranhas que mantêm intacto aquilo que podíamos chamar a genuína alentejanidade. De ceifões e samarra, que são a sua armadura contra o frio glacial da estepe, chapéu braguês sobre os olhos, queixo apoiado às mãos que se entrelaçam no alto do varapau, olhos fundos, dir-se-ia terem perdido a mobilidade no hábito da devassa dos longes – dos longes do espaço e do tempo, por tal forma em seu ar a um tempo doce e grave, parado e meditativo, nos surgem como milenárias figuras bíblicas, para ali esquecidas pelo tempo…

Quando à noite, nas vendarolas improvisadas junto ao carro que transporta a pipa de vinho, em quadros rembrandtescos esboçados na treva pelas pinceladas amarelentas do acetileno, eles atiram para o espaço os seus cantos a duas e três vozes, não parece que se lhes solta, ondulando na harmonia da linha melódica, a secreta angústia milenária que se lhes emaranha na alma e lhes ensombra a fisionomia e a atitude? Toda aquela indefinida plangência, morosa e insistente como obsessão da indefinida lonjura em que se perde, é verdade que reflecte da paisagem a monótona ondulação espraiada, quase sem ânsias de altura e quase sem bulício pitoresco, não preguiçosa senão que submissa, depois da luta intérmina com as forças naturais que a foram arrasando; mas em seu poder de funda insinuação, com eco nos mais recônditos recessos da alma, ela surge como a própria voz de uma vida espiritual que, no isolamento ganhou em profundidade o que perdeu em movediça riqueza de superfície.

 

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