UANDO passou a tumba pela quelha da
Hera, atalho tristonho do cemitério, quase todos os serviçais da quinta
subiram ao muro e, curvados, jungidos em um renque de troncos
soluçantes, deram o adeus derradeiro a Florinda, a boa cachopa, a,
outrora, mais radiosa, fúlgida serva do conselheiro Esteves Pinhão.
Mas,
olhem este infortúnio: ninguém do seu sangue a acompanhara! Todos
repararam. De resto, natural, porque a única pessoa que a defunta
deixava no Mundo era sua Mãe e essa, muito doente, a engelhar, feita
decrépita, embora não arrostasse com mais de quatro dezenas de outubros,
– estava de todo distante, para além das cordilheiras abruptas, na
margem do seu nostálgico corgo. Em todo o caso, – ai! Sempre era um
consolo, – muitas criaturas alheias o fizeram e, olhos marejados de
lágrimas, coração opresso, lhe levaram ramos de amarantos e de goivos ao
coval. Outras, também, que não puderam ir, desfiaram à noite os rosários
por sua alma, em uma saudade viva, mortificadora.
Florinda deixava, como nenhuma, gratidão verdadeira no íntimo dos
pobres, dali e de fora, pela broa que lhes dera sempre, pelo muito que
lhes havia feito em mal próprio. E, depois, ficava a falha da sua antiga
alegria, – a sua alegria, sugestiva e cantante, dissipadora de ressaibos
e angústias. Era de vê-la então. Era de ouvi-la, ainda melhor, ao ela
reparar no franzido dolente do rosto de alguma das suas muitas amigas:
«Menina! A vida não vale amargores. E a pessoa que os tem, que os
procura, não sabe gozar, é tola!» E, rebentando-se-lhe a alacridade em
casquinada intérmina, casquinada capaz de desmanchar os mais
anquilosados misantropos, agarrava a desgostosa pela cintura e fazia-a
rodopiar até lhe ouvir, de permeio, a ditos contrafeitos de zanga, as
mais cintilantes palavras de alegria.
Florinda, a sempre risonha, a sempre feliz, mal sabia entanto que o raio
lhe cairia em casa. E de que modo!...
A
principiar pelo encontro do seu corpo expirante debaixo da grande
penedia, da alta penedia talhada a pique impetuosamente, sobre a devesa
do sr. Donim.
Que
encontro. Era demais para olhos humanos. A toda a criatura causara
repelões de horror, mágoas de rasgarem o coração. Como estava Florinda!
Ao
rolar – todos já sabiam, ela atirara-se do cimo daquela fabulosa massa
pétrea – as vestes esfarripadas haviam-lhe dado, misericordiosamente, a
compostura.
Mas
todo o seu corpo, de estatuária sã e ondulosa, passou a um esfacelo, um
caos, um delírio…
Os
cabelos, em tempo rebrilhantes como a plumagem dos corvos, viam-se,
entre torgas ressequidas, desnastrados, sem lustre e recamados de
líquenes. A fronte mostrava, em todo o seu arco marmóreo e suave, riscas
de sangue denegrido, de sangue que borbotasse dos escalavros profundos
de uma
/ 446 /
corda de espinhos. Os olhos, cujo resplendor tantos rapazes havia
enleado, não passavam de um ponto turbado, a pupila a
acenar mortiça na
íris e na córnea confundidas. O nariz, que tantas vezes pecara ao
aspirar a fragrância voluptuosa dos cravos da oferenda dos pretendentes,
definhava, sob a cartilagem esmagada e lilás, os últimos suspiros da
olfacção. A boca, aquela boca raro escassa da cantiga estrepitosa, que
era como o mais elevado salmo que ela poderia entoar à Vida, – parecia
sacrificar, nos lábios rebentados, uma «prece suave e carinhosa à
Morte». E os seios, que nunca deixaram de socar rijo, ao menor afago, na
época de núbil desejada, ondeavam agora fracamente, mal repuxavam o
casaco de chita pobre, pouco diziam da sua graciosidade palpitante…
Florinda é transportada assim, em padiola de estrumeiras: para casa dos
amos.
Instantes depois de entrar no seu quarto – miserável buraco embutido,
como um nicho sob o escadario de pedra da varanda – não tem mais vida.
O
conselheiro, quando soube que estava a penetrar no terreiro uma padiola
com aquela serva, não gostara nada, quisera até mandar pô-la de lá para
fora, pois que ela, naquele estado, ia esmaecer o conjunto festivo que,
desde manhã cedo, havia em sua casa pelo casamento de seu filho Armando
com a morgada de Rendufinho. Porém, tolerara. Tolerara a pedido da
senhora, uma santa alma que já se não lembrava, nem por sombra, do que
lhe fizera a criada em meio do festim.
Dias
adiante. Em casa da sr.ª Carolina Rendeira, aquela excelente pessoa que,
louvado Deus, sabe de toda a vida alheia, dissecando-a sempre com langor
a quem quiser escutá-la devotamente, a quem quiser ouvir estuar-lhe na
língua a sua maldadezinha de serpe. Sofrendo dos olhos – que, entanto,
enxergam mais que todos os da aldeia reunidos, – tem o inocente vício de
atulhar passo a passo as narinas de simonte, com cujo destilado cor de
açafrão costuma, por descuido, besuntar os mais ao estralejar o lenço.
Também, é este o seu único defeito: porque isto de se ocupar com o viver
dos semelhantes e de fazer alguns patacos com um lenocínio recatado não
o é, é simplesmente entretenimento, o pãozinho de cada dia, creiam, meus
senhores. A sociedade que a procura é homogénea, não faz arredar deste
ambiente: criadas invejosas, sempre a vomitarem intrigas de embate à
Ermelinda, que é virgem lirial e não mente, e à Maria, que é casada e,
de séria, não faz coro com elas; recoveiras de amores maltrapilhos,
caminhar leve e falas malignas; mulherio de palheiro e baiuca, na tesa
língua de trapos.
No
momento só está, de fora, uma criada do conselheiro, a única por sinal
que não ia muito à missa da Florinda, devido à sua beleza. É já madura,
seca; e, pelas suas fanfarronices vingativas, presta-se a óptimo modelo
de Erínia romana. Por fim, fraca observadora, quase tapada. A ver. Logo
ao pisar a soleira, pergunta para o círculo do borralho, onde a dona do
casebre se aquece: – Porque seria, ò sr.ª Carolina, que Florinda se
atirou do escarpedo abaixo? E que sítio a delambida procurou para se
matar! Cruzes! Só p'ra subir... Tinha que dar às pernas a bom dar e de
esticar a língua como um cão danado!
A
sr.ª Carolina, mostrando a fieira escabra
/
447 / dos dentes com uma gargalhada lassa,
nauseante, exibe a sua incredulidade matreira e o seu informe capcioso:
–
Pois então, vossemecê, que foi parceira, não sabe? Ora a graça. Ora a
santinha de pau carunchoso. Em todo o caso, ouça, que talvez eu saiba
melhor. O que, a falar a verdade, me parece impossível... Florinda, a
grande impostora, cuido que amava um rapazola muito conhecido. Eu digo
«cuido», ao contrário de muitas, que diziam que ela amava loucamente,
porque tenho cá minhas razões. Sim, não sei se me entende... Vai daí,
como ele lhe prometesse (veja as minhas razões) mundos e fundos, –
brincos de oiro, saias de veludo – entregou-se-lhe. O nome do guloso que
trincou a primeira vez aquela cereja, quer saber, não é? Espante-se,
minha linda: Armando Pinhão, filho do seu amo. É. Todos o viam muito
sério, um trato de senhor com rei na barriga pr'òs servos,
principalmente quando estava de namoro com aquela figurita de cera que
desposou noutro dia; mas o certo é que ele era um namorador como os
piores. Eu bem quis amanhar, sem nenhum interesse, o futuro daquela
parva. – E, aproximando o mocho da interlocutora, à puridade, mão
curvada ao canto da boca: – O africano de Vilar, rico como era, morria
de amores por ela; porém a ingrata, afectando purezas, sacudiu-o, e
ainda por cima se agoniou comigo, que lho havia apresentado. Sacudiu-o.
E pouco depois eu sabia que andava com o fidalgote. Preferiu-o. Melhor!
O pago deu-lho ele logo: abandonou-a com enfado, e riu-se ao depois da
sua queda. E agora, então, a forte tola, vendo que ele se lhe ia de vez
com o casamento, matou-se.
O
ressentimento da sr.ª Carolina açulou-a à adulteração. Os motivos que
impeliram Florinda até ao suicídio tiveram recortes mais puros, e o
máximo fluiu ao sopro de um amor heróico e solidificou-se à têmpera de
um hino de indulgência e passividade.
Armando Pinhão, após ausência longa, voltara à quinta havia dois anos. O
pai, outras épocas remediado lavrador e tíbio político, mas um tudo-nada
intelectual, com os seus requintes de artista, e hoje conselheiro, alta
influência, moeda em sólidos bancos, terra feraz a espalmar-se por
muitas léguas, tinha-o mandado para Coimbra, a fim de o matricular na
Universidade logo que fizesse os preparatórios no Liceu.
Mas
breve o manda regressar, pois o «bicho» dá só para cair frequentemente
em patuscadas infrenes, com guitarradas até horas de alva, e para atirar
pr'òs quintos os livros.
Depois fá-lo seguir para Lisboa, a ver se, com o trabalho, o emendará
daquelas estroinices, cuja repercussão se fazia sentir com estrondo na
terra aonde o grave conselheiro possuía parentes por todos os ângulos. O
rapaz, ao tempo nos seus dezoito anos, principia a portar-se bem, por
pouco com virtude de asceta, na casa comercial, de atacado, em que o
arrumara um tio, grande capitalista, sumo carola. Tal regime claustral,
da ordem do olímpico rei dos ladrões, difundido nos conselhos bentos do
tartufo, não deixa contudo de lhe irritar os nervos; mas suporta-o
alfim, resignadamente, visto não ter lá ninguém por si, nem receber um
carinho compassivo do tecto, nem, ainda pior, ter dinheiro.
De
certo tempo em diante, fizeram-lhe ordenado; e o pai, satisfeito, ciente
do bonito comportamento do filho, passa a escrever-lhe amiúde, sempre
com abraços e saudades de todos.
/
448 / Aquilo conforta-o. É o renascimento
do antigo fervor pela borga. E, passado tempo, diz ao pai, por carta
lacrimosa e bem lançada, que estava muito crescido, homem feito. Por
isso, e desde que tinha o mesmo numerário na casa, que mal lhe dava para
umas gáspeas, necessitava de mais dinheiro.
O
pedido era razoável: o papá estabeleceu-lhe mesada.
E as
estúrdias do antigo estudante levaram, de roldão, o caixeiro a faltar ao
serviço. O primeiro alarme reboou dos companheiros, elucidando aos
patrões «que o sr. Armando não estava em casa do tio, doente, como eles
cuidavam, e sim a laurear pelos teatros e conventilhos». Um dos sócios
notificou ao tio. E este, as bochechas apipadas de cólera, foi logo
procurá-lo.
Depois de espionar bairros e bairros, e plenamente exausto, encontrou-o
às portas da cidade, em um trem aberto, enterrado no meio de duas
moçoilas primaveris, belas rosas da Tentação nos seus vestidos e chapéus
de escândalo. Mas a carruagem rodava, estrondejava, fugia por uma
parelha ardente; e o tio só pôde brandir a sua bengala de cana queimada,
em ameaça terrível, por entre a nuvem de poeira que os pégasos de
aluguer levantavam, sarcasticamente, em turbilhão de simum.
O pai
soube, e quis o bedelho da polícia; todavia, como único remédio,
suspendeu a mesada ao borguista.
E
ele, neste caso, – estava de ver, – volta ao balcão. Ia um molho de
ossos, uma amarelência de papiros. Ainda assim, aguenta alguns meses na
lide pesada.
Até
que o pai... – sempre era pai – ao saber da derrocada do seu físico, fez
recolhê-lo à quinta. Desejava tufar-lhe as pelancas, ocultar a carcaça,
e também – o principal – incutir-lhe juízo, juízo às mancheias.
Os
primeiros dias foram de seca, palavras ásperas, chicoteantes, do pai,
lágrimas demoradas da mamã, olhares esconsos dos parentes. Mas Armando
melhorou de cara, a pele retesou e coloriu-se. E daí, deliciou-se com
«bons dias» contentadores do conselheiro, carícias fugidias da
progenitora e perguntas simpáticas, sobre a sua saúde, da infindável
parentela.
Por
fim, ei-lo querido de todos; e o papá, para mostrar que tudo estava
esquecido, disse-lhe que queria fazê-lo homem. E, como prova de oiro,
batendo-lhe na omoplata:
–
Conheces a casa de Rendufinho? Rica. Muito rica. Tem as suas celebradas
trezentas e sessenta e cinco janelas…
O sr.
conselheiro, alheio por instantes a Lavoura e Política, refere-se em
seguida, com os seus arrebiques de arte de tempo longínquo, ao grande
luxo interior. Que de quadros de alto valor! Os entendidos, por detrás
dos seus óculos maravilhados, citavam até – seria crível? – um pequenino
Poter – um Crepúsculo com o seu moinho de vento cravando as pás no céu
triste, e adejando, ronceiramente, por sobre a alfombra do prado a
perder de vista, – e um motivo místico, mágico de colorido, de Góia. Mas
o que lá saltava mais aos olhos do comum dos visitantes, como ele,
conselheiro Esteves Pinhão, se julgava, era a disposição encantadora de
tudo. Aquilo vibrava como uma flor escarlate em meio de uma moita
verdejante. E, então, as jarras, de colo elegante, com que doçura não
ofereciam, ao de cima de toalhinhas rendilhadas, os seus ramos
eternamente aureolados de viço e perfume!
E
conclui:
–
Sabes a quem se deve tudo aquilo, toda aquela orquestração da Estética?
À Georgina, filha mais velha do sr. Morgado, jóia sem preço do relicário
dos de Rendufinho. Ah! Como é ditoso aquele pai... e como o será o rapaz
que conseguir a mão da morgadinha! Monta e vai até lá, Armando. Entre as
duas famílias há um elo de amizade que as prende desde era avoenga.
/
449 / Armando foi.
A
morgadinha, muito loira, olhos transparentes como porcelana, cintura
quebradiça e voz modelada em gorjeios – fê-lo estremecer. E ao voltar
pela estrada velha toda enfileirada de carvalheiras de um verde ridente
de esperança, em cujos galhos colossais se diluía uma peneirada de sol
criador – devotou-lhe todos os sentidos. Como era extraordinária a
detença de uma rapariga de tão alta estirpe da Beleza em uma aldeola
cujos de mais habitantes eram pategos de grande crosta e fidalgotes
preciosos tresandando a códices e crónicas de soporíferos freires!
O
conselheiro, quando o vê entrar no solar, uma doçura apreensiva nos
olhos, prediz que «Amor tece a sua rede em torno daquele coração».
E
afectando:
–
Então, gostaste? Belo, hein? Excelente fidalguia.
Não
tardou o ajuste do casamento. O bodo, a pedido de Esteves Pinhão, seria
na sua quinta, porque, nessa hora, já estaria pronta a capelita que ia
mandar construir por encomenda fervorosa da mística esposa.
Entrementes, Armando vai desencadeando festivamente os dias, ou em
Rendufinho, em adoração à noiva, ou na sua terra, em batidas aos
coelhos, pelos montes trescalantes de joina e rosmano, sempre seguido de
um moço com furão e de uma canzoada atassalhadora.
Por
certa manhã gloriosa de luz e azul, em que de toda a tela rústica
parecia irradiarem graças paradisíacas, ele dirige-se até ao monte do
outro lado do rio: porque os montes de cá já estão sem peça, passados e
repassados todos os seus estevais, farejadas todas as suas luras.
Antes
da ponte, da vereda que desce em torcicolos esburacados, enxerga um
listrão de lavadeiras nas pedras do rio. Cantam; e os ouvidos do caçador
deliciam-se, sentem bela inspiração nos versos e na música, bom cristal
nas vozes.
Nisto, ao passar a ponte:
–
Bons dias, senhor fidalgo! Saúdam, uníssonas, as lavadeiras. – E uma, já
fora do concerto, acrescenta: – Seja feliz na caçada, senhor! Que esse
moço não possa carregar, de tantas, as lebres e as perdizes!
Armando, ao cor responder ao magote e agradecer a que, tal a sua
gentileza, lhe fazia derrear o empregado – aliás um latagão de respeito,
– notou que o rosto desta era formoso, muito iluminado pelos olhos,
muito rico sob o diadema dos cabelos.
E, da
outra banda, encosta à riba, e pergunta ao machacaz quem era aquela
prenda.
Que
era antes uma alvéloa, das mais adornadas de encantos, muito estimada,
vinda de terras de Trás-os-Montes, e que estava talhada para servir, lá
para casa do senhor fidalgo.
Uma
semana depois Florinda é criada do conselheiro Pinhão. Armando,
extravasado de contentamento, trata-a com suavidade, joga-lhe ditos
enleantes como liames de bruxo, fala-lhe também de amor.
Ela,
coitada, filha das serras, ouve-o aturdida e acha-o sincero; olha-o
humildemente e acha-o escorreito, muito belo, semelhante – e não dizia
de mais, agora! – aos cavaleiros das lendas que lhe contara, em
tamanina, uma tiasita da sua terra...
E uma
noite, apesar de tempestuosa, – vento a derrubar árvores, chuva em
caudais, trovão sacudindo casas, – a serva, consoante havia tratado de
dia, lá foi a um palheiro retirado, perto do campo, a anular-se no seio
de oliveiras em fruto. Chega a escorrer água, o coração batendo.
E, ao
entrar, como a rogar perdão:
–
Estou toda alagada, p'r’àqui um trapo que o vai sujar… Melhor será
voltar já, meu senhor!
–
Não! Não voltes... – regougou o sedutor. E logo os pulsos dele, como
engates de ferro, a arrebataram.
Durante meses o filho do conselheiro andou satisfeito. Ao passo que
deixa em penumbra a imagem da morgadinha. Mas vem o enfado; e ele
descobre que a serrana é [SERÕES N.º 60 - FL. 4]
/ 450 /
uma labrega, curvas sem cadência, frase aspérrima e inundada de XX.
Tempo em que a escultura de Georgina esplende na sonoridade das suas
formas intangíveis, soletradas ao de través do seu vestido justo, de
casimira leve, na galanteria do seu trato, e na magia do seu olhar.
Nem
por isso Florinda deixa a casa onde serve: não se julga, a pobre, com
forças de se furtar de ver Armando, de lhe ouvir a voz, de o adorar,
feito um deus, todos os dias, de o bajular com sentido dele lhe
dispensar uma palavra menos brutal, que, para o seu coração tresloucado,
é prenúncio do antigo amor a reviver.
Quiseram mandá-la embora, por via de fazer agora tudo desordenadamente,
sem asseio, e de trajar com sordidez. O sr. Armandinho chegara até a
queixar-se à mamã que «aquilo não tinha jeito, qualquer hora o estafermo
se apresentaria a servir à mesa mais farruscada que os carvoeiros»! Mas
a senhora disse que talvez se emendasse, que a deixassem por piedade
mais algum tempo.
Veio
o dia do casamento de Armando. A senhora, na véspera, chamou Florinda e
recomendou-lhe, maternalmente, que se asseasse bem, enfiasse a saia de
pano que lhe dera na semana passada, e que, ao servir, fosse cuidadosa.
Ela prometeu, aparência muito tranquila, obediente. Mas assim que
recolheu ao quarto e considerou, de fugida, nesse casamento, cuja noiva
lhe roubava para sempre Armando, rebolou-se no leito, escabujou,
arrancou manadas de cabelo, lacerou a cara; e só ao ver a frouxidão de
todos os membros torturados, pelo abrir da madrugada, é que adormeceu.
Às
sete, porém, soou uma estropiada frenética na porta e teve de se
levantar. Antes de sair foi olhar-se ao pequeno espelho, de casca de
estanho, para ver que tal tinha o rosto. Tinha-o muito esgadanhado,
tinha... De sorte que deseja fugir, – fugir para onde ninguém a veja,
com vergonha de se mostrar. Mas o coração pede-lhe, contrito, novo
sacrifício e ela, submissa, apresenta-se para servir, para ser útil a
Armando.
Ia um
movimento sem tréguas, ensurdecedor, por toda a quinta. O terreiro, do
espaço de um campo, estava coalhado de povoléu do lugar e de Rendufinho.
A espaços estrugiam, em crescendo de delírio, vivas aos nubentes; e a
cachopa da garrida, de mãos dadas, em grande roda, tripudiava e dançava
como em um arraial.
A
cerimónia estava marcada para as dez; depois haveria o almoço. Florinda,
até esse momento, esteve por duas vezes a querer fugir: ao deparar com a
noiva, que nunca tinha visto, e cuja estátua lhe causou, de súbito, o
efeito de enfrentar um anjo soberanamente belo, vitorioso e sarcástico;
e quando os noivos voltaram, muito felizes, muito risonhos, casados da
capela. Depois, pelo começo do festim, a pobre levou safanões da
governanta por entornar terrinas e deixar cair pratos. Por último a dona
pô-la de lá para fora, porque «o estafermo, como se tivesse ensandecido,
deu para estacar defronte do Armando e da Georgina, a olhá-los, a querer
beber-lhes as palavras»!
Então, desrespeitada à face de todos e – era a máxima dor! – expulsa do
serviço diante dos noivos, não aguentou, não teve alma para sofrer mais
aquele inferno: desceu ao terreiro, fundiu-se no cadinho da arraia
estrepitante e, tal o veio de oiro escondido pelo escumalho, desapareceu
para reaparecer, por fim, ao largo das searas tisnadas.
Seria
meio dia. Tempo toldado. Natureza morta. O sol, raro desamortalhado de
grandes nuvens, pouco lobrigava os estendais nevados da Cabreira.
/ 451 / Florinda, a soluçar, segue pelo
carreiro da fonte do Passal: tomando este rumo, tem desejos de
encontrar, na bica, uma alma bondosa que a console e queira ouvir. Mas,
espera que espera, sentada nas lajes frias, e não lhe aparece ninguém.
Como
era infeliz! – soluçou. Estava tudo perdido; não tinha uma única
esperança a que se pudesse apegar. Esperanças... E ela que as tivera tão
viçosas, prometedoras como milharais carregadinhos de pendões! E todas,
todas mais desfeitas que o pó das estradas muito batidas! Ah! Mas a mais
cara dessas esperanças é que lhe custara, é que não queria
desafeiçoar-se-lhe, fugir. Era esta.
Muitas ocasiões Armando lhe prometera, pela doidice de possuir a sua
carne a escaldar de volúpia, que calcaria aos pés a vontade paterna e
fugiriam depois ambos, para longe, casando na primeira paróquia. Que
felicidade, senhor Deus!...
E,
resignada, o mandil a colher lágrimas: «Mas que pretensão a minha! Então
ele, aquele rapaz bonito, que vi há pouco brilhar entre todos que
estavam à mesa, lá me poderia q'rer?! Que cegueira. Ele, só mesmo pr'à
outra, a morgadinha... Aquela senhora tão pura no seu vestido com flores
de laranjeira, tão rica nas suas jóias, tão branda, tão linda... Como a
vi no bodo! Eu podia-o lá merecer!...
Dizei-me, ó águas da fonte, ó lajes e árvores; eu, eu o que era p'ra ter
tal ventura?! Uma mulher perdida, uma reles criada, um escanzelo
sujo!...»
De
repente, porém, animada por uma coluna de fogo vivificador, ergue-se e,
mãos em garra, olhos túmidos de raiva: «Oh! Mas, antes, embora não
tivesse vestidos caros e jóias ricas, eu era cândida, tinha tanta ou
mais beleza que ela, era alegre, tinha o sossego do coração! E quem me
roubou tudo isso? Aquele perjuro. Aquele corvo! Mas assim eu vá p'r'ó
céu – hei de vingar-me !»
Senta-se de novo. Vai-se-lhe do rosto a coloração do ódio. Estremece o
seu ventre com um empino do filho... Embranquece. Aterroriza-se
supersticiosamente. E, pejada de lágrimas, desmancha aquela jura, pede
perdão infantil, desvairadamente, ao filho do seu pecado, perdão porque
desejou ensanguentar o lar do pai dele... Desse filho que tem nas
entranhas e que não chegara a ver a luz do mundo...
Momentos após, fraca de artelhos, mas firme, mentalmente, em certo
propósito, toma para a devesa de Donim.
Era
tarde. A véspera não demoraria com a sua temperatura arrefecente,
congeladora do sangue mais moço.
Os
trabalhadores dos campos recolhiam ao casalejo, satisfeitos, a garganta
a molhar-se-lhes em canções a Pã e ao amor.
Florinda, apesar de agora mesmo deixar a chã das searas, já lá vai
acima, pela quebrada que contorna, à direita, o penhasco. E ei-la no
coruto. Mas como chegava cansada!
Que
importava, se tinha aos olhos o céu que iria receber e apagar para
sempre o seu sofrimento, que calaria aquele coração que tão loucamente
amava? Oh! E era tão enleante a paisagem que se estendia, Ia baixo, até
aos mares! Certo,
/ 452 /
significava o Éden, a querer atraí-la, arrepanhá-la, acenando-lhe com
toda a evocação das suas cores, todo o concerto dos seus tons.
E
Florinda olhando para os lados, socalcos de montanhas rugidoras, – mal
as fustigue o vento, – sente uma serenidade primaveril em todas as
coisas, na pedra bronca, no solo cascalhento, na esteva bravia; sente
que tudo bendiz o seu intento. Olha para o Ocaso e vê, na sua franja de
ametista, a cor que sagrará as últimas saudades que enviar à Terra.
Ajoelha agora, diz uma oração férvida à Imaculada. E, ofertado o seu
holocausto final, rola pela penedia tremenda, rola sem gemidos,
insensivelmente, até baquear em baixo, no torgal da devesa do sr. Donim.
Rio
de Janeiro.
COSTA
MACEDO