UANDO passou a tumba pela quelha da Hera, atalho tristonho do cemitério, quase todos os serviçais da quinta subiram ao muro e, curvados, jungidos em um renque de troncos soluçantes, deram o adeus derradeiro a Florinda, a boa cachopa, a, outrora, mais radiosa, fúlgida serva do conselheiro Esteves Pinhão.

Mas, olhem este infortúnio: ninguém do seu sangue a acompanhara! Todos repararam. De resto, natural, porque a única pessoa que a defunta deixava no Mundo era sua Mãe e essa, muito doente, a engelhar, feita decrépita, embora não arrostasse com mais de quatro dezenas de outubros, – estava de todo distante, para além das cordilheiras abruptas, na margem do seu nostálgico corgo. Em todo o caso, – ai! Sempre era um consolo, – muitas criaturas alheias o fizeram e, olhos marejados de lágrimas, coração opresso, lhe levaram ramos de amarantos e de goivos ao coval. Outras, também, que não puderam ir, desfiaram à noite os rosários por sua alma, em uma saudade viva, mortificadora.

Florinda deixava, como nenhuma, gratidão verdadeira no íntimo dos pobres, dali e de fora, pela broa que lhes dera sempre, pelo muito que lhes havia feito em mal próprio. E, depois, ficava a falha da sua antiga alegria, – a sua alegria, sugestiva e cantante, dissipadora de ressaibos e angústias. Era de vê-la então. Era de ouvi-la, ainda melhor, ao ela reparar no franzido dolente do rosto de alguma das suas muitas amigas: «Menina! A vida não vale amargores. E a pessoa que os tem, que os procura, não sabe gozar, é tola!» E, rebentando-se-lhe a alacridade em casquinada intérmina, casquinada capaz de desmanchar os mais anquilosados misantropos, agarrava a desgostosa pela cintura e fazia-a rodopiar até lhe ouvir, de permeio, a ditos contrafeitos de zanga, as mais cintilantes palavras de alegria.

Florinda, a sempre risonha, a sempre feliz, mal sabia entanto que o raio lhe cairia em casa. E de que modo!...

A principiar pelo encontro do seu corpo expirante debaixo da grande penedia, da alta penedia talhada a pique impetuosamente, sobre a devesa do sr. Donim.

Que encontro. Era demais para olhos humanos. A toda a criatura causara repelões de horror, mágoas de rasgarem o coração. Como estava Florinda!

Ao rolar – todos já sabiam, ela atirara-se do cimo daquela fabulosa massa pétrea – as vestes esfarripadas haviam-lhe dado, misericordiosamente, a compostura.

Mas todo o seu corpo, de estatuária sã e ondulosa, passou a um esfacelo, um caos, um delírio…

Os cabelos, em tempo rebrilhantes como a plumagem dos corvos, viam-se, entre torgas ressequidas, desnastrados, sem lustre e recamados de líquenes. A fronte mostrava, em todo o seu arco marmóreo e suave, riscas de sangue denegrido, de sangue que borbotasse dos escalavros profundos de uma / 446 / corda de espinhos. Os olhos, cujo resplendor tantos rapazes havia enleado, não passavam de um ponto turbado, a pupila a acenar  mortiça na íris e na córnea confundidas. O nariz, que tantas vezes pecara ao aspirar a fragrância voluptuosa dos cravos da oferenda dos pretendentes, definhava, sob a cartilagem esmagada e lilás, os últimos suspiros da olfacção. A boca, aquela boca raro escassa da cantiga estrepitosa, que era como o mais elevado salmo que ela poderia entoar à Vida, – parecia sacrificar, nos lábios rebentados, uma «prece suave e carinhosa à Morte». E os seios, que nunca deixaram de socar rijo, ao menor afago, na época de núbil desejada, ondeavam agora fracamente, mal repuxavam o casaco de chita pobre, pouco diziam da sua graciosidade palpitante…

Florinda é transportada assim, em padiola de estrumeiras: para casa dos amos.

Instantes depois de entrar no seu quarto – miserável buraco embutido, como um nicho sob o escadario de pedra da varanda – não tem mais vida.

O conselheiro, quando soube que estava a penetrar no terreiro uma padiola com aquela serva, não gostara nada, quisera até mandar pô-la de lá para fora, pois que ela, naquele estado, ia esmaecer o conjunto festivo que, desde manhã cedo, havia em sua casa pelo casamento de seu filho Armando com a morgada de Rendufinho. Porém, tolerara. Tolerara a pedido da senhora, uma santa alma que já se não lembrava, nem por sombra, do que lhe fizera a criada em meio do festim.

Dias adiante. Em casa da sr.ª Carolina Rendeira, aquela excelente pessoa que, louvado Deus, sabe de toda a vida alheia, dissecando-a sempre com langor a quem quiser escutá-la devotamente, a quem quiser ouvir estuar-lhe na língua a sua maldadezinha de serpe. Sofrendo dos olhos – que, entanto, enxergam mais que todos os da aldeia reunidos, – tem o inocente vício de atulhar passo a passo as narinas de simonte, com cujo destilado cor de açafrão costuma, por descuido, besuntar os mais ao estralejar o lenço.

Também, é este o seu único defeito: porque isto de se ocupar com o viver dos semelhantes e de fazer alguns patacos com um lenocínio recatado não o é, é simplesmente entretenimento, o pãozinho de cada dia, creiam, meus senhores. A sociedade que a procura é homogénea, não faz arredar deste ambiente: criadas invejosas, sempre a vomitarem intrigas de embate à Ermelinda, que é virgem lirial e não mente, e à Maria, que é casada e, de séria, não faz coro com elas; recoveiras de amores maltrapilhos, caminhar leve e falas malignas; mulherio de palheiro e baiuca, na tesa língua de trapos.

No momento só está, de fora, uma criada do conselheiro, a única por sinal que não ia muito à missa da Florinda, devido à sua beleza. É já madura, seca; e, pelas suas fanfarronices vingativas, presta-se a óptimo modelo de Erínia romana. Por fim, fraca observadora, quase tapada. A ver. Logo ao pisar a soleira, pergunta para o círculo do borralho, onde a dona do casebre se aquece: – Porque seria, ò sr.ª Carolina, que Florinda se atirou do escarpedo abaixo? E que sítio a delambida procurou para se matar! Cruzes! Só p'ra subir... Tinha que dar às pernas a bom dar e de esticar a língua como um cão danado!

A sr.ª Carolina, mostrando a fieira escabra / 447 / dos dentes com uma gargalhada lassa, nauseante, exibe a sua incredulidade matreira e o seu informe capcioso:

– Pois então, vossemecê, que foi parceira, não sabe? Ora a graça. Ora a santinha de pau carunchoso. Em todo o caso, ouça, que talvez eu saiba melhor. O que, a falar a verdade, me parece impossível... Florinda, a grande impostora, cuido que amava um rapazola muito conhecido. Eu digo «cuido», ao contrário de muitas, que diziam que ela amava loucamente, porque tenho cá minhas razões. Sim, não sei se me entende... Vai daí, como ele lhe prometesse (veja as minhas razões) mundos e fundos, – brincos de oiro, saias de veludo – entregou-se-lhe. O nome do guloso que trincou a primeira vez aquela cereja, quer saber, não é? Espante-se, minha linda: Armando Pinhão, filho do seu amo. É. Todos o viam muito sério, um trato de senhor com rei na barriga pr'òs servos, principalmente quando estava de namoro com aquela figurita de cera que desposou noutro dia; mas o certo é que ele era um namorador como os piores. Eu bem quis amanhar, sem nenhum interesse, o futuro daquela parva. – E, aproximando o mocho da interlocutora, à puridade, mão curvada ao canto da boca: – O africano de Vilar, rico como era, morria de amores por ela; porém a ingrata, afectando purezas, sacudiu-o, e ainda por cima se agoniou comigo, que lho havia apresentado. Sacudiu-o. E pouco depois eu sabia que andava com o fidalgote. Preferiu-o. Melhor! O pago deu-lho ele logo: abandonou-a com enfado, e riu-se ao depois da sua queda. E agora, então, a forte tola, vendo que ele se lhe ia de vez com o casamento, matou-se.

O ressentimento da sr.ª Carolina açulou-a à adulteração. Os motivos que impeliram Florinda até ao suicídio tiveram recortes mais puros, e o máximo fluiu ao sopro de um amor heróico e solidificou-se à têmpera de um hino de indulgência e passividade.

Armando Pinhão, após ausência longa, voltara à quinta havia dois anos. O pai, outras épocas remediado lavrador e tíbio político, mas um tudo-nada intelectual, com os seus requintes de artista, e hoje conselheiro, alta influência, moeda em sólidos bancos, terra feraz a espalmar-se por muitas léguas, tinha-o mandado para Coimbra, a fim de o matricular na Universidade logo que fizesse os preparatórios no Liceu.

Mas breve o manda regressar, pois o «bicho» dá só para cair frequentemente em patuscadas infrenes, com guitarradas até horas de alva, e para atirar pr'òs quintos os livros.

Depois fá-lo seguir para Lisboa, a ver se, com o trabalho, o emendará daquelas estroinices, cuja repercussão se fazia sentir com estrondo na terra aonde o grave conselheiro possuía parentes por todos os ângulos. O rapaz, ao tempo nos seus dezoito anos, principia a portar-se bem, por pouco com virtude de asceta, na casa comercial, de atacado, em que o arrumara um tio, grande capitalista, sumo carola. Tal regime claustral, da ordem do olímpico rei dos ladrões, difundido nos conselhos bentos do tartufo, não deixa contudo de lhe irritar os nervos; mas suporta-o alfim, resignadamente, visto não ter lá ninguém por si, nem receber um carinho compassivo do tecto, nem, ainda pior, ter dinheiro.

De certo tempo em diante, fizeram-lhe ordenado; e o pai, satisfeito, ciente do bonito comportamento do filho, passa a escrever-lhe amiúde, sempre com abraços e saudades de todos.

/ 448 / Aquilo conforta-o. É o renascimento do antigo fervor pela borga. E, passado tempo, diz ao pai, por carta lacrimosa e bem lançada, que estava muito crescido, homem feito. Por isso, e desde que tinha o mesmo numerário na casa, que mal lhe dava para umas gáspeas, necessitava de mais dinheiro.

O pedido era razoável: o papá estabeleceu-lhe mesada.

E as estúrdias do antigo estudante levaram, de roldão, o caixeiro a faltar ao serviço. O primeiro alarme reboou dos companheiros, elucidando aos patrões «que o sr. Armando não estava em casa do tio, doente, como eles cuidavam, e sim a laurear pelos teatros e conventilhos». Um dos sócios notificou ao tio. E este, as bochechas apipadas de cólera, foi logo procurá-lo.

Depois de espionar bairros e bairros, e plenamente exausto, encontrou-o às portas da cidade, em um trem aberto, enterrado no meio de duas moçoilas primaveris, belas rosas da Tentação nos seus vestidos e chapéus de escândalo. Mas a carruagem rodava, estrondejava, fugia por uma parelha ardente; e o tio só pôde brandir a sua bengala de cana queimada, em ameaça terrível, por entre a nuvem de poeira que os pégasos de aluguer levantavam, sarcasticamente, em turbilhão de simum.

O pai soube, e quis o bedelho da polícia; todavia, como único remédio, suspendeu a mesada ao borguista.

E ele, neste caso, – estava de ver, – volta ao balcão. Ia um molho de ossos, uma amarelência de papiros. Ainda assim, aguenta alguns meses na lide pesada.

Até que o pai... – sempre era pai – ao saber da derrocada do seu físico, fez recolhê-lo à quinta. Desejava tufar-lhe as pelancas, ocultar a carcaça, e também – o principal – incutir-lhe juízo, juízo às mancheias.

Os primeiros dias foram de seca, palavras ásperas, chicoteantes, do pai, lágrimas demoradas da mamã, olhares esconsos dos parentes. Mas Armando melhorou de cara, a pele retesou e coloriu-se. E daí, deliciou-se com «bons dias» contentadores do conselheiro, carícias fugidias da progenitora e perguntas simpáticas, sobre a sua saúde, da infindável parentela.

Por fim, ei-lo querido de todos; e o papá, para mostrar que tudo estava esquecido, disse-lhe que queria fazê-lo homem. E, como prova de oiro, batendo-lhe na omoplata:

– Conheces a casa de Rendufinho? Rica. Muito rica. Tem as suas celebradas trezentas e sessenta e cinco janelas…

O sr. conselheiro, alheio por instantes a Lavoura e Política, refere-se em seguida, com os seus arrebiques de arte de tempo longínquo, ao grande luxo interior. Que de quadros de alto valor! Os entendidos, por detrás dos seus óculos maravilhados, citavam até – seria crível? – um pequenino Poter – um Crepúsculo com o seu moinho de vento cravando as pás no céu triste, e adejando, ronceiramente, por sobre a alfombra do prado a perder de vista, – e um motivo místico, mágico de colorido, de Góia. Mas o que lá saltava mais aos olhos do comum dos visitantes, como ele, conselheiro Esteves Pinhão, se julgava, era a disposição encantadora de tudo. Aquilo vibrava como uma flor escarlate em meio de uma moita verdejante. E, então, as jarras, de colo elegante, com que doçura não ofereciam, ao de cima de toalhinhas rendilhadas, os seus ramos eternamente aureolados de viço e perfume!

E conclui:

– Sabes a quem se deve tudo aquilo, toda aquela orquestração da Estética? À Georgina, filha mais velha do sr. Morgado, jóia sem preço do relicário dos de Rendufinho. Ah! Como é ditoso aquele pai... e como o será o rapaz que conseguir a mão da morgadinha! Monta e vai até lá, Armando. Entre as duas famílias há um elo de amizade que as prende desde era avoenga.

/  449 / Armando foi.

A morgadinha, muito loira, olhos transparentes como porcelana, cintura quebradiça e voz modelada em gorjeios – fê-lo estremecer. E ao voltar pela estrada velha toda enfileirada de carvalheiras de um verde ridente de esperança, em cujos galhos colossais se diluía uma peneirada de sol criador – devotou-lhe todos os sentidos. Como era extraordinária a detença de uma rapariga de tão alta estirpe da Beleza em uma aldeola cujos de mais habitantes eram pategos de grande crosta e fidalgotes preciosos tresandando a códices e crónicas de soporíferos freires!

O conselheiro, quando o vê entrar no solar, uma doçura apreensiva nos olhos, prediz que «Amor tece a sua rede em torno daquele coração».

E afectando:

– Então, gostaste? Belo, hein? Excelente fidalguia.

Não tardou o ajuste do casamento. O bodo, a pedido de Esteves Pinhão, seria na sua quinta, porque, nessa hora, já estaria pronta a capelita que ia mandar construir por encomenda fervorosa da mística esposa.

Entrementes, Armando vai desencadeando festivamente os dias, ou em Rendufinho, em adoração à noiva, ou na sua terra, em batidas aos coelhos, pelos montes trescalantes de joina e rosmano, sempre seguido de um moço com furão e de uma canzoada atassalhadora.

Por certa manhã gloriosa de luz e azul, em que de toda a tela rústica parecia irradiarem graças paradisíacas, ele dirige-se até ao monte do outro lado do rio: porque os montes de cá já estão sem peça, passados e repassados todos os seus estevais, farejadas todas as suas luras.

Antes da ponte, da vereda que desce em torcicolos esburacados, enxerga um listrão de lavadeiras nas pedras do rio. Cantam; e os ouvidos do caçador deliciam-se, sentem bela inspiração nos versos e na música, bom cristal nas vozes.

Nisto, ao passar a ponte:

– Bons dias, senhor fidalgo! Saúdam, uníssonas, as lavadeiras. – E uma, já fora do concerto, acrescenta: – Seja feliz na caçada, senhor! Que esse moço não possa carregar, de tantas, as lebres e as perdizes!

Armando, ao cor responder ao magote e agradecer a que, tal a sua gentileza, lhe fazia derrear o empregado – aliás um latagão de respeito, – notou que o rosto desta era formoso, muito iluminado pelos olhos, muito rico sob o diadema dos cabelos.

E, da outra banda, encosta à riba, e pergunta ao machacaz quem era aquela prenda.

Que era antes uma alvéloa, das mais adornadas de encantos, muito estimada, vinda de terras de Trás-os-Montes, e que estava talhada para servir, lá para casa do senhor fidalgo.

Uma semana depois Florinda é criada do conselheiro Pinhão. Armando, extravasado de contentamento, trata-a com suavidade, joga-lhe ditos enleantes como liames de bruxo, fala-lhe também de amor.

Ela, coitada, filha das serras, ouve-o aturdida e acha-o sincero; olha-o humildemente e acha-o escorreito, muito belo, semelhante – e não dizia de mais, agora! – aos cavaleiros das lendas que lhe contara, em tamanina, uma tiasita da sua terra...

E uma noite, apesar de tempestuosa, – vento a derrubar árvores, chuva em caudais, trovão sacudindo casas, – a serva, consoante havia tratado de dia, lá foi a um palheiro retirado, perto do campo, a anular-se no seio de oliveiras em fruto. Chega a escorrer água, o coração batendo.

E, ao entrar, como a rogar perdão:

– Estou toda alagada, p'r’àqui um trapo que o vai sujar… Melhor será voltar já, meu senhor!

– Não! Não voltes... – regougou o sedutor. E logo os pulsos dele, como engates de ferro, a arrebataram.

Durante meses o filho do conselheiro andou satisfeito. Ao passo que deixa em penumbra a imagem da morgadinha. Mas vem o enfado; e ele descobre que a serrana é [SERÕES N.º 60 - FL. 4] / 450 / uma labrega, curvas sem cadência, frase aspérrima e inundada de XX. Tempo em que a escultura de Georgina esplende na sonoridade das suas formas intangíveis, soletradas ao de través do seu vestido justo, de casimira leve, na galanteria do seu trato, e na magia do seu olhar.

Nem por isso Florinda deixa a casa onde serve: não se julga, a pobre, com forças de se furtar de ver Armando, de lhe ouvir a voz, de o adorar, feito um deus, todos os dias, de o bajular com sentido dele lhe dispensar uma palavra menos brutal, que, para o seu coração tresloucado, é prenúncio do antigo amor a reviver.

Quiseram mandá-la embora, por via de fazer agora tudo desordenadamente, sem asseio, e de trajar com sordidez. O sr. Armandinho chegara até a queixar-se à mamã que «aquilo não tinha jeito, qualquer hora o estafermo se apresentaria a servir à mesa mais farruscada que os carvoeiros»! Mas a senhora disse que talvez se emendasse, que a deixassem por piedade mais algum tempo.

Veio o dia do casamento de Armando. A senhora, na véspera, chamou Florinda e recomendou-lhe, maternalmente, que se asseasse bem, enfiasse a saia de pano que lhe dera na semana passada, e que, ao servir, fosse cuidadosa. Ela prometeu, aparência muito tranquila, obediente. Mas assim que recolheu ao quarto e considerou, de fugida, nesse casamento, cuja noiva lhe roubava para sempre Armando, rebolou-se no leito, escabujou, arrancou manadas de cabelo, lacerou a cara; e só ao ver a frouxidão de todos os membros torturados, pelo abrir da madrugada, é que adormeceu.

Às sete, porém, soou uma estropiada frenética na porta e teve de se levantar. Antes de sair foi olhar-se ao pequeno espelho, de casca de estanho, para ver que tal tinha o rosto. Tinha-o muito esgadanhado, tinha... De sorte que deseja fugir, – fugir para onde ninguém a veja, com vergonha de se mostrar. Mas o coração pede-lhe, contrito, novo sacrifício e ela, submissa, apresenta-se para servir, para ser útil a Armando.

Ia um movimento sem tréguas, ensurdecedor, por toda a quinta. O terreiro, do espaço de um campo, estava coalhado de povoléu do lugar e de Rendufinho. A espaços estrugiam, em crescendo de delírio, vivas aos nubentes; e a cachopa da garrida, de mãos dadas, em grande roda, tripudiava e dançava como em um arraial.

A cerimónia estava marcada para as dez; depois haveria o almoço. Florinda, até esse momento, esteve por duas vezes a querer fugir: ao deparar com a noiva, que nunca tinha visto, e cuja estátua lhe causou, de súbito, o efeito de enfrentar um anjo soberanamente belo, vitorioso e sarcástico; e quando os noivos voltaram, muito felizes, muito risonhos, casados da capela. Depois, pelo começo do festim, a pobre levou safanões da governanta por entornar terrinas e deixar cair pratos. Por último a dona pô-la de lá para fora, porque «o estafermo, como se tivesse ensandecido, deu para estacar defronte do Armando e da Georgina, a olhá-los, a querer beber-lhes as palavras»!

Então, desrespeitada à face de todos e – era a máxima dor! – expulsa do serviço diante dos noivos, não aguentou, não teve alma para sofrer mais aquele inferno: desceu ao terreiro, fundiu-se no cadinho da arraia estrepitante e, tal o veio de oiro escondido pelo escumalho, desapareceu para reaparecer, por fim, ao largo das searas tisnadas.

Seria meio dia. Tempo toldado. Natureza morta. O sol, raro desamortalhado de grandes nuvens, pouco lobrigava os estendais nevados da Cabreira.

/ 451 / Florinda, a soluçar, segue pelo carreiro da fonte do Passal: tomando este rumo, tem desejos de encontrar, na bica, uma alma bondosa que a console e queira ouvir. Mas, espera que espera, sentada nas lajes frias, e não lhe aparece ninguém.

Como era infeliz! – soluçou. Estava tudo perdido; não tinha uma única esperança a que se pudesse apegar. Esperanças... E ela que as tivera tão viçosas, prometedoras como milharais carregadinhos de pendões! E todas, todas mais desfeitas que o pó das estradas muito batidas! Ah! Mas a mais cara dessas esperanças é que lhe custara, é que não queria desafeiçoar-se-lhe, fugir. Era esta.

Muitas ocasiões Armando lhe prometera, pela doidice de possuir a sua carne a escaldar de volúpia, que calcaria aos pés a vontade paterna e fugiriam depois ambos, para longe, casando na primeira paróquia. Que felicidade, senhor Deus!...

E, resignada, o mandil a colher lágrimas: «Mas que pretensão a minha! Então ele, aquele rapaz bonito, que vi há pouco brilhar entre todos que estavam à mesa, lá me poderia q'rer?! Que cegueira. Ele, só mesmo pr'à outra, a morgadinha... Aquela senhora tão pura no seu vestido com flores de laranjeira, tão rica nas suas jóias, tão branda, tão linda... Como a vi no bodo! Eu podia-o lá merecer!...

Dizei-me, ó águas da fonte, ó lajes e árvores; eu, eu o que era p'ra ter tal ventura?! Uma mulher perdida, uma reles criada, um escanzelo sujo!...»

De repente, porém, animada por uma coluna de fogo vivificador, ergue-se e, mãos em garra, olhos túmidos de raiva: «Oh! Mas, antes, embora não tivesse vestidos caros e jóias ricas, eu era cândida, tinha tanta ou mais beleza que ela, era alegre, tinha o sossego do coração! E quem me roubou tudo isso? Aquele perjuro. Aquele corvo! Mas assim eu vá p'r'ó céu – hei de vingar-me !»

Senta-se de novo. Vai-se-lhe do rosto a coloração do ódio. Estremece o seu ventre com um empino do filho... Embranquece. Aterroriza-se supersticiosamente. E, pejada de lágrimas, desmancha aquela jura, pede perdão infantil, desvairadamente, ao filho do seu pecado, perdão porque desejou ensanguentar o lar do pai dele... Desse filho que tem nas entranhas e que não chegara a ver a luz do mundo...

Momentos após, fraca de artelhos, mas firme, mentalmente, em certo propósito, toma para a devesa de Donim.

Era tarde. A véspera não demoraria com a sua temperatura arrefecente, congeladora do sangue mais moço.

Os trabalhadores dos campos recolhiam ao casalejo, satisfeitos, a garganta a molhar-se-lhes em canções a Pã e ao amor.

Florinda, apesar de agora mesmo deixar a chã das searas, já lá vai acima, pela quebrada que contorna, à direita, o penhasco. E ei-la no coruto. Mas como chegava cansada!

Que importava, se tinha aos olhos o céu que iria receber e apagar para sempre o seu sofrimento, que calaria aquele coração que tão loucamente amava? Oh! E era tão enleante a paisagem que se estendia, Ia baixo, até aos mares! Certo, / 452 / significava o Éden, a querer atraí-la, arrepanhá-la, acenando-lhe com toda a evocação das suas cores, todo o concerto dos seus tons.

E Florinda olhando para os lados, socalcos de montanhas rugidoras, – mal as fustigue o vento, – sente uma serenidade primaveril em todas as coisas, na pedra bronca, no solo cascalhento, na esteva bravia; sente que tudo bendiz o seu intento. Olha para o Ocaso e vê, na sua franja de ametista, a cor que sagrará as últimas saudades que enviar à Terra. Ajoelha agora, diz uma oração férvida à Imaculada. E, ofertado o seu holocausto final, rola pela penedia tremenda, rola sem gemidos, insensivelmente, até baquear em baixo, no torgal da devesa do sr. Donim.

Rio de Janeiro.

COSTA MACEDO

 

01-01-2021