UM e doutro lado dum regato que corria em terras de Juda, erguiam-se naquele tempo duas árvores. Uma era uma figueira colossal. Dominava o outeiro onde assentava, e a sua copa verde-negra debruçava-se na larga faixa de cristal, que mais abaixo cantava e fugia sobre um leito pedregoso.

À volta dela, um grande tapete de searas e vinhas, que subia por um lado até ao alto da colina, onde avultava um lagar, pintado a vermelho, e por outro descia a mergulhar nas águas da torrente. Paralela a esta, corria a estrada poeirenta que vai da cidade de David a Jopé, a formosa, nas praias do Grande Mar.

Esta figueira era feliz. Três vezes no ano se vestia de folhas, e três vezes se toucava de frutos. As aves do céu construíam lá os ninhos, e vestiam-na de asas. Os viajantes vinham cansados recolher-se à sua beira, durante as grandes jornadas. Querendo ter quinhão neste bem estar, uma cepa que nasceu perto estendeu para ela os seus ramos, e subiu, enrolando-lhe milhares de gavinhas nos braços arrugados.

Não assim o pobre cedro, que na outra margem, enfezado e triste, vegetava penosamente. Servira-lhe de berço uma fenda cavada na rocha, onde em tempos germinou, numa pouca de terra levada pelo vento, o ovário que lhe deu o ser. Raro uma gota de água lhe refrigerava as raízes, mergulhando ansiosamente naquele chão estéril, que por toda a parte descarnava um esqueleto de pedra. O murmúrio da água próxima cravava-lhe mais fundo o aguilhão da sede. Algum cardo agreste, uma ou outra rosácea espinhosa, cresciam a custo em redor da árvore solitária.

Ninguém se aventurava sobre aquelas penedias, onde os líquenes alastravam como herpes monstruosos, e os olhos das hienas fosforesciam entre fragas, em noites impenetráveis.

Mas o cedro, assim desprezado e miserável, era bom. Raramente alguma ave, antes de se abalançar à passagem para além do rio, poisava nele uns instantes. Mas era certo que a seiva palpitava mais apressada no ramo onde os pés da ave descansavam. Os animais silvestres, que vagueavam naquela aridez, triste como o campo de ossos das visões de Ezequiel, acoitavam-se às vezes nos seus ramos, que desciam quase junto ao chão; os xofrangos vinham ali num voo de pesadelo despedaçar as presas, ou repousar das aventuras nocturnas. E todos quantos apareciam eram bem vindos, todos acolhidos como irmãos que eram no Criador comum.

Passava do outro lado, no verão, a chusma ruidosa dos ceifeiros; as caravanas que vinham de negócios em Samaria e em Tiro, os romeiros que de Jerusalém desciam no mês de Nisan apertando os molhos do trigo verde da Páscoa; agrupavam-se os caminheiros à sombra da figueira, como em lugar de grato repouso, provando a doçura dos seus frutos, e contando maravilhas dos países distantes; desciam as aves a visitar os seus ninhos e a enchê-la de músicas, à hora a que vaidosamente misturava, no regato murmurante, os tons verdes da folhagem / 251 / com o azulado das águas. O cedro nada invejava.

Só a figueira era soberba e má. Quando a paisagem adormecia na paz das sombras, ela, na linguagem das árvores, misteriosa aos homens, escarnecia da sua irmã, perdida, esquecida numa prega das escarpas fronteiras. Humilhava-a no confronto com os seus iguais, que coalhavam ao norte as cumeadas do Líbano, magnificamente majestosos, resistindo aos séculos roazes e ao assalto das tempestades. Por isso, ao cair sobre eles a machada do lenhador, era para com os seus aromas purificar os imundos da lepra, ou para com a sua carcaça levantar os templos dos Deuses e os palácios dos reis.

Quando os homens ou as aves lhe traziam um testemunho de simpatia, quando as folhas e os frutos, que três vezes no ano a visitavam, lhe faziam vergar os ramos, quando o sol a envolvia em carícias, a odienta figueira enviava ao cedro, no sopro da brisa, um vago rumorejar de vaidade e desprezo.

Uma nova razão de motejo nascia em cada madrugada. Agora, porque da magra folhagem do cedro saíra toda a noite o estridor agoirento da coruja, enquanto o rouxinol, num galho da figueira, levantara aos primeiros alvores, no dilúculo lactescente, um gorjeio de saudação. E o cedro, sombriamente inclinado sobre o granito não menos sombrio, sem invejar nem odiar, continuava, silencioso, a estender a sua copa sobre os répteis e os abutres.

Atravessava então os montes e os vales tranquilos que vão da Samaría ao Mar Morto um homem estranho, que dizia uma palavra tão estranha como ele. Quantos o ouviam contavam dele maravilhas. Falava duma nova terra prometida, que em breve havia de aparecer; igualava o escravo ao senhor, e preceituava o amor entre os homens, como complemento do amor entre as coisas criadas. Porque o amor era para ele o alicerce e a razão da futura sociedade universal.

Naturalmente, a Sinagoga odiava-o. O poder constituído via nele a dissolução social, a inundação que devasta os campos e os povoados. E ambos procuravam perdê-lo. Mas o povo adorava-o, porque esse homem, que era seu filho, trazia-lhe a palavra de amor, e personificava o seu sofrimento e a sua esperança.

Tinha uma existência simples; falava como um Deus e vivia como um homem. Quando a sua túnica, da cor dos lírios brancos. alvejava nos campos e nas estradas, corriam homens, mulheres e crianças a saudá-lo, e a ouvir a sua palavra e o seu conselho, que eles entendiam melhor que a retórica balofa dos fariseus e dos saduceus. Por onde quer que ele passasse, só ou entre os seus amigos fieis, que um a um escolhera, como trigo do meio do joio, imensa turba o seguia de aldeia em aldeia, de castelo em castelo.

Ora certa manhã acertou de passar este homem naquela estrada, e junto daquela figueira. Como o calor apertava, desceu abaixo a beber a água clara do regato no côncavo da mão direita, e veio depois procurar entre a folhagem espessa algum fruto que o reconfortasse. Mas não lhe encontrou senão folhas. porque não era esse o tempo de frutificar. Sentou-se na relva, os companheiros imitaram-no, e reclinou a cabeça fatigada no tronco revestido de vinha.

A figueira julgou o viajante adormecido, e disse ao cedro:

– Repara, árvore desprezível. Mais uma vez estes homens vêm descansar à minha sombra. Já aqui estiveram o ano passado – recordas-te? – e agora, como então, não se dignaram levantar para ti os seus olhos. Não sei quem são, nem isso me importa; mas pelo trajar, que não é daqui, e pela poeira que os cobre, parece que vêm de longe. E tu aí ficas, esquecido, desprezado, sem um rasto humano à tua beira, sem frutos que saciem nem folhas que refrigerem.

Assim falou a figueira, do alto da sua vaidade. O recém vindo vigiava, e ouviu-lhe o discurso, porque entendia, à semelhança do rei Salomão, a linguagem secreta das coisas. Ouvia-se ao longe o cantar dos lagareiros, que ao cimo da colina recalcavam nas cubas de pedra os cachos reluzentes. No alto cruzavam-se pombos, leves como sonhos de ante manhã. Através do claro da folhagem, um raio de sol beijou a relva, e logo um bando sussurrante de insectos veio abrir de gozo, naquela luz amiga, as suas asas de oiro. À roda, os companheiros dormiam.

Acordou-os e contou-lhes o que ouvira.

– Que vos parece? perguntou. / 252 /

Um deles, de face torrada pelas soalheiras e longa barba grisalha pendente sobre o peito, adiantou-se e respondeu:

– Mestre, eu acho que tal proceder é condenável e digno de censura. Ninguém deve humilhar o seu irmão por fraco e inútil que pareça. Acaso não foste tu quem disse que devemos amar-nos uns aos outros?

– Em boa verdade te digo, Céfas, que é esse um ótimo discurso. Entrou no teu coração o espírito da justiça.

E falou à figueira:

– O teu orgulho te perdeu. Tu que eras insígnia da paz, serás hoje sinal de discórdia; símbolo da abundância, ficarás de ora avante o fantasma da esterilidade. Por isso te amaldiçoo, e jamais nasça fruto de ti!

Depois, voltou-se para os amigos:

– Vamos! Cingi os vossos rins, tomai os vossos bordões, e lancemo-nos ao caminho, para longe desta árvore maldita!

A viração dessa tarde levou para a água fugitiva as últimas folhas encarquilhadas; os sarmentos da vide desprenderam-se daquele cadáver e caíram; toda a erva secou em volta; e apenas os ramos nus da figueira se erguiam no ar, contorcidos como os braços dos condenados ao fogo. Nunca mais as aves do céu lá cantaram o poema dos seus amores. E no dia seguinte o lagareiro que pisava as uvas cantando, os semeadores do campo que passavam nas searas, os mercadores de púrpura que voltavam dos pontos longínquos, os pastores que levavam os rebanhos intonsos a beber a torrente, perguntavam-se pasmados:

– Como em tão breves horas morreu esta árvore, que nossos olhos ainda ontem viram tão alta e tão viçosa?

Também o dono da figueira maldita ali veio. E chamando os servos, ordenou-lhes que a fossem arrancar e dela fizessem lenha, cumprindo assim a letra sagrada, onde diz que «a árvore estéril será cortada, e lançada ao fogo».


M. CARDOSO MARTA.

 

 

05-12-2020