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SOL escoava-se por entre os telhados vizinhos e uns raiozitos pálidos procuravam, vagabundos, levar um pouco de luz a um quarto num terceiro andar. Era um típico escritório londrino, tendo por único ornamento as flores cor-de-rosa que se espalhavam no papel da parede, desenhadas por mãos de um génio desconhecido. A pedra do fogão sustentava um grande número de livros de comércio. Caixas pretas de folha forravam os cantos. As mesas e secretarias estavam cheias de maços e maços de papeis, no meio dos quais se erguia o telefone como um farol em miniatura.

Quem estava no quarto era tão pouco atraente como este. Havia tempo que esse sujeito estava assentado a secretaria, preocupado e sombrio. Apesar de tudo quanto tinha conseguido João Chubb não se impunha. O seu pequeno bigode, os seus raros cabelos davam-lhe um ar humilde e inofensivo que a sua palidez, os ombros curvados pela vida sedentária completavam. Um observador casual podia não ver a força e decisão que se lia na fronte e no queixo. Ninguém subia, como ele subira de negociante de louça a retalho, a altiva posição de um príncipe do comércio, administrando fábricas, sem essa qualidade.

Neste momento em que João Chubb meditava taciturno, havia um certo apertar de lábios que denotava decisão. Tinha o habito de levar a cabo as suas ambições por mais impossíveis que parecessem, contudo há coisas que estão fora do alcance do homem mais enérgico, e uma delas, é a simpatia de uma rapariga.

Na sua mocidade trabalhosa, João não tinha / 411 / tido tempo para romances. Talvez f6sse essa a razão porque João Chubb na sua idade madura se rendera tão extraordinária e rapidamente. Entre os seus livros de contas e ele, tinha-se metido um rosto de mulher e para procurar possuí-lo, tinha deliberadamente deixado a sua província, e posto de lado os seus deveres de cidadão.

Fizera as malas, levando para Londres o seu coração apaixonado, para principiar a subir a escada do amor desde o primeiro degrau. E era bem alta a escada que separava o vereador municipal João Chubb, da muito nobre fidalga Filis Chisholm, tão alta, como é grande a distancia que separa a Câmara Municipal de Birmingham, do foyer da Ópera do Convent Garden, onde pela primeira vez esse rosto puro e infantil cercado de cabelos loiros, deslumbrara o seu olhar. Soubera quem ela era antes de sair da Opera, e, apesar disso, não desistira do seu intento. Homens tão desastrados e ignorantes nos usos da sociedade como ele, tinham conseguido introduzir-se na atmosfera rarefeita, onde Miss Filis e suas iguais viviam. Com inalterável resolução João começou a caminhar também.

Um ano de incessante trabalho tinha-o levado gradualmente até ao alvo dos seus desejos. Depois de ter perseguido Miss Chisholm com uma insistência que não reconhecia desfeitas, conseguira encontrá-la na festa de caridade a mais cara da estação e por meio das suas prodigalidades ganhara as simpatias na barraca que tinha em Miss Chisholm o seu mais formoso ornamento. Os sorrisos que aquela tarde lhe tinha granjeado animaram-no a aproximar-se dela; e à noite, quando se juntaram numa outra festa igualmente imponente, conseguiu, com infinita diplomacia, ter um tête-à-tête com Filis e aproveitou a ocasião para se declarar. A recusa formal de Miss Chisholm tinha sido acompanhada de um certo desprezo que ainda neste momento, ao recordar-se disso, lhe agitava o sangue nas veias.

E apesar de tudo João Chubb não tinha em nada desistido do seu propósito. Miss Chisholm era pobre para a sociedade em que vivia e por enquanto não pertencia a nenhum outro homem; e por isso João Chubb assentado a sua secretaria, ainda fazia castelos no ar. Desde o lunch que não trabalhava.

Mostrou a importância que dava aos seus sonhos pela irritação que manifestou quando ouviu abrir a porta. Voltou-se com uma severa repreensão nos lábios, reprimenda que morreu, sem ser ouvida, enquanto olhava espavorido para o cartão de visita que o empregado tinha posto sobre a secretária. Porque dera mais um passo para o seu alvo, mas um passo estonteador, um salto imenso. Tão inesperado e tão grande que se sentia quase fulminado. O bilhete era de Miss Chisholm!

– Disse-lhe que V. Ex.ª só recebia visitas a horas marcadas, mas essa senhora insistiu, dizendo que a receberia.

– Mande-a entrar.

O empregado saiu, Chubb ficou só tentando recuperar o sangue frio... Daí a um momento Miss Chisholm estaria ali! Não só estariam os dois sozinhos – um facto bastante significativo – mas tinha sido ela que o procurara. Tinha deixado os parques floridos e as praças luxuosas e aventurara-se na sórdida City, no seu eterno rugido e no seu tráfico! Tinha-o procurado a ele, João Chubb; esse intangível pirilampo que perseguira tão desesperadamente durante este ano de angústia. Readquirira já o sangue frio quando a porta se tornou a abrir e levantou-se para lhe falar com a sua impassibilidade de todos os dias. Miss Chisholm adiantou-se com um ar um pouco embaraçado apesar do seu natural sangue frio.

– Espero que não estivesse muito ocupado, Mr. Chubb. Não o demorarei. Era... Era... Precisava falar-lhe com urgência.

Chubb voltou para a secretária observando a sua subtil elegância com renovada admiração. Cada um dos seus movimentos era uma revelação; o menear da sua cabeça tão bem feita, a inclinação do seu chapéu, o indescritível alvejar de vaporosas rendas que se viam quando ela cruzava as pernas mostrando um pouco o pé bem calçado e tendo atravessado sobre os joelhos, o chapéu de sol, procurando parecer à vontade.

E o seu rosto esquisito como uma pétala de rosa brava, voltava-se para ele, mostrando a curva altiva do pescoço, o nariz pequeno e móbil, a boca docemente expressiva. Havia muitas raparigas tão bonitas como Filis Chisholm, algumas muito mais bonitas que ela, mil tão bem vestidas, mas, para João Chubb, bastavam os atributos / 412 / da sua classe para a separar e distinguir das outras mulheres.

Apesar da importância do seu negócio, Miss Chisholm não parecia ter pressa de o revelar. As mãos brincavam nervosamente com a sombrinha, com o olhar percorria o quarto como procurando um objecto que a distraísse.

– Como este quarto revela uma vida de trabalho! Tem a certeza que o não incomodo?

– Estou ao seu dispor, toda a tarde, se quiser.

– Oh! Não; tenho de me ir embora já, daqui a bocadinho.

As palavras saiam-lhe febrilmente, e estava muito corada. O peito arfava-lhe com evidente agitação. Sentia zumbidos nos ouvidos, um murmúrio monótono e constante que provinha, provavelmente, da dificuldade que tinha em respirar. Obrigou-se a olhar para o homem que lhe estava fronteiro e o seu aspecto banal tornava-lhe a tarefa mais fácil, mas mais odiosa. Se olhasse muito mais tempo para ele não o poderia fazer.

Tinha vencido o seu orgulho e os seus preconceitos a ponto de vir a este escritório. Agora que ali estava era absurdo hesitar. As delicadas feições tomavam uma expressão dura. Quando se está resolvido ao suicídio é melhor acabar com isso o mais depressa possível. Seus lábios secos pronunciaram as palavras:

– Na semana passada perguntou-me se queria casar consigo.

Estas palavras ecoaram no silêncio. Não podia olhar para aquele rosto sem expressão. Conservava os olhos meio cerrados. Agora que a sua tenção se revelara em toda a hedionda nudez, faltou-lhe a coragem.

Oh! Mas faltou-lhe de todo. Se ao menos um tremor mandasse um terramoto serviçal que a soterrasse, ou rebentasse um incêndio que a consumisse ali, no mesmo instante, antes que aquele provinciano tímido e boçal pudesse responder.

A natureza contudo é parcimoniosa com os seus cataclismos; nada aconteceu, a resposta que ela esperava, veio.

Levou tempo a vir, mas é preciso lembrar que as grandes alegrias paralisam tanto as faculdades como os grandes desgostos. Agora que Miss Chisholm estava ao seu alcance, parecia-lhe mais impossível de a obter do que naquela primeira noite em que a via tão longe, embora uns metros apenas separassem a sua cadeira de balcão do camarote onde ela estava. Mas ali era parte duma arquitectura social que se podia vencer, aqui era ela própria em todo o deslumbramento da sua beleza, infinitamente separada de toda a sordidez deste mundo.

Mas o facto de ali estar só podia ter uma significação; a mais estupenda de todas.

De alguma maneira precisava dele; precisava, duma maneira tão desesperada que não tivera tempo de o mandar chamar. Tinha vindo ela própria oferecer-se.

Houve jamais coisa assim tão fora do natural e das convenções!

– Sim, minha senhora, perguntei e pergunto-lhe ainda.

Por sua felicidade, a voz não revelou a grande comoção que sentia. Essa tranquilidade serenou a rapariga. Tratava a sua visita como um assunto público e comercial. Ela tinha de a considerar da mesma maneira.

– E eu venho dizer-lhe que sim.

Miss Chisholm não tinha para a auxiliar tanta força de vontade como Chubb. E mau grado seu, titubeou. Mas... as palavras tinham sido ditas.

Houve uma pequena, mas terrível pausa.

Nos olhos desse homem brilhara uma chama e corara duma maneira ridícula. Apesar dos seus cabelos brancos, era um homem de imaginação e estava realizando o que significavam aquelas palavras. O seu instinto contudo era muito fino e sabia que não a devia assustar. Falou por intuição:

– Muito obrigado. Sabe quanto lhe serei sempre grato.

A rapariga estava em pé. O vestido flutuava-lhe em volta como um véu diáfano. Um chapéu de leves plumas ensombrava o dourado de seus cabelos e o rosto delicado estava pálido e resoluto neste momento.

Deitou a cabeça para traz num gesto súbito e disse bruscamente o motivo da sua visita:

– Se eu estivesse numa aflição... O senhor, o senhor ajudar-me-ia, não é verdade?

Uma onda de compaixão invadiu esse coração / 413 / de homem, ela estava em terrível aflição, via-se isso escrito na intensidade do seu olhar. E viera ter com ele!

– Sem dúvida nenhuma.

– Sabia que me ajudaria. Preciso de cem libras, agora, neste momento.

Já adivinhara que era dinheiro que ela queria, mas podia-lho dar e nisso estava a sua glória, o seu triunfo. Viera ter com ele no seu desespero, tinha vindo e tornaria a vir, certa sempre da sua generosidade, nenhum outro homem daria como ele dava.

Nunca João Chubb sentira, em toda a sua vida, tal orgulho nos seus milhões; porque hoje podiam-lhe comprar o desejo do seu coração; gastos assim, sem conto, extravagantemente, prodigamente, obter-lhe-iam com o tempo a gratidão dela, a sua absoluta dependência... Quem sabe! O seu amor, talvez...

Puxou para si o livro de cheques como um feiticeiro puxaria da sua varinha de condão. Viera buscar dinheiro e isso era a única coisa que lhe poderia dar – e com que abundância! Cem libras! Que pena! Era tão pouco! Era uma soma tão pequena.

– Pago ao portador.

– Um cheque não, não há tempo.

Este modo de falar atraiu-lhe a atenção, ficou com a pena suspensa no ar. Ela sentiu uma mudança, e falou com rapidez febril.

– Os bancos fecham às quatro, faltam só dez minutos. Não posso de modo nenhum chegar a tempo de o receber. É-me preciso dinheiro. Ouro, prata, muita prata, e algum cobre, não muito, mas algum, e uma ou duas notas de cinco libras, Parece-me que havia três.

Levou as mãos a cabeça, apertando-a, com um gesto louco, como procurando concentrar as recordações, e não viu a suspeita insinuar-se no olhar do homem que a observava. Que dívida tão esquisita era esta que ela queria pagar!

– Porque deseja dinheiro?

Filis perdia o sangue frio.

– Isso não importa.

A prudência que o tinha ajudado a ganhar os seus milhões manifestou-se, assim como a teimosia tão conhecida dos seus antagonistas.

– Desculpe-me, disse, importa-me tanto que não mando ao banco sem saber a razão.

– Será já tarde!

Os olhos da rapariga fixavam-se no relógio, o seu tique-taque parecia escarnecê-la. Cada pancada era mais um momento que a aproximava da vergonha! A frieza de Chubb, assentado na sua cadeira, com os olhos fitos nela, a expressão sombria e condenatória aumentava com a agitação da rapariga. Havia ali um erro e erro grave; lia-se medo nos olhos de Miss Chisholm.

– Já lhe disse que lho dava se me der a sua razão.

Quando se está entre o remédio amargo e a morte, não se hesita.

Miss Chisholm, muito pálida, disse pronunciando distintamente cada palavra.

– O comité do bazar reúne às cinco, e eu tenho de lho restituir.

Ainda bem estas palavras não tinham sido ditas, já o telefone trabalhava. Mr. Chubb dava as suas ordens e Miss Chisholm ouvia-as como em sonhos, tinha a consciência dum alívio infinito, sentindo-se contudo como que oprimida por insuportável horror. Tinha comprado esse alívio bem caro.

– Estará aqui em dez minutos.

Acordou percebendo que Chubb lhe falava, era preciso dizer alguma coisa, agradecer, explicar-se.

A sua voz não estava muito firme.

– Não sei como agradecer-lhe. Só soube hoje que seria discutido no comité. Ninguém me disse nada. Isto mostra o que valem os amigos, não é verdade? Ouvi-o por acaso no meu clube; é uma mulher que está fazendo tudo isto, já se vê. Não sei como fui assim tão tola. Não posso imaginar como o fiz.

Apertou as mãos num gesto de angústia.

Parecia ainda mais criança ali assentada, tão frágil na sua dispendiosa beleza. Tinha de se justificar mesmo para salvar o seu orgulho; não podia suportar a ideia de ser julgada por aquela criatura tão vulgar, que ali estava. Além disso era um alívio falar, enquanto falava, evitava pensar.

– Ganhou-me muito dinheiro ao bridge, tenho a certeza que faz trapaça, ninguém tem assim tanta sorte! Podia-lhe ter pago se ela tivesse tido a decência de esperar, mas é um perfeito demónio. Tem sempre tido ciúmes de mim por causa de Re... de meu primo. Pensou em envergonhar-me diante dele. Ai, como é / 414 / mesquinha! E está no comité do bazar, já lhe paguei, de modo que me não podia atacar por causa da dívida do jogo; e é esta a sua vingança. Ah, meu Deus, meu Deus! Como pude fazer semelhante coisa, como pude! Estava doida com certeza.

– Tirou cem libras?

A pobre rapariga empalideceu.

– Na... Não, isto é, são todos muito descuidados nos bazares. Não queria tirar. Tinha metido muito dinheiro no saquinho que trago à cintura e quando dei contas esqueci-me dele; só o achei quando cheguei a casa. Suponho que o devia ter mandado a Mrs. Coper – sei que o devia ter feito – mas essa mulher tinha-me tornado a escrever... O dinheiro estava ali em cima da mesa; eu já tinha dado as contas – Ninguém dissera nada – Oh! Porque é que Mrs. Coper na ocasião de dar as contas não havia de dizer que era pouco! Mas, não disse nada... Agradeceu-me. Ninguém teria suspeitado se não tivesse pago imediatamente a minha dívida. Fui uma parva!

– Disse que o comité do bazar reúne hoje; é para discutir esse assunto?

– Não. É uma reunião para receber as contas, mas sei que essa mulher vai levantar a questão. Ai, mas agora vou-lhe trocar as vasas; vou mandar o saco a Mrs. Coper dizendo que só hoje foi encontrado pela minha criada. Bendito seja Deus! Muito e muito obrigada, sr. Chubb. Se não mo tivesse dado...

Fechou os olhos e balançou-se ligeiramente, estremecendo.

– Mas deu-o, deu-o! Ninguém o saberá nunca. Como lhe estou grata! Cumprirei a minha palavra, direi a todos que sou sua noiva; se quiser pode mandar a notícia para os jornais. Viverei em Birmingham. Verá que não faltarei à minha palavra!

Mas o horror dessa vida era tão intenso e tão claro, que o homem menos sensível se sentiria magoado com aquela promessa, e Chubb era profundamente sensível.

Raro era, contudo, que qualquer manifestação disso se revelasse exteriormente. A natureza envolvera num invólucro tão rude, essa alma forte e honesta que mesmo agora, na incomensurável amargura que o invadia, a sua voz conservava-se banal e impassível.

– Há uma coisa que não posso compreender. V. Ex.ª mostra bem claramente a sua opinião a meu respeito – ou antes, o que sente por mim. Eu não lhe sou nada. Tem muitos amigos e amigos ricos, para quem cem libras é uma bagatela. A tia, com quem vive.

– Essa falaria.

De novo o rosto de Miss Chisholm empalideceu de terror só com essa ideia, e articulou com dificuldade estas palavras:

– Não tenho confiança nela.

A suspeita infame levantava a cabeça.

Nesse apelo que lhe era feito escondia-se alguma coisa. Quanto mais contemplava a sua beleza, mais realizava com amargura que devia haver centenares de homens na sua esfera – amigos íntimos – que se teriam considerado felizes por lhe emprestarem essa insignificante soma, porque preferira então imolar-se assim, vindo como suplicante junto dele, a quem desprezava e por quem sentia repulsa? A glória do seu triunfo desaparecia. Qualquer coisa lhe dizia que não era um triunfo, mas sim um escuro mistério que ele tinha de desvendar.

– Mas não havia outros, outros homens.

– Todos eles conhecem Rex.

Miss Chisholm tinha apenas vinte anos e a arte de enganar era-lhe ainda desconhecida. A vergonha da sua queda pesava sobre ela em ondas que submergiam a prudência. Só um pensamento a dominava. «É preciso que Rex não saiba». Esta era a razão que a trouxera ali àquele mundo tão distante, tão diferente do seu. Chubb levá-Ia-ia para longe, enterrá-Ia-ia no lodaçal duma monótona cidade de província, longe de todo o brilho da sua vida radiante, longe de todo o calor e de todo o amor e alegria, nos quais se tinha deleitado durante esses dois últimos anos. Mas isso era melhor que... Sentiu a cólera domina-la perante a estupidez desse homem que não compreendia quão inevitável o seu passo tinha sido. Pois ele não compreendia como estava afastado do seu mundo? Como era certo o enterrar-se com todas as suas faltas se casasse com ele? Já dissemos que Miss Chisholm não era versada na diplomacia. Era nova, e a mocidade poucas vezes reconhece que os outros também podem sentir; as suas próprias emoções / 415 / são tão empolgantes, o seu egoísmo tão absorvente.

A rapariga estava dominada pela vergonha, parecia-lhe que o mundo não continha senão essa tragédia. E aquele homem, que tinha de desempenhar um papel nela, estava estupidamente assentado sem compreender quanto era inevitável a crise.

– Ah! Não pode compreender!

E inconsciente no seu desgosto, deu um murro sobre a secretária, com a sua mãozinha fechada:

– O senhor não está no nosso mundo. Não nos conhece, veio de Birmingham! Decerto que tenho amigos que mo teriam emprestado. Mas todos eles conhecem essa mulher e teriam adivinhado a verdade. Mas se eu confessasse e pedisse segredo – eles sem quererem, fracos perante a tentação, ora diriam. Essas coisas sempre se vêm a saber! Nunca estaria sossegada.

– Mas não disse que já se falava?

– Sim. Mas por enquanto é apenas um boato e Rex não acredita nesses boatos. Ele ama-me, ama-me, ama-me! Ficara furioso com esses bisbilhoteiros. Ficará furioso com essa mulher e acreditará em mim, estimar-me-á e isso é tudo o que me importa. Ele mesmo mo teria emprestado – pois se nós estávamos para casar no Outono – mas teria sabido e isso é que eu não posso suportar. Prefiro perdê-lo a perder a sua estima.

– Vale a pena casar... mesmo consigo! Não havia mais ninguém?

Miss Chisholm não reparou no cinismo com que estas palavras foram ditas. A sua preocupação era demasiada intensa para pensar.

– Não, não havia nada a fazer. Pensei no suicídio, mas seria mais escandaloso ainda e daria que pensar. Parece-me que isso havia de custar mais a Rex, o casar consigo é uma coisa honesta, julgar-me-á inconstante. Há tantas mulheres que o são. Ficará zangado, mas não lhe fará mal. Não acha que não lhe fará mal? Eu não posso pensar, sinto a cabeça esvaída. Tenho chorado tanto!

O seu orgulho desaparecera, varrido pela desolação que a consumia. Esse boçal que ali estava a olhar para ela, era apenas um fantoche, uma coisa que pertencia à mise-en-scène que a cercava. As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces, chorava com inteiro abandono, esquecendo tudo o que não fosse a sua mágoa. Pois havia de renunciar a tudo que amava; de se sacrificar, de / 416 / sair do paraíso para entrar na escuridão e no horror, tinha de se dar a João Chubb. Contudo às vezes encontram-se desses fantoches boçais com sentimentos, sentimentos que devastam ferozmente esses seres inertes. Um incêndio causado pelo ciúme e pelo amor invadiu João Chubb. Apesar da sua aparência insignificante, era homem e um homem forte e dominador. O mais fraco dos fracos não pode deixar de estremecer com o desprezo da mulher a quem deu o seu coração pusilânime; quando um homem do calibre de João Chubb é tratado como por demais, desgraçada da mulher que assim lhe mostra o pouco apreço em que o tem.

A sua virilidade revoltou-se e foi mais forte que a sua paixão. Como poderia um amor como o dele contentar-se simplesmente com o desejo satisfeito? Tinha edificado um templo feito de todos os seus ideais para ali dar abrigo e render homenagem ao objecto do seu amor e... Oh! Desgraça, esse ídolo era de barro e os seus ideais tinham-se feito em pó em volta dele. Em pé, sobre essas ruínas, ousava ainda escarnecê-lo e desprezar o seu amor! Ela que tinha caído tão baixo!

O instinto animal que existe em todo o homem, que é verdadeiramente homem, fez-se sentir no coração de Chubb, um instinto que lhe gritava mostrasse o seu poder voltando-se e dilacerando a presa que o escarnecia.

Sentiu como que um nó na garganta que lhe tornava a voz rouca; a mão tremia-lhe sobre a secretária.

– Um momento. V. Ex.ª tem sido a única a falar, mas eu também tenho que dizer. Pode ser que lhe valha a pena casar – mesmo comigo – e eu? Suponha que tenho cá uma ideia de desejar para minha mulher uma mulher honesta? Suponha que recalcitro – como qualquer dos seus amigos da alta, faria – como faria o seu primo – com a ideia de casar com uma ladra.

– Uma ladra!

Filis em pé olhava-o espantada. Ele obrigara-a a encará-lo. A rapariga, observava-o como se fosse um objecto monstruoso que se tivesse intrometido obscurecendo tudo mais.

– Uma ladra! Uma mulher que recebe os agradecimentos do público e a sua caridade, e surripia o dinheiro das amigas para pagar as suas dívidas de jogo. A minha nota de cinco libras não lhe sujou os delicados dedos. E veio ter comigo oferecendo-se-me, como se me conferisse um favor. Olhe, está tudo muito bem; eu darei o dinheiro; mas dou-o como preço da minha liberdade.

Eram ásperas estas palavras, mas os factos de que se tratavam eram também bem ásperos. Há certas situações nuas e elementares, nas quais as delicadezas sociais se desvanecem e a crueldade polida encontra o seu igual numa investida grosseira de animal ferido.

– O senhor... não… me quer?

– Querê-la, a si?

A porta abriu-se e felizmente a palavra, que estava prestes a sair dos lábios de João Chubb, não foi pronunciada; há certas coisas que uma mulher nunca esquece, e a João Chubb, foi poupada a amargura da recordação que teria vivido com ele toda a sua vida, se o empregado não tem entrado naquele momento.

Trazia o dinheiro que tinham mandado do banco, colocou-o sobre a secretária e saiu fechando a porta atrás de si.

Este momento de intervalo deu tempo a Chubb para recuperar o seu sangue frio. Agarrou o saco de dinheiro e atirou-o num movimento brusco para a rapariga.

– Aí o tem. Tome-o e vá-se embora.

– Agora, não posso!

Conservava-se imóvel, olhando para ele com os olhos muito abertos e os lábios brancos, desolada.

– Que quer dizer?

Falava com selvagem dureza porque o olhar para ela dilacerava-lhe o coração.

– O que quero dizer? Exactamente o que disse. Agora, não posso receber o seu dinheiro, disse que não me queria, não tenho nada... para lhe dar em troca.

– Mas o escândalo?

– Tenho de o afrontar.

O pai de Filis tinha morrido na guerra e neste momento ela parecia-se estranhamente com ele; procurando às apalpadelas a sua sombrinha.

Aqueles olhos infantis estavam dilatados pelo medo e contudo lia-se neles uma inalterável resignação. Tinha de afrontar o fogo.

– Espere, espere, mas seu primo saberá. / 417 /

– Bem sei.

– Aqui tem o dinheiro, eu prometi-lho.

– Sim, mas foi quando me julgou digna de ser sua mulher. Como se chama isto?... Fraude? Roubei uma vez mas não sou uma ladra, abusaria da sua promessa se não lha devolvesse. Foi porque não pensei, não compreendi.

Com um pequeno soluço voltou-se para a porta procurando às cegas o fecho. De repente o seu caminho foi impedido. João Chubb estava entre ela e a porta.

– Espere aí!

A sua voz ainda estava rouca, mas não estava ridículo. Graças a Deus! Há momentos em que a humanidade irrompe viva e palpitante e as convenções feitas pelo homem mostram o que são; apenas umas pobres cinzas. Nestes momentos Deus dá dignidade a todo o homem.

– Tem de receber aquele dinheiro. Contraiu essa dívida para comigo, tem de o receber.

– Não posso.

– Pode, sim. Escute-me. V. Ex.ª e a sua roda, quando pensam em mim, se é que pensam, julgam-me um ambicioso banal, Não o sou. Sou apenas um homem apaixonado. Apaixonei-me por si à primeira vista. Via-a na Ópera na primeira vez que lá fui. Tinha vindo a Londres tratar dum negócio e quis ver o que aquilo era: e via-a. Nada tenho que lhe dizer senão... que a amei – que me apaixonei como qualquer rapazola se apaixonaria – como deve ter acontecido a muitos, sem dúvida. Mas estava acostumado a lutar por tudo quanto queria e a obtê-lo. Eu, um homem rico, um vereador, director dum hospital geral, um dos homens importantes de Birmingham; e contudo estava tão afastado de si e do seu mundo como se fosse um varredor de ruas. Mas tinha dinheiro, e o dinheiro tem ajudado muita gente a aproximar-se das suas iguais e ajudou-me a mim também. Foi um trabalho árduo. Caridade, política – luvas para mãos titulares – não houve nada a que me não abaixasse. Subi! Subi até chegar a falar-lhe. Pelo meus cálculos este último ano deve ter-me custado cinquenta mil libras – mais ainda, muito mais – e que ganhei eu? Subi até à sua indiferença, e da sua indiferença até ao seu desprezo. Só isso – agora em paga de tudo quanto gastei para me aproximar de si – em paga de tudo quanto perdi – receba estas miseráveis cem libras e deixe-me a consolação de sentir que lhe prestei um serviço. Nada mais quero.

– Casarei consigo, se me quer.

– Oh! Meu Deus, meu Deus, se a quero!... Mas quero antes de tudo, quero que seja feliz. Tome esse dinheiro, faça calar essas línguas viperinas. Não discuta!

– Sim, mas o senhor?

Apesar de nova, o seu instinto de mulher tinha acordado. Com um pequeno grito de angústia voltou-se para ele pondo as mãos num sentimento de piedade pelo seu amor.

– Eu, o quê? Pois tem pena de mim! Levarei comigo essa recordação. Não lhe falei no meu amor para isso. Só queria mostrar-lhe que devia deixar que a ajudasse. Julguei que me desprezaria ainda mais. E... tem pena de mim. Vá-se embora, vá, quero ficar com a recordação desse último olhar. Não se demore, pode tornar a lembrar-se da grande distância que há entre nós.

Avançou um passo afastando-se dela como para tirar o seu corpo desjeitoso da sua vista; mas uma mãozinha febril, apertando a sua, chamou-o de novo.

– Aceitarei, e ser-lhe-ei grata toda a minha vida. Como me poderá perdoar o ter sido tão mesquinha e cega? Oh! Por favor, deixe-me dizer-lhe – obrigada.

Chubb pegou no saco e pôs-lho nas mãos. Dominava perfeitamente a sua comoção, mas a sua recente dignidade ainda o cercava.

– Tome, minha filha, disse ele, olhe que pode chegar tarde. Seja feliz.

– Uma ladra feliz?!

– Não é uma ladra, é apenas uma criança que se viu entre a espada e a parede e estendeu cegamente a mão em defesa própria – não pensando – como disse. Quando pensou, foi bem honesta. Veio comprar esse dinheiro com a sua pessoa. Fui brutal para consigo e nunca o perdoarei a mim mesmo.

Parou subitamente. Aquele rosto inundado de lágrimas teria suavizado um coração mais duro do que o de João Chubb.

– Fui brutal. – repetiu ele com voz rouca. Mas quando se está torturado, bate-se ao acaso, sem saber, sem pensar... Vá... [SERÕES N.º 60 – FL. 2] / 418 / Veio para se enterrar. Enterre a sua falta. Deixe-a comigo. Pode confiar em mim, não lhe parece? Deixe-a e vá viver no seu mundo, vá para o seu primo que a ama... Que a ama... que a ama... Não lhe diga nada por enquanto, ele é apenas uma criança, espere até que ele a conheça bem, depois de terem vivido juntos. Prometa-me isso para mostrar que me perdoou!

– Nada tenho a perdoar, mereci tudo quanto me disse. Mas compreende que eu não queria roubar? – Perguntou ela.

João Chubb fez um sinal afirmativo, não podia falar.

Em breve – muito breve – a porta tinha-se fechado e ela desaparecera. Ele conservou-se por algum tempo no quarto, donde a luz do sol fugira havia muito; depois voltou para o seu lugar e puxou para si as cartas que descuidara. Era difícil concentrar nelas o seu pensamento. Tivera ao alcance da mão o seu desejo; contudo às vezes ganha-se mais perdendo do que conservando.

AMÁLIA BARBOSA


 

 

01-01-2021