D. Miguel I e o Marialva – A sua meninice – As culpas da
rainha-mãe
D. Miguel I foi uma figura singular na Casa de Bragança a
que o disseram alheio o “London Observer”, outros jornais
ingleses e Beckford, pois no ano de 1802, em face do corpo diplomático,
D. João declarara ser estranho ao nascimento do infante. Atribuíam a sua
paternidade ao Marquês de Marialva de quem aventavam ter herdado o
donaire, a graça, a gentileza pouco comuns nos Braganças que o
precederam, à excepção de D. João V, que fora, um moço galhardo e
formoso. A sua dissemelhança com a família, os seus gostos diferentes, o
seu amor pelas picarias, pelas cavalgadas tumultuosas, pela arte dos
Marialvas a que se dedicava com loucura, mais acentuaram essa falácia da
turba que bebera nos rumores do paço as suas duvidas acerca da
legitimidade de Sua Alteza. Fosse como fosse, rebento directo da Casa
Real ou filho do galante fidalgo, é certo que jamais em torno dum
Bragança houve tanto entusiasmo, tanto preito, tanta dedicação do baixo
povo que sentia nos prazeres do príncipe lisonjeadas as suas
preferências pelas touradas e pela religião. D. Miguel, com o seu rosto
formoso, os seus olhos negros e lindos, o talho grácil do seu corpo, era
como um ídolo ante o qual a populaça ajoelhava, a nobreza se submetia, o
clero se curvava como se ele guardasse na sua pessoa uma sagrada
essência que tudo dominasse.
Em criança – segundo escreveu um secretário da rainha-mãe
– era orgulhoso e travesso, um pequenote criado entre as saias do
mulherio palaciano e que fazia toda a SERÕES N. o
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casta de maldades por entre os sorrisos aduladores dos cortesãos.
Ligeiro de ânimo, turbulento, nervoso, traquinas era o ai-Jesus da
corte, o filho dilecto de Carlota Joaquina, talvez a única culpada de
tudo que D. Miguel viria a sofrer em anos distantes nas rudezas dum
exílio.
O príncipe tinha tanto de impulsivo quanto havia de
reservado em seu irmão Pedro que, sendo um Bragança a valer no génio
ardiloso, na manha e na habilidade prática bem apresentava as
características da raça, os predicados que mais a distinguiram antes da
mistura do sangue alemão nas suas veias afeitas às ondas do sangue
castelhano.
Era pois D. Miguel um homem que ficou criança até à hora
da desgraça, um príncipe destinado talvez à calma vida dos filhos
segundos nas cortes ou a tornar-se um rei aburguesado como o D. João VI,
sem esse espicaçamento constante exercido no seu espírito pela mãe que o
impeliu às mais estranhas loucuras ao sujeitá-lo à sua influência de
mulher sempre perigosa para demais quando os sujeitados estão nos de
graus dum trono.
A lição que D. Miguel recebeu ficou como um exemplo para
os príncipes que se deixam guiar pelos conselhos nem sempre bons dos
que o cercam.
Uma carta de Carlota Joaquina – A conspiração contra o
rei – Um exílio dourado.
A corte de Carlota Joaquina vivera sempre de conjuras à
castelhana em que o punhal e o veneno se escondiam com sorriso, velhacos
e devotos. D. João VI escapara à peçonha a que devia sucumbir, em 1806,
José Anastácio, ajudante do intendente da polícia, e desde então o
malfadado filho de dois tarados religiosos, refugiara-se nos cantochões
dos seus frades de Mafra e na dedicação dos seus privados Lobatos, um
dos quais também morreu um tanto misteriosamente. Após a vinda do
Brasil, todo ele era receios do povo e da corte; a mulher andava sempre
embebida nas suas conjuras; as infantas mal o amimavam; os filhos, um
talhara para si um império despegando-o do domínio português, o outro,
acirrado pela mãe, conspirava sempre. E o pobre rei de Portugal, daquém
e dalém mar, só encontrava o carinho duma escrava negra que lhe provava
a comida não fosse ele morrer envenenado, sem contudo o conseguir salvar
depois daquela merenda de Belém.
Em 1823 agitava-se a rainha contra o marido e contra a
liberdade, mas como visse
/
375 / falhada a conjura e a polícia fosse
remexer nas suas malas em busca de papéis suspeitos, ela, seguindo o
antigo hábito, pôs-se a salvo com uma carta ao pobre esposo:
«Meu amor: Agora me dizem que os nossos inimigos têm
espalhado em Lisboa que eu pretendia fazer esta manhã uma revolta para
ficar regente com o nosso filho Miguel e mandar-te para Vila Viçosa.
Isto é uma aleivosia muito grande e nela entrará decerto o doutor
Abrantes, e por isso te peço que ordenes ao intendente que proceda
rigorosamente a esse respeito, pois tu bem sabes que eu não desejo senão
viver sossegada e que tu sejas feliz. Desta tua: C. J.»
D. João VI, perante esta carta, teve a certeza de que a
mulher tramava na sombra, ao recordar-se duma outra semelhante recebida
quando da conspiração de Mafra.
Com efeito, logo no ano seguinte a revolta rebentou. D.
Miguel colocava-se à frente das tropas no Rossio; o povo aguardava em
silêncio o gesto do infante e na Bemposta o rei tremia de medo, fechado
no seu quarto, à porta do qual havia sentinelas. Sem o embaixador
francês Hyde de Neuville, que arrastando consigo o corpo diplomático. se
dirigiu ao palácio, talvez que o pobre rei tivesse abdicado. Ante os
representantes das nações os soldados cruzaram as baionetas, um oficial
pediu um bilhete do infante para os deixar passar e só quando um
ajudante de D. Miguel o ordenou a porta se abriu para se ver um rei
chorando, convulso, apavorado nos braços do inglês Beresford. Dos seus
lábios com os soluços saiu o perdão do filho cujos cúmplices deviam ser
castigados. O príncipe embarcara na Pérola com o cirurgião Pires
e o conde de Rio Maior e partia para o estrangeiro de onde só devia
voltar em 1828 para assumir a regência do reino, após a morte do pai,
que deu pasto a misteriosos ditos.
À volta de Sua Alteza – O Rei chegou – O absolutismo
A viagem do infante fora cheia de gozos e de alegrias.
Esturdiara em Paris, divertira-se em Viena, onde jurara manter a
Constituição diante de Metternich, do conde de Bombelles e do barão de
Vila Seca. Saíra logo para França e dali para Inglaterra; fora recebido
com entusiasmo em Westminster, visitara o túnel do Tamisa, que dois dias
depois devia abater e finalmente pusera-se de viagem para Lisboa, onde
chegou nos primeiros dias de Fevereiro. O seu desembarque no cais de
Belém foi um delírio. O infante, recusando ir ao Terreiro do Paço, onde
a Câmara o aguardava, ainda mais acirrou o entusiasmo da turba fanática
de frades, bolieiros, comborças e soldados, que lhe alacaiaram o coche
pela calçada da Ajuda improvisando versos que soavam entre o repique
festivo dos sinos, o estralejar dos foguetes, as músicas estrondosas que
o saudavam, versos que vinham da loucura ebrifestiva da populaça em face
da figura garbosa do infante:
D. Miguel chegou à barra
Já lá estava o seu carrinho
Para o levar a palácio
Descansar um bocadinho
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Rei chegou
Rei chegou
Em Belém
Desembarcou
Na barraca
Não entrou.
Sob o chuveiro das pétalas dos jardins de Alcolena e da
Boa Hora, entre sorrisos femininos e brados do povo, o infante sorrindo
aos moleiros do Caramão e do Monsanto, aos escudeiriços e fidalgos,
entrou no paço diante do qual começou a folia como em arraial de
milagroso santo. Correu o vinho a rodos e no bailarico rijo as vozes das
moçoilas saudavam-lhe a beleza e aclamavam-no:
D. Miguel
Lindo diamante
Ele já é rei
Já não é infante
Assim começou a caminhar para a realeza absoluta; assim
se tornou o rei dos frades, da soldadesca, da turba e do mulherio.
Misérias dum príncipe – Um duro exílio – A escola da
desgraça
O reinado de D. Miguel I ficou como um período de
horrores. Nunca se viram tantas forcas erguidas, tanta gente presa nas
cadeias e fortalezas, tantas atrocidades que se praticavam ao som do Rei
chegou, o Ça ira, realengo do Rei Terror. Quando passava nas suas
cavalgadas o povo ajoelhava; as freiras tinham o seu retrato nos
altares; havia uma fúria de o aclamar enquanto a Alçada ia lavrando
sentenças. Começou a rebelião na qual D. Pedro não entrou tão
desinteressadamente como se julga, seguiram-se as batalhas como num
quadro final de ódio acumulado de irmão para irmão na dinastia
brigantina e por fim as forças de D. Miguel sucumbindo na Asseiceira
renderam-se pela convenção de Evoramonte. Ali o príncipe teve o seu
primeiro gesto de honestidade ao despojar-se até das suas jóias
particulares, ao entregar o tesouro da coroa que valia 800 contos e
preciosidades no valor de 3:000, em face desse tratado que amnistiava
todos os delitos políticos, reintegrava no exército os oficiais, nos
lugares os empregados públicos, a fazer a paz da nação. Só ele seria
expulso, comprometer-se-ia a não mais voltar à península e partiria
dentro em quinze dias do reino para o que se lhe dava uma pensão de 60
contos.
Por aquele cálido Junho, em que a terra portuguesa é tão
linda, o infante com vinte dos seus veteranos, cercado pelos lanceiros
constitucionais marchou a embarcar em Sines, na corveta inglesa Stag
que o capitão Lockyer comandava. Levava 80 pessoas de comitiva e
deliberava não aceitar essa pensão que lhe daria o ar dum culpado rico,
ao abrigo das misérias, enquanto os seus fiéis jazeriam na indigência.
No caminho ouviu doestos e sem a intervenção do oficial Infante de
Lacerda o guerrilheiro Batalha teria assaltado a escolta para desacatar
o
/ 377 / homem diante de quem a turba ajoelhara. Naturalmente nessa
hora o príncipe perdeu todas as suas ilusões, sentiu que pouco valor tem
o amor do povo agora impetuoso como o das perdidas, logo volúvel,
transformado em ódio, como o delas. A infanta Isabel Maria estava em
Elvas e recolheu a Benfica; o duque de Cadaval partiu dias depois para
ir viver no palácio Montmorency, em Paris. No reino ficavam algumas
dedicações nos conventos, no exército e no coração das mulheres e o
príncipe ao desembarcar em Génova, orando em face da Senhora da Vinha,
sentia-se enfim bem vencido, pobre, metido já na rude estrada onde o
conduzira sua mãe. No trono estava a sobrinha cercada pelos soldados de
D. Pedro; ele lá de longe escrevera o seu primeiro protesto: preferia a
miséria, tinha enfim esse assomo de dignidade ensinado pela desdita.
«Declaro-me, agora, que estou em liberdade, contra a
capitulação de 20 de Maio passado, que me foi imposta pelo governo de
Lisboa e que aceitei para prevenir mais desgraças e poupar o sangue dos
meus fieis vassalos. Esta capitulação, portanto, deve ser considerada
nula e de nenhuns efeitos.» Era a pobreza. O governo constitucional
apreendera ainda algumas das suas baixelas particulares que a velhinha
D. Francisca Varde buscara salvar para servirem no exílio ao seu querido
rei que vivia apenas duma pensão oferecida pelo papa Gregório XVI.
Estava em Roma no palácio Capponi que a família Mencacci lhe ofertara;
ali vivia com os seus fiéis, procurando horas de maior felicidade.
Via-se então esse príncipe das touradas e das cavalgadas, o Rei Terror,
o soberano diante do qual um povo ajoelhara, passear a pé, humilde,
confundido com as multidões indiferentes, chorando sobre o parco pão
desse exílio bem diferente do primeiro.
Dias havia em que não tinha um bayoco para comprar
o leite da sua ceia. Aos opíparos jantares de gala sucediam os
ratinhados quinhões de vaca, os modestos pratos de arroz; as frutas de
Roma eram caras e ele devia ter saudades dos seus pomares férteis, dos
vergéis de Queluz, de tudo isso que perdera levado pela ambição de fazer
de Portugal uma herdade em que colhesse todos os proventos e na qual o
irmão se contentava apenas com alguns. Data daqui a sua transformação. O
rei estúrdio era agora um homem de coração que partilhava com os pobres
o seu pouco pão; tornava-se um atento observador das misérias e, como se
andasse a penitenciar-se duma grande culpa, fazia o bem, valia aos
desgraçados, enchia-se de modéstia. Uma vez quis vender o seu único
cavalo para socorrer um realista espanhol; outra levou para a sua mesa
um português esfaimado. Passando na rua Leccusa, onde o povo se
arrastava dum pestífero, tomou-o nos braços e levou-o ao hospital. Deste
modo, vivendo mal, a ponto de em 1841, em pleno inverno romano, não ter
dinheiro para comprar um sobretudo e saindo de casa do príncipe de Conti,
onde estivera hospedado, não ter com que pagar o seu jantar,
/ 378 / o
príncipe protestava sempre contra o seu banimento da pátria, proclamava
ali os seus direitos já em Janeiro de 1835 e em Maio do mesmo ano, já em
Novembro de 1840, já em Junho de 1852, nas vésperas do nascimento de seu
filho. Em Lisboa a condessa de Pombeiro fazia subscrições para o
socorrer e que ele, ainda em 1850, agradeceu de Bexhil. Do seu exílio
seguiu com o coração sobressaltado a incursão de Mac-Donell em Portugal
e, ao vê-lo vencido, sem dúvida sentiu que jamais seria rei de facto. No
entanto protestava sempre no meio da sua miséria de que o salvou uma
mulher digna – a princesa Adelaide de Lowestein – que ainda hoje vive
num convento de Inglaterra e que desejou partilhar as suas desditas e as
suas esperanças casando com o príncipe que, pagando as suas culpas, na
escola da desgraça se redimiu como homem.
Morte de D. Miguel I – Seu filho – Um sonho desfeito?
Em Novembro de 1866, D. Jorge Locio recebia em Lisboa o
seguinte telegrama:
«Le roi est mort subitement d'une paralysie de
poumons.
Dite au conte de Pombeiro et marquis de Abrantes. Charles
prince de Lowestein.»
D. Miguel I morreu e para seu filho se voltaram os seus
partidários. O príncipe não tivera a aprendizagem dolorosa de seu pai;
fora criado como todos os filhos das famílias reais, talvez com um
desejo grande de ver essa terra da sua raça, pois saudade não a podia
ter. Vivendo na corte de Áustria, sendo oficial do exército desta nação,
casado, aumentado em bens, decerto não sofreu nunca as agruras dos
príncipes desditosos. Perto do trono mais trágico da Europa, assistindo
às desgraças da família imperial,
/ 379 / D. Miguel soube da morte do
herdeiro do trono, esse desequilibrado Rodolfo do mistério de Mayerling;
depois o desaparecimento do arquiduque Salvador; ainda do fuzilamento de
Maximiliano; dos casamentos morganáticos; de toda essa série de factos
que fizeram herdeiro dum trono, de que estava bem distante, o arquiduque
Francisco Fernando. Realmente a casa de Áustria, que o acolhera, era um
exemplo terrível de infelicidades régias nas quais deve ter pensado ao
ver como às vezes um pequeno príncipe pode herdar um império e ao sentir
os espinhos dessas existências que se julgam tão mimosas. Diz-se que a
tragédia de Lisboa o fez meditar a ponto de se aproximar da sua família
mudando a sua declaração de 1896, na qual dizia obrigá-lo a sua honra a
continuar no seu posto. É crível que o príncipe tenha essa ansiedade de
se ligar aos seus, ante as tragédias da realeza a que tem assistido no
país onde vive e da notícia da que se passou em Lisboa: é crível que
venha para Portugal, para junto desse trono de discórdia entre seu pai e
seu tio, abstendo-se enfim desse efémero título de rei que os seus
partidários lhe davam nos dias das suas reuniões em Seebestein e nas
quais talvez sonhasse num momento com uma efectiva realeza.
Se tal sonho teve, ele, agora, para sempre se esvai como
uma ilusão que era, como uma nuvem de fumo ao sopro, por vezes agreste,
do vento desta nossa terra, vento que agita o Oceano donde o rei Miguel
I partiu nessa memorável manhã luminosa de Junho por entre as
imprecações daqueles que talvez tivessem entoado a canção de vindictas
que ficou entre nós como um sangrento Ça-ira da realeza.
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NOTA
– Em Sines embarcaram com D. Miguel os seguintes indivíduos: Conde de
Soure, D. Bernardo Almada, António José Guião, mordomo, João Gaudêncio
Torres, secretário, Joaquim Teles Jordão, ajudante, João Galvão Mexia de
Sousa Mascarenhas, João António de Azevedo Lemos, Joaquim dos Reis,
confessor, Luís Guilherme Coelho, D. António da Silveira, Manuel de Sá
Sarzeda, capelão, António de Oliveira Viana, António Pedro Baptista
Gonçalves, José Castro de Quental, Manuel de Almeida e Andrade, José
Alves Cândido, João Baldy, Pedro M. Rebelo, Joaquim Rodrigues Castro,
Diogo José de Noronha, Francisco de Magalhães Mascarenhas, António
Augusto de Mascarenhas Galvão, Manuel Bernardes GouIão, António Pimentel
Soares, Henrique Vieira, Constantino José Marques e trinta e dois
criados.
ROCHA MARTINS.
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